Ainda sobre o Dia da Criança
Acordo no primeiro dia do mês de Junho e a rádio lembra-me desta data1. Como tantas outras datas comemorativas, mundial e internacionalmente, às vezes, perdemo-nos na banalização quotidiana em que vivemos.
Todos temos uma imagem da infância. Em primeiro lugar, a nossa. E, logo, a dos outros, dos nossos conhecidos ou contemporâneos. A infância pode ser o universo do refúgio maravilhoso ou um pesadelo, quando nos lembramos das crianças exploradas, traficadas ou que convivem num mundo diário de guerra, que as priva das suas famílias, das suas cidades e países, dos seus sonhos.
Imagino o que poderia oferecer a uma criança neste dia e as ideias que me ocorrem mais facilmente seriam oferecer-lhe um livro, uma viagem de comboio, uma flor ou dar-lhe a possibilidade de soprar um dente-de-leão e ver como a esfera leve e filigranada se esvanece no ar, fugazmente. Ou, então, devolver a rua aos meninos, bem como as brincadeiras com objectos simples, a bola de trapos, o aro de rústico arame, o pião bailarino como um dervixe2 ébrio na sua agitação em espiral, rodopiante. Ou, simplesmente, os sinais da areia e do pó, com barro misturado para construir castelos ou torres… Ou, enfim, levá-la à beira-mar para contemplar aquele lençol gigante em movimento que não descansa.
No ano de 2015, Pedro Lemebel3 (escritor, poeta e homem de teatro chileno, já falecido) publicou uma emotiva carta dirigida a um “menino boliviano que nunca viu o mar”. Pela poesia e pela bonita mensagem, tão significativa, convido os leitores a ler o original, em Espanhol, do qual cito apenas alguns excertos:
[…] Esta es una carta dirigida a tus ojitos oblícuos que de mil maneras intentan imaginar ese gran charco azul que, no es como te lo cuenta la profesora en el colegio comparando la parte mas extensa del Titicaca, esa zona donde el cielo se recuesta sobre las aguas verde musgo, donde no hay cerros y el horizonte desaparece en esa lama esmeralda que, de alguna manera, también semeja un ojo de mar.
[…] pequeño niño boliviano, te puedo contar como conocí la gigante mar, y daría todo para que esta experiencia no te fuera ajena. Incluso, te regalo el metro marino que quizás me pertenece de esta larga culebra oceánica. Tanta costa para que unos pocos y ociosos ricos se abaniquen con la propiedad de las aguas.
A mensagem parece ser apenas uma, para mim, uma espécie de mea culpa, pelo roubo e despojo do mar aos bolivianos, resultado das negociações entre as duas nações vizinhas – o Chile e a Bolívia –, depois da Guerra do Pacífico.4
Mas eu pergunto-me que culpa temos nós, eu e os meus compatriotas, de uma guerra fratricida financiada por interesses forâneos que definiram novas fronteiras na América do Sul?
Se, no dia 1 de Junho, eu estivesse no Chile, teria convidado um menino boliviano e, de mãos dadas, iríamos junto do mar, para lhe dizer, da forma mais pura e simples: “Isto é o mar. E é nosso, teu e meu, de todos nós!”
Notas:
1 – Estabelecido oficialmente em 1950 na sequência do congresso da Federação Democrática Internacional das Mulheres, realizado em 1949, em Paris. Portugal, à semelhança de vários países, adoptou o dia 1 de Junho para celebrar o Dia da Criança com o objectivo de sensibilizar para os direitos das crianças e para a necessidade de promover uma melhoria das condições de vida, tendo em vista o seu pleno desenvolvimento.
De acordo com o Centro de Informação Europeia Jacques Delors, por vezes, é difícil distinguir este dia, 1 de Junho, do dia 20 de Novembro, considerado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Dia Mundial da Criança.
2 – Membro de uma ordem religiosa muçulmana que se destaca pela prática de rituais extáticos (que levam ao êxtase), como danças rodopiantes, cânticos, etc.
3 – Pedro Lemebel (Santiago, 1952-2015) – Escritor e artista plástico chileno, venceu a marginalidade da sua infância para se tornar um dos primeiros a sacudir a sociedade conservadora chilena, durante a ditadura do general Augusto Pinochet. Vestido com plumas e saltos altos, fez apresentações revolucionárias, desafiando o terror da época, ao dizer o que ninguém queria ouvir num país homofóbico e reprimido pelos militares. No final dos seus dias, um cancro matou a sua voz, tirando-lhe a vida: “Como es la vida, yo arrancando del sida y me agarra el cáncer.”
4 – A Guerra do Pacífico foi um conflito ocorrido, no século XIX, entre 1879 e 1883, confrontando o Chile às forças conjuntas da Bolívia e do Peru. No final da guerra, o Chile anexou áreas ricas em recursos naturais de ambos os países derrotados. Se consultarmos a Wikipédia, ficamos também a saber que o Peru perdeu a província de Região de Tarapacá e que a Bolívia teve de ceder a província de Antofagasta, ficando sem uma saída soberana para o mar, o que se tornou uma matéria de fricção na América do Sul, chegando até os dias actuais.
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08/06/2023