Ainda sobre o Dia Mundial do Teatro

 Ainda sobre o Dia Mundial do Teatro

O encenador, actor e dramaturgo Luís Miguel Cintra. (Créditos fotográficos: Gonçalo Rosa da Silva – expresso.pt)

(Direitos reservados)

Há um ano, festejámos, com um grupo de alunos da licenciatura em Teatro da Escola Superior Artística do Porto (ESAP), em Cáceres (comunidade autónoma da Estremadura), o Dia Mundial do Teatro, a 27 de Março. Era a ocasião idealizada pelo director da Escuela Superior de Arte Dramático de Extremadura – Educarex (ESAD de Extremadura – Cáceres), José Ramón Alonso de la Torre1, para realizar o primeiro encontro nacional das ESAD (Escuelas de Arte Dramático) em Espanha.

Com a nossa modesta participação, a convite da ESAD de Extremadura – Cáceres (parceira da ESAP no programa europeu Erasmus+), a iniciativa converteu-se num encontro ibérico recheado de seminários, de conferências e de ateliês, bem como de dois espectáculos diários nas diferentes salas (Gran Teatro e o Teatro Capitol) desta bela e tão bem conservada cidade da comunidade autónoma da Estremadura.

Pela primeira vez na história das Escolas Superiores de Arte Dramática em Espanha, a Escuela Superior de Arte Dramático (ESAD) da Estremadura organizou um festival em que estiveram presentes as 14 ESAD espanholas e a Escola Superior Artística do Porto (ESAP). (regiondigital.com)

O encontro terminou com a apresentação de “Antígona”, de Sofócles, no teatro romano de Mérida. Cumpria-se, assim, um velho sonho meu: ver uma tragédia grega numa moldura clássica, tão bem conservada no decurso do tempo e da sua história. Anos antes, nos anos 80, eu tinha assistido a uma representação da peça “O Conto de Inverno”, de William Shakespeare, no teatro grego de Epidauro, também notável. O Antigo Teatro de Epidauro é, para mim, um dos mais belos teatros do Mundo!

Teatro romano de Mérida e teatro grego de Epidauro. (Direitos reservados)

No ano passado, deu-se o feliz retorno da Seiva Trupe a uma sala na cidade do Porto – o auditório do Perpétuo Socorro (ou Sala Estúdio Perpétuo, antigo Cinema Estúdio, no complexo Perpétuo Socorro, na Rua Costa Cabral) –, onde, durante um ano, a Companhia de Teatro Seiva Trupe-Teatro Vivo realizou as suas representações da temporada, tentando esquecer a longa peregrinação que se seguiu ao despejo injurioso, pela edilidade do Porto, do Teatro Municipal do Campo Alegre.

Neste ano, desafortunadamente, a Companhia Seiva Trupe, com 50 anos de vida, emblematicamente fundada no dia 11 de Setembro de 1973 (data do golpe de estado militar que derrubou o regime democrático constitucional do Chile e do então presidente, Salvador Allende), volta a sofrer as amarguras de falta de apoio para a continuação do seu labor artístico.

O Dia Mundial do Teatro deveria trazer boas notícias ao mundo do teatro, aos seus criadores, às suas companhias, aos seus actores e actrizes, a todos aqueles que fazem do teatro a sua vida e os seus sonhos – e também em relação às expectativas dos seus públicos –, mas nem sempre isso acontece.

Diversas manifestações em Portugal sublinharam esta data com espectáculos gratuitos, conferências, visitas guiadas, colóquios, leituras dramatizadas e exposições. O teatro é, neste país e no Mundo, um motor, uma engrenagem ou dinâmica de um imenso movimento cultural, que transporta cultura, sabedoria, inteligência, harmonia, discussão e consciência de luta cívica e democrática.

Cena de “As Bruxas de Salém”, com encenação de Nuno Cardoso. (tnsj.pt)

Na cidade do Porto, é de assinalar o espectáculo, no Teatro Nacional São João (TNSJ), “As Bruxas de Salém”, de Arthur Miller, com encenação do seu director artístico, Nuno Cardoso. Trata-se de um texto que atravessa a sua própria história como um símbolo de denúncia contra os medos, contra a intolerância e contra o fanatismo.

É também de destacar o lançamento da obra “Pequeno Livro Arquivo”, livro que acolhe o pensamento e recordações, se assim podemos considerar, de Luís Miguel Cintra, um “senhor do Teatro”, que muito admiro pelo seu trabalho e legado teatral, tendo a sua companhia Teatro da Cornucópia, já extinta2, sido um verdadeiro teatro nacional em Lisboa, com um dos mais belos repertórios da dramaturgia portuguesa e estrangeira e com encenações de inesquecível memória. Muito obrigado ao Luís Miguel Cintra, pelo seu passado e pelo que ainda nos possa dar!

Luís Miguel Cintra (Créditos fotográficos: António Pedro Ferreira – expresso.pt/cultura)

A propósito do lançamento da obra “Pequeno Livro Arquivo”, em 29 de Março de 2023, no Teatro Carlos Alberto, pelo poeta, cardeal e ministro da Cultura e Educação do Vaticano, José Tolentino Mendonça, a página electrónica do TNSJ expõe acerca do autor:

Homem de mil personagens e de outros tantos palcos, Luis Miguel Cintra arruma nas páginas deste livro o seu “arquivo afetivo”. “Do presente para trás, como faz a memória”, reúne textos que foi escrevendo sobre teatro, cultura, os interstícios da arte, os amigos, a vida. Pequeno Livro Arquivo dá conta de um trajeto de grande responsabilidade artística, quase todo dedicado ao teatro, visto como uma “tentativa de diálogo com os outros”. Traça o rasto da companhia que dirigiu ao longo de 40 anos, o Teatro da Cornucópia. “Houve uma sala que se chamava Teatro do Bairro Alto. Era como um hangar, um atelier, onde centenas de pessoas foram trabalhando muitas imagens da vida.” Neste “arquivo de hesitações, dúvidas e conflitos”, é a vida que permanece como demanda: “Senti vontade de rever questões de religião. Quis e quero ainda perceber o que é a vida.” Estes são os pensamentos, palavras, atos e omissões de uma figura maior da cultura portuguesa.

Na ocasião, Pedro Sobrado (presidente do Conselho de Administração do TNSJ) manifestou que “Luís Miguel Cintra foi e é um procurador da República, não no sentido judicial, mas como alguém que esquadrinha e pesquisa e é uma honra tê-lo na nossa presença”.

Pedro Sobrado foi reconduzido na presidência do Conselho de Administração do Teatro Nacional São João, no Porto. (jn.pt)

Como informa Catarina Ferreira, no Jornal de Notícias (edição de 29.03.2023), José Tolentino Mendonça, “apanhado pela covid”, não pôde estar presente fisicamente na sessão, mas fez uma declaração em vídeo, contando que esta obra “é ensaística, não apresenta uma tese, mas uma quantidade de interrogações”, acrescentando que “o corpo de cada um de nós é um arquivo e, no caso de Luís Miguel Cintra, é um arquivo de todas as encenações que fez”. Tolentino Mendonça relembrou, ainda, que “o papel da cultura não é um gesto individual, é uma corrida de estafetas, onde temos de passar o testemunho uns aos outros“.

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Notas:

(Créditos fotográficos: Esperanza Rubio, 2018 – librerialamoderna.com)

1 – José Ramón Alonso de la Torre nasceu em Cáceres, no ano de 1957. No seu percurso de vida tem desenvolvido actividade como articulista, escritor e professor de Língua e Literatura, na Galiza e na Estremadura (nos institutos de Vilagarcía de Arousa e Arroyo de la Luz). Dirige a Escola Superior de Arte Dramática da Estremadura (ESAD de Extremadura), desde a sua criação, em 2009. Colabora na imprensa escrita, desde 1986, em diferentes jornais estremenhos e galegos. Actualmente, escreve na contracapa do jornal HOY, de segunda-feira a sábado, e na contracapa da edição dominical de Arousa do La Voz de Galicia. Também no suplemento dominical El Semanal, publicou uma série de reportagens sobre o narcotráfico nos anos difíceis, quando a sociedade galega começou a tomar consciência do problema. Foi apresentador e colaborador em vários programas de televisão e publicou dois livros em galego sobre géneros jornalísticos e vários livros, em Espanhol, sobre La Raya e a Estremadura (espanhola). Em 2019, a editora La Moderna publicou o seu primeiro romance, “Expediente Ojos de Orgasmo”, uma abordagem sobre o impacto do narcotráfico no mundo das marisqueiras da Ria de Arousa. Em 2020, surgiu o primeiro volume da sua trilogia “El peluquero de Franco”, considerado o seu projeto de narrativa mais ambicioso até hoje.

2 – Podemos ler num texto de esclarecimento do Teatro da Cornucópia: “No dia 17 de Dezembro de 2016, foram, pela última vez, abertas as portas do Teatro da Cornucópia com entrada livre para apresentação de um recital de textos de Apollinaire, em que participaram inúmeros actores, músicos e cantores que connosco trabalharam ao longo dos anos. Esse foi também o dia escolhido para o lançamento do 2.º volume do livro/catálogo dos últimos 14 anos de actividade da Companhia. […]”

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03/04/2023

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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