Aldeia de uma pessoa só

 Aldeia de uma pessoa só

O sol, a lua, as estrelas e o céu. Tudo propriedade de Elsa. Olhos da cor do oceano que raramente viu. Rosto crispado que testa a apropriação do astro-rei. Os paralelos salpicados de excrementos de cabras definem as ruas ladeadas pelas pequenas casas de xisto esquecido no tempo. São sinais de vida em Aigra Velha, em pleno coração da Serra da Lousã, no concelho de Góis. Elsa Maria, única habitante da aldeia, herdou do marido o sobrenome, Claro. O luto e a tristeza pela perda de André há 10 anos vão-se esbatendo com o tempo. O companheiro de vida e pai dos filhos, que acalentam a esperança de um dia ver, de novo, a aldeia mais povoada, partiu prematuramente. “Tinha ainda tanto para dar”. Estava a um passo de conseguir que as estradas de acesso à povoação fossem alcatroadas. André Claro foi um dos grandes impulsionadores da criação da Rede das Aldeias do Xisto.

Elsa Maria nasceu e cresceu na Lousã. O pai morreu jovem e a mãe ficou sozinha a criar e educar seis raparigas que entre todas partilhavam duas sardinhas a uma refeição. “Quem ficava com a cabeça chupava, chupava entre cada batata cozida para lhe tomar o gosto”. Aos nove anos já trabalhava a dias em casa de famílias abastadas. Elsa diz que não foi propriamente infeliz, mas “a vila era demasiado povoada”. Quando André a pediu em casamento deu-lhe a escolher. Lisboa ou aquele local “mais próximo do céu”, de onde ele era natural. Não hesitou.

Dos verdes das vastas áreas de pastoreio, dos férteis terrenos agrícolas e das vistas para a “majestosa” Serra da Estrela e dos “imponentes, inspiradores e protetores” Penedos de Góis vislumbrou um futuro auspicioso. E não se enganou. “André era um homem sábio, muito inteligente”. Aos 10 anos já percorria a Serra onde do Trevim se alcança o ponto mais elevado do ramo norte da Cordilheira Central. Não seguiu os conselhos do pai para continuar os estudos. Vigiava, apenas com a ajuda de uns binóculos, um rebanho de 400 cabeças de gado. Mais de 500 hectares de pasto. Ideais para a alma quente e as mãos frias de Elsa. Boas para produzir o queijo de cabra.

Ainda hoje a venda dos que vai produzindo garantem parte do sustento. Pese os menos de 200 euros por mês fixos que recebe serem suficientes para “tudo o que preciso”. É a pensão de viúva. “E ainda tiro 60 euros mensais para pagar a contribuição à Segurança Social, quero garantir uma reforma”.

Estradas de terra batida e uma promessa do Município de Góis, como prenda de casamento, há quase quatro décadas, de que seriam “em breve alcatroadas”. “A variável estrada é prioritariamente um indicador da acessibilidade intra-concelhia. Um dos índices que definem a interioridade”. Alexandra Rodrigues, enquanto investigadora do Instituto Nacional de Estatística, num dos muitos estudos que realizou ao longo dos anos sobre a Região Centro, nomeadamente com base em dados recolhidos nos Censos das últimas duas décadas, escolheu-o como um dos elementos para “quantificar o conceito de interioridade” na análise que elaborou e apresentou em o “Índice de interioridade: um estudo para Portugal continental”. Conceitos “Norte-Sul”, “Rural-Urbano” e “Litoral-Interior” são dicotomias necessárias para se definir “uma fronteira real entre duas realidades económicas que se assumem como opostas”, escreveu, então, no referido estudo.

Com andar firme e passo certo, Elsa caminha por trilhos asfaltados a pedra e poças de lama ou terra seca muito mais segura do que “quando tenho de andar pelas ruas de Lisboa ou mesmo de Góis”. Quando se afasta destes caminhos sente dores de cabeça e tonturas. Ao contrário da mãe que sentia o mesmo quando subia a Serra da Lousã para visitar a filha, o genro e os netos. Quando está afastada do lugar onde habita Elsa Maria sente que o essencial está longe do seu alcance. No seu oásis tem acesso a tudo. Vinte minutos a pé para baixo e 25 a 30 para cima. Nos dias solaregos vai tomar café a Aigra Nova. “E dar dois dedos de conversa”. Outra das aldeias da rede das Aldeias do Xisto onde também só habita uma pessoa, uma cunhada de Elsa. O espaço é explorado pela Lousitânea – Liga de Amigos da Serra da Lousã, mas quem lá trabalha não vive no local. Esta é uma associação sem fins lucrativos, com sede em Aigra Nova, responsável pela criação do Eco-Museu Tradições do Xisto das Aldeias do Xisto de Góis, onde se inclui também a Comareira, a mais pequena das aldeias da rede das Aldeias do Xisto. Aqui também só habita uma mulher. Três aldeias serranas. Três habitantes, uma em cada aldeia. Três mulheres. Três histórias de vida. De sobrevivência e resiliência. De que só as próprias e aqueles cumes, encostas e vales conhecem os segredos, verdadeiros enigmas e mistérios de como viver só no seio de uma paisagem por vezes agreste, hostil. Também narrativas de grandes feitos, perpetuadas pelos trilhos e no xisto que teimam em imortalizar memórias.

Elsa Maria, a que menos se importa de que sua história (ou parte dela) seja contada, é uma campeã do jogo da malha ou do chinquilho como gosta de lhe chamar. Ela e o marido acumularam troféus pela região. Ainda hoje bate quem quer que seja. Quando a família e os amigos se juntam já sabem que dificilmente vencem a campeã. Os dotes desportivos foram herdados pelos filhos. Atletismo e natação eram os desportos de eleição dos filhos. Sobretudo, Alexandra e Pedro só conheciam os primeiros e segundos lugares do pódio. Mas, também Catarina “era uma desportista nata. Ela e a irmã quando se juntam aqui fazem longas caminhadas por essas encostas”. O cenário épico e natural da região, propício à prática de diferentes deportos de montanha e aventura, não se compara ao de nenhum circuito de manutenção ou ginásio por muito bem equipados que sejam de uma qualquer cidade ou vila. É um património que Elsa teima em preservar: “A Serra, estas aldeias, eu e quem habita por estas lugares somos muito mais do que memórias, somos gente, somos presente e temos voz”.

“Galinha de campo não quer capoeira”

A irmã está sempre a desafiá-la para que a visite no Canadá. “Viagens e estadia, tudo pago pelo tempo que quiser”. O mesmo convite faz a irmã que vive em Lisboa. Elsa não cede. Quando os três filhos estavam a estudar em Aveiro ainda lá chegou a ir duas vezes, por eles, por insistência do marido. “Galinha do campo não quer capoeira”, justifica-se.

Há muito que o padeiro, o peixeiro e os merceeiros ambulantes deixaram de parar junto à entrada onde os veículos têm de ficar estacionados num parque cimeiro à aldeia de uma única rua. Traço tipicamente medieval. As casas tinham ligação interna entre si com o objetivo de proteger as gentes e os animais domésticos das intempéries e dos lobos.

Hoje a ameaça vem das raposas, dos javalis e dos veados. “Gosto de trabalhar para aquecer, não para arrefecer”. Refere Elsa Maria que desafia quem introduziu estas espécies que não são autóctones daquela região a pagar-lhe os prejuízos ou a retirá-las daquele habitat.

Os joelhos acusam os sinais do tempo. O “coração é de um touro” garantem os médicos que recomendam que “tenha cuidado com a boca”. A sopa de feijão com orelha de porco salgado e chouriço são a receita ideal para o colesterol elevado. Mas, também, a vitamina que garante os longos dias de trabalho. “E, sempre que possível, um copito de vinho tinto à refeição”. No verão os dias começam pelas cinco horas da manhã. No inverno cerca de duas horas mais tarde. Peixe cozido, bifes de frango grelhados ou os queijos frescos que produz entre abril e julho ou agosto não garantem as forças necessárias para 14 ou 16 horas de trabalho. Pelo menos, não sempre, garante com um sorriso rasgado e matreiro que lhe realça o corpo franzino.

“A costa marítima contribui de forma notável para desenvolver algumas das nossas principais atividades económicas”. São conclusões de Alexandra Rodrigues que nada dizem a Elsa. A sua atividade económica principal é a pastorícia e desenvolveu-a em pleno coração de verdes vales e encostas serranas. “Sou uma mulher pobre de grande riqueza”. Diz não guardar dinheiro nem nada de valor em casa. Tem todo o património disperso pela Serra e pela vila acorada no sopé banhada pelo rio Ceira.

A chave está sempre na porta, não vá alguém chegar sem que esteja. “Entrar no pátio qualquer um pode entrar, para sair é que não há garantia de como sairá”. Um pitbull faz a seleção natural de quem pode passar pela sombreira de aceso à casa. Alexandra, Pedro e Catarina são sempre bem-vindos. Filhos de Elsa Maria e André Claro. Sonham voltar aquele cume a 770 metros de altitude.

Alexandra “é a mais estudada”. Acompanha grupos ao estrangeiro como tradutora “resultado da licenciatura em Línguas e Relações Internacionais tirada na Universidade de Aveiro. O resto do tempo passa-o ao computador”. É um trabalho que sempre quis ter, diz Elsa. Mas, e porque há em todos um “mas” à espera de ser ultrapassado, Alexandra quer voltar e reerguer, com os irmãos, pedra por pedra, algumas das casas daquela que é uma das 27 aldeias da Rede das Aldeias do Xisto. O xisto que reveste paredes e telhados esquecidos no tempo. Um potencial turístico que Pedro há muito lhe reconhece. A mãe afirma que “herdou do pai o gosto pela revitalização do lugar”. É animador turístico e monitor de desportos aventura. A passagem por aqueles caminhos de cabras e de pessoas é obrigatório. Transfere para os “novos descobridores e aventureiros” as sensações, os cheiros e as memórias dos tempos em que a aldeia fora povoada por mais almas, mas também a força, a determinação e a sabedoria da mãe e das gentes que resistem a permanecer pela Serra.   

Dezasseis cabeças de gado e a Faísca. A cadela que acompanha ou substitui Elsa como guardadora de rebanhos e de sonhos. “Já foram mais”, fala entre lágrimas. “O frio deste inverno foi cruel. As pernas tremiam-me sempre que tinha de abrir o curral pela manhã”. Talvez em breve venha, de novo, a ter mais. Os filhos dão-lhe todo o apoio.

Há outros afazeres enquanto o rebanho pastoreia ou está recolhido na corte. Tratar das vedações, que foi obrigada a colocar em largas extensões de terrenos para impedir a passagem de veados, javalis e raposas que lhe destroem as sementeiras, as pastagens ou matam os animais. Semear e plantar os “mimos” que cultiva para consumo próprio e para os filhos. Chora de tristeza ou de alegria, fala com as cabras, as galinhas, os pássaros ou com os cães e canta. Anseia pelos dias em que Penélope corre pelos campos quando vem visitar a “Essa”, a avó das cabras. São “momentos únicos”. Nunca se sentiu ou sente só. A exceção foi para a época que se seguiu à perda repentina do marido. O tempo traçou outros objetivos. Além das cabras, das galinhas, da Faísca e do pitbull, a sua principal companhia são as estrelas, a lua, o sol e o céu. Apenas o frio, a neve, a chuva e, sobretudo o vento e as fortes trovoadas que fazem tremer as paredes de mais de 50 centímetros de espessura da casa, a fazem desejar descer a Góis para ver os filhos e a neta. Residem todos na vila.

Catarina trabalha em Miranda do Corvo. Vai e vem todos os dias. Aos fins-de-semana reveza-se com os irmãos para levar à aldeia bens essenciais à mãe. Além das mercearias, “bifes de frango e peixe”. É Alexandra quem cede às palavras doces e aos “caprichos da mãe. Apenas um pouco de toucinho, um chouriço e uma orelhinha de porco. Filha, só desta vez”. Tal como os irmãos, Catarina anseia transformar algumas das casas em alojamento para turistas. Os que procuram lugares onde a rede de telemóvel é escassa e podem desbravar os caminhos do Parque Florestal da Oitava e da Ribeira de Pena.

Elsa contraria todos os estudos. Vive sozinha na aldeia.

O índice de interioridade de Góis é de 13,66. O de Lisboa 100. Elsa contraria todos os estudos. Vive sozinha na aldeia. Alexandra Rodrigues chegou à conclusão que a “própria história de inúmeros povos tem mostrado que, tendencialmente, as economias se foram desenvolvendo prioritariamente junto da costa marítima e das principais vias de transporte”. Sem automóvel, ou mesmo carta de condução, as pernas da “trabalhadora rural” – “assim estou registada na Segurança Social e nas Finanças” – são a garantia de poder chegar a todo lado. E quando vai despe as calças (um par no verão, dois ou três no inverno). Tira as camisolas que também vai vestindo às camadas. Descalça as botas de borracha e os pares de meias que calça em número compatível com o frio ou as elevadas temperaturas. Retira o gorro de lã, o chapéu ou o boné que a caracteriza e lhe aconchega o pensamento. “Gosto de sair bem arranjada”. O verão é estação do ano em que se sente mais leve e livre.

Fragmento de Aigra Velha.

Aigra Velha também se defende do tempo agreste, das baixas temperaturas e da neve dos tempos invernosos. As construções estão alinhadas como uma fortaleza. O casario está estrategicamente construído, maioritariamente, em círculo. A rua principal e única pode ser cortada sem que a ligação entre as casas seja condicionada. Outras histórias de supervivência e resistência.

Caravanas de comerciantes que calcorreavam as serras pernoitavam no povoado já habitado no século XVI. Os esconderijos existentes entre as cozinhas e os currais permitiam-lhe evitar a confiscação dos produtos. Fiscais do Estado Novo percorriam as aldeias serranas em busca de alimentos de venda proibida. A cumplicidade dos habitantes e o uivar ensurdecedor dos lobos foram sempre uma das estratégias de defesa destes contrabandistas que percorriam a cordilheira central Ibérica.

Elsa não larga o cajado enquanto percorre os pastos. As “titas”, como carinhosamente trata as cabras e os bodes, correm na sua direção quando grita esta palavra. São tudo para esta mulher que sozinha povoa uma aldeia inteira, uma encosta da Serra. Turistas, viajantes, compradores de queijo, de cabritos ou quem quer que apareça. Recebe todos com um sorriso rasgado no rosto que começa a fazer faz jus à idade que se aproxima dos 60 anos. As conversas fluem e as saudades ficam. “Sou amiga de toda a gente”.

Por causa da pandemia passaram-se muitos meses sem que tenha deixado, por umas horas que fosse, a aldeia, vales e encostas circundantes. “Os meus filhos vinham aqui mas não nos cruzávamos por questões de segurança. Deixavam as compras e partiam”. No entanto, quando chegou o dia de aniversário de Alexandra, os filhos insistiram e Catarina foi buscá-la para poder jantar em família. As dores de cabeça não se sobrepuseram ao desejo e enorme vontade de voltar a estar com os filhos e a neta que não abraçou nem beijou mas de quem, pelo menos, sempre pôde estar mais próxima. Voltou de Góis na manhã seguinte. As cabras mais de 20 horas fechadas não. Elsa dá valor à liberdade. Dela e dos seus animais. “Agora quando vêm ou estamos longe uns dos outros ou de máscara. Eles receiam por mim, eu por eles”.

O telemóvel básico, que tardou em ter, liga-a aos filhos que a convenceram também da importância de poder, através dele, pedir ajuda caso lhe aconteça alguma coisa quando calcorreia trilhos e caminhos a milhas de outras almas humanas. A televisão ao mundo, sendo que as escolhas recaem, sobretudo, para séries e filmes antigos. Da “imensidão de canais”, a RTP Memória e o Canal Hollywood são os preferidos. E a aldeia une-a ao universo “que me abençoa todos os dias. Se me dessem de novo a escolher — garante sem hesitação — voltava a fazer tudo igual. Tenho a vida que sempre quis ter, lamento apenas ter pedido o meu marido tão cedo”.

29/04/2021

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Licínia Girão

Licínia Girão é jornalista e, também, uma jurista preocupada com as questões da liberdade de expressão e de criação dos jornalistas, assente num compromisso com a verdade e com a observância do Estatuto do Jornalista e do Código Deontológico. Desassossegada na defesa de um Jornalismo isento, rigoroso e credível, praticado por jornalistas independentes, tem vindo a dedicar-se a estudos e a exercer formação nestas áreas. Atualmente, preside à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista.

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