Algures neste deserto

 Algures neste deserto

© Pixabay

Quando se dizia que a política era como uma espécie de nuvem de fumo atirada ao ar, responsável pela opacidade dos seus agentes e dos efeitos obtidos, assistimos a um novo tempo de estranha clarividência.

Depois de um acto eleitoral condicionado por sondagens manipuladoras – e valerá a pena discutir se elas deverão (ou não) ser sujeitas a uma liminar proibição, um ou dois meses antes do escrutínio, a bem, precisamente, da liberdade –, que, além de terem garantido o espectáculo da política das apostas, do palco, do frenesim, da excitação mediática (ao nível de um derby), granjearam a adaptação de partidos (o caso do Partido Socialista é notório) ao seu efeito de percepção, o palco desloca-se agora para o cenário de guerra. Das legislativas e para cada novo acto eleitoral futuro, deixo apenas esta nota: o partido vencedor será sempre aquele que tirar melhor partido das sondagens, independentemente do seu programa (quer o tenha ou não) e da argumentação ideológica. Salvo se a classe política e a ordem civil, por respeito à democracia e a certo asseio, queiram travar a afronta dos serviços de sondagens da Universidade Católica/Expresso e similares. Mas essa é outra guerra.

Nos últimos dias, as televisões nacionais, e em particular a RTP, esmeraram-se num jornalismo que não pode senão envergonhar a classe. José Rodrigues dos Santos, por exemplo, a quem já ouvimos pérolas como a de que o nazismo teve origem no marxismo ou a de que os nazis prestavam um serviço de tal modo compassivo que até proviam os campos de concentração (a fase anterior ao extermínio) de escolas e piscinas, alimenta agora teses de uma investigação sem investigação, e exulta com os “especialistas” convidados à la carte, que colaboram no delírio: ficámos a saber que os ataques informáticos à Vodafone são, na maior das probabilidades, de proveniência russa. Entretanto, como o palco mediático não pode parar, Cândida Pinto, ao estilo do “algures no deserto” de Artur Albarran, deixa-se filmar de camuflado e capacete junto a uma trincheira, algures na Ucrânia. A peça, note-se, não interessa muito – aliás, ninguém é ainda capaz de explicar se haverá guerra ou se tudo não passa de bluff, de que a própria Ucrânia se possa servir para, como putativo membro da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), gerir as suas vantagens económicas e geo-estratégicas com a Rússia, jogando em dois tabuleiros. Mas, dizia, a peça é o que menos interessa: o cenário, sim. Neve, imagens repetidas de carros de combate e de lançamento de mísseis, montagens de filmes gravados na Bielorrússia ou em qualquer parte (algures) da gélida Rússia, muito frio. As semelhanças mediáticas entre este gelo e o calor do Golfo são só aparentes.

Finalmente, por cá, a nova recomposição parlamentar já se faz, com atenções centradas no patinho feio do Chega (CH). Feitas as leituras ao que esteve na origem do crescimento do partido de André Ventura, tem-se dito pouco a propósito da transferência de votos do próprio Partido Social Democrata (PSD), de que aquele deputado foi, aliás, militante. É algo em que se pode continuar a reflectir, até para especulação futura. Porém, mais do que o cenário montado em torno do CH, convém não desviar os olhos de um fenómeno que não me parece menos perigoso: a ascensão da Iniciativa Liberal (IL). Se não somos tolerantes com o CH, estamos a sê-lo exageradamente com um partido que, vamos talvez dar-nos conta disso tarde de mais, não se quer sentar em qualquer lugar do hemiciclo (evitando estrategicamente o ónus do extremismo), contribuirá para esvaziar as diferenças ideológicas entre esquerda e direita, encherá o parlamento de tropismos e modismos vácuos, mas estará determinado em, atendendo a ditames da ortodoxia financeira, travar a batalha contra os que defendem o Estado Social, mesmo que reestruturado ou robustecido, e em favor dos que pretendem aboli-lo. Eis um novo perigo, esta gente que emerge à custa (ou aproveitando a margem de manobra) do Estado e parece, ingratamente, pronta a cuspir na própria sopa. São pretensos “jovens”, dandiesself-made men (como se alguém o conseguisse sozinho), gente capaz de humilhar os sem-abrigo pela queima de notas à sua frente, como o John Self de Martin Amis, hedonistas e narcisistas. Trazem a boa-nova do liberalismo económico – como se tivessem descoberto a pólvora – e anunciam um admirável mundo novo. Não farão nada pelo seu irmão.

Mas é possível que as tensões políticas e militares à escala planetária, associadas à tragédia ecológica que se anuncia, lhes estrague os planos. O presente, de que tanto vivem, não é assim tão milagroso, pois só se dura enquanto podem durar as nossas ficções. E o futuro também já não é o que era.

Dêem aos jornalistas temas em que pensar, visto cenários não faltarem por aí. Mas alguém lhes lembre que o jornalismo não é ajudar a pintá-los.

15/02/2022

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António Jacinto Pascoal

António Jacinto Pascoal (nasceu no ano de 1967, em Coimbra) é mestre em Literaturas e Culturas Africanas de Língua Portuguesa, especializando-se nas obras poéticas de Nicolás Guillén e José Craveirinha. Estreou-se, em 1991, com «Pátria ou Amor» (Prémio da Associação Académica de Coimbra, prefaciado por Agustina Bessa-Luís). Ensaísta, poeta e contista, surge editado em variadíssimas antologias poéticas, é prefaciador de antologias e autores diversos, e traduziu a obra poética da chilena Violeta Parra. Publicou «Os Dias Reunidos» (1998), «A Contratempo» (2000), «Terceiro Livro» (2003), «No Meio do Mundo» (2005), «As Palavras da Tribo» (2005), «Cello Concerto» (2006), «Pátria ou Amor» (2011) e «As Sete Últimas Palavras» (2017), bem como «Mover-se o Fogo» (2018). Poemas seus estão traduzidos em Inglês e em Finlandês. Em 2018, editou o álbum fotográfico «Banda Euterpe de Portalegre – A Visão do Som». O conto «Os Joelhos do meu Pai» foi primeiramente editado na antologia «Contos da Língua Toda» (em 2018).

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