Amor de perdição “legalizado”

 Amor de perdição “legalizado”

Escultura da autoria de Francisco Simões, que interpreta “O Amor de Perdição” de Camilo. (sicnoticias.pt)

O Largo “Amor de Perdição” é na cidade do Porto e pretende, certamente, lembrar Camilo Castelo Branco e a sua romântica coroa de glória “Amor de Perdição”, romance escrito em quinze dias, na portuense Cadeia da Relação, onde Camilo cumpria pena, pelo crime de adultério praticado com Ana Plácido, “vitimando” a sociedade em que se integravam.

Era a época dos amores proibidos e das tragédias de coração, romantismo português exposto aos ventos de 1861, numa espécie de disfarce monogâmico que não recolhia adeptos, mas, antes, transformava em drama as paixões proibidas entre famílias desavindas.

Camilo interpretou factos, mas valeu-se de si próprio e da história da sua família, para lançar, na maré cheia das letras, um romance de cortar à faca, muito bem escrito, mas de estrutura pouco consistente, em comparação com outras obras do mesmo autor.

No entanto, foi o que mais vingou e originou adaptações várias (para cinema e televisão) que fizeram de Simão Botelho, de Teresa Albuquerque e de Mariana, símbolos dos amores proibidos e das paixões impossíveis, espraiando-se em lenda por Coimbra, por Viseu e pelo Porto, com ecos de êxito em todo o país.

Baseado no mais famoso romance de Camilo Castelo Branco, Manoel de Oliveira realizou este filme, em 1979, que tem como base um triângulo amoroso. (rtp.pt)

“O Amor de Perdição” e Camilo Castelo Branco voltam, agora, às primeiras notícias de jornais, rádios e televisões, pelos piores motivos, ao saber-se que o presidente do município portuense tinha acedido a um abaixo-assinado de trinta e sete individualidades, no sentido de mandar retirar a escultura, da autoria de Francisco Simões, que interpreta “O Amor de Perdição” de Camilo, colocada no largo com o mesmo nome há onze anos!… Ou seja, ficaria o largo sem “Amor de Perdição” ou o “Amor de Perdição” seria posto ao largo e arquivado nas catacumbas camarárias, por entre desperdícios e trastes velhos.

Francisco Simões não merecia o insulto. Camilo Castelo Branco não viria a tempo de reescrever o livro censurado desta forma, nem ele o faria. E o povo da cidade não justificaria a provação.

Rui Moreira (Créditos fotográficos: Câmara Municipal do Porto)

Simão Botelho morreu a caminho de Goa. Teresa de Albuquerque morreu no convento. E a estátua de Francisco Simões morreria às mãos de um puritanismo doentio de indivíduos que, ou não leram a obra, ou entenderam (mal) que Camilo não era, ele próprio, a figura principal do “Amor de Perdição”.

Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto, reverteu a sua decisão inicial de aceder ao abaixo-assinado das trinta e sete “personalidades” e, baseando-se numa desculpa legalista, resolveu manter a estátua no local. Mas só por isso: pelo legalismo de uma decisão camarária.

Por mim, sinto dó dos que não sabem, dos iletrados, dos falsos moralistas, dos deturpadores da vida e dos que andam pelo Mundo a fingir o que não são.

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18/09/2023

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Fernando Correia

Fernando Lopes Adão Correia nasceu em 1935. É jornalista, autor e comentador de rádio e de televisão. Começou na Emissora Nacional, aos 19 anos, e passou pelo Rádio Clube Português, pela RDP, pela TSF-Rádio Jornal, pela TVI, pelo jornal vespertino A Capital, pelo jornal O Diário, pelo Record e pelo Jornal de Notícias, com textos publicados em vários outros jornais e revistas. É autor de 43 títulos, entre os quais se destacam os recentes livros: “E Se Eu Fosse Deus?”, “O Homem Que Não Tinha Idade”, “Piso 3 – Quarto 313”, “Diário de Um Corpo Sem Memória”, “São Lágrimas, Senhor, São lágrimas” e “Um Minuto de Silêncio”. O seu próximo livro (a publicar) chama-se “A Mística do Tempo Novo” e é um ensaio filosófico, de auto-ajuda e acerca da construção do Homem Novo. Dos programas que realizou e apresentou na rádio destacam-se: “Programa da Manhã”, “De Um Dia Para o Outro”, “Falar é Fácil”, “Lugar Cativo” e “Bancada Central”, título que, agora, recupera no jornal sinalAberto. Deu aulas de Ciências da Comunicação e de Sociologia da Comunicação no Instituto Piaget, na Universidade Autónoma de Lisboa (como convidado), no centro de formação Palavras Ditas e na Universidade do Algarve (também como convidado).

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