Anacleta e a comovente história de Fantasma

 Anacleta e a comovente história de Fantasma

Ilustração: Sandra Serra

(*)

Por aqueles dias de março, a cegonha Anacleta pavoneava-se pelos campos e telhados do casario, enchendo o bico a contar as suas aventuras, com mil e uma histórias das imensas viagens por terras de África.

O gato gostava de a ouvir e subia, por essa altura, ao telhado da casa grande, em cuja chaminé a cegonha fazia todos os anos o ninho, alimentando os seus irrequietos «cegonhitos».

Ficava ali, durante as vagarosas e ensolaradas tardes a escutá-la, encantado por ter uma cegonha viajada na sua vida.

Uma das histórias narradas – a do encontro de Anacleta com o elefante Fantasma – foi tão perturbadora que Rezinga nunca mais a esqueceu.

Fantasma fora um filhote lindo e forte aos cuidados da sua zelosa mãe. Mas, em certo dia, vieram uns homens munidos de ferros e correntes e levaram-no para muito longe, roubando-o à Natureza.

Fantasma sofreu muito com a separação da mãe. Era ainda um pequeno elefante que passava o tempo, acompanhado por ela, a brincar e a passear pelos grandes espaços selvagens de África.

Foi levado para a Ásia, onde se tornou um elefante em cativeiro, num lugar com magotes de turistas.

Anacleta entaramelava as histórias à sua maneira. E saltava de uma para outra a uma velocidade que baralhava o entendimento dos mais atentos. Mas o gato Rezinga ficou comovido com aquele relato e queria saber pormenores.

– O que é um elefante em cativeiro? – perguntou ele.

A cegonha pensou um pouco e recordou-se do que Fantasma lhe tinha contado, dolorosamente, quando, em determinada ocasião, se encontraram ao amanhecer, junto de um riacho.

– Um elefante em cativeiro vive longe do seu habitat natural, como se tivesse sido aprisionado. – respondeu Anacleta.

– Fantasma, ainda pequeno, foi amansado, quer dizer, domado. Ele revelou-me que quebraram o seu espírito selvagem e que o forçaram a apresentar espetáculos, além de ser montado por turistas. – continuou.

– Amansar um elefante deve ser terrível! – observou o gato.

– Sim, é muito cruel. São atados com cordas e correntes, sem quase se poderem mover, e têm de obedecer ao seu treinador. Imaginas um animal tão grande, habituado a percorrer livremente os grandes territórios selvagens, preso? – indagou a cegonha.

O gato estava estupefacto. Não fazia ideia de que estas coisas aconteciam no Mundo.

Anacleta acrescentou:

– O elefante confidenciou-me que os homens usavam ganchos pontiagudos de metal, varas de madeira e chicotes que lhe causavam dores intensas. Foi assim que o amansaram. Ele passou a ter medo dos seres humanos. E também padeceu de doenças e teve muita fome e sede. O pobre Fantasma definhava de dia para dia.

– E depois? O que lhe aconteceu? Como voltou a África? – interrogou o gato, curioso.

– Passou uma vida de sofrimento, muito traumatizado. Passeava os humanos, fazia truques para os divertir e vivia num pequeno acampamento para elefantes, acorrentado e sem qualquer hipótese de se libertar, pois tinha de obedecer sempre. – explicou a cegonha.

– Mas, como regressou a África? – insistiu o gato, impaciente.

– Só quando morreu, já muito velho e enfermo pelos maus-tratos, ele ficou livre. Então, o seu espírito regressou a África e, acredites ou não, percorria as grandes superfícies onde vivera com a sua mãe e brincara com as outras crias, quando era pequeno. De vez em quando, aparecia a seres livres, assim, como eu. Por isso se chama Fantasma. – declarou  Anacleta, um tanto envaidecida, por ter sido escolhida por um elefante fantasmagórico para ouvir a sua história de vida.

Rezinga considerou toda aquela narrativa impressionante. Seria mesmo verdade? Como podem os adestradores de elefantes cometer atos tão cruéis? E os turistas saberão o sofrimento a que estão sujeitos aqueles animais? Talvez devesse investigar o tema da exploração dos elefantes africanos e asiáticos. Quanto a ser um fantasma… Não estava certo se deveria acreditar em fantasmas, embora a ideia da sua existência fosse fascinante.

Naquele fim de tarde, enquanto o sol atiçava os últimos raios avermelhados no céu azul, Rezinga subia à alta laranjeira do jardim e, camuflado pela folhagem, cismava com o elefante vagueando na Natureza, majestoso e livre. Preferia imaginá-lo assim, em vez de pensar nele explorado e acorrentado num espaço exíguo, esmorecido pelo seu martírio.

………………….

(*) In “Rezinga – Um gato do outro mundo”

18/07/2022

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Celeste Almeida Gonçalves

É professora e escritora de obras para a infância e juventude, desenvolve vasta atividade de mediação de leitura em escolas e bibliotecas e dinamiza variados projetos, no âmbito da leitura e da escrita criativa.

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