Andar à deriva

 Andar à deriva

(Créditos fotográficos: Diego Catto – Unsplash)

Vivemos num mundo tão dependente das tecnologias da informação e comunicação (TIC) que já nem nos apercebemos de quão ubíquas são, e muitos não entendem como foi possível existir civilização sem elas.

É certo que as TIC são, nos dias de hoje, não só uma ferramenta de trabalho fundamental, mas, também, um pilar da nossa sociedade. Sem as TIC, voltaríamos a ter níveis de produtividade insustentavelmente baixos, incompatíveis com o mundo atual. Sem as tecnologias da informação e sem as redes, praticamente, todos os serviços e infraestruturas críticos deixariam de operar. Todos os setores de atividade – primário, secundário, terciário – regrediriam muitas décadas. Hoje, travam-se guerras atacando os sistemas e redes informáticos, pois, se forem impedidos de funcionar, os prejuízos serão elevadíssimos.

 Vários “hacktivistas” integram o ciberexército que, por exemplo, afirma estar a lutar ao lado do povo ucraniano no mundo digital. Porém, segundo os especialistas, a existência de um grupo de “hackers” tão grande aumenta bastante o risco de segurança ao participar nestas operações. (tvi.iol.pt)

Mas as TIC são, na atualidade, muito mais do que uma ferramenta de trabalho ou a base de sustentação do nosso mundo. Hoje, existe o culto da tecnologia. Ter dispositivos de última geração é moda e sinal de status, tal como vestir peças de roupa de marca, usar joias, ter carros topo de gama ou fazer férias em estâncias de luxo. Pouco importa que o poder de processamento e de armazenamento de um telemóvel corrente seja muitíssimo maior do que o de um supercomputador de há três ou quatro décadas, ainda que as funcionalidades desse telemóvel sejam utilizadas numa baixíssima percentagem. Pouco importa que o preço desse dispositivo seja superior ao do salário médio e represente um encargo que se estenderá por alguns anos, a somar a todos os outros. O que interessa é que o ecrã seja grande ou se dobre, que tenha múltiplas câmaras, que seja muito fino, que o design seja de topo e que o modelo não tenha mais do que um ano.

A tudo isto, há a somar o fascínio da inteligência. Porque somos seres inteligentes, sempre nos sentimos maravilhados e inibidos pela inteligência dos outros. Agora é a inteligência artificial que nos inibe e que veneramos. Se alguma qualquer aplicação nos aconselha a fazer algo, não questionamos. Tudo o que fazemos, sentimos ou dizemos é analisado e processado por sistemas de recomendação, que por nós decidem o que é conveniente que vejamos ou façamos, e que restringem as opções que se nos apresentam. Já não precisamos de pensar nem de tomar decisões porque os sistemas ditos “inteligentes” as tomam por nós.

(Créditos fotográficos: Doug Linstedt – Unsplash)

Tudo isto acontece com o nosso acordo tácito. Não queremos ser, mas apenas parecer. Não queremos ler o texto escrito em letrinhas muito pequenas e concordamos de imediato, pois, o que importa é avançar para a página seguinte, com medo de ficar de fora e perder algo importante e essencial, que todos os outros já sabem, exceto nós. Apregoamos – para que fique claro para os outros – a individualidade, a defesa da privacidade e a proteção de dados, mas, ao mesmo tempo, abdicamos do raciocínio. Não queremos pensar muito, apenas andar à deriva. Afinal, nisso não somos diferentes dos humanos da sociedade pré-TIC.

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03/04/2023

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Fernando Boavida Fernandes

Professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, sendo docente do Departamento de Engenharia Informática. Possui uma experiência de 40 anos no ensino, na investigação e em engenharia, nas áreas de Informática, Redes e Protocolos de Comunicação, Planeamento e Projeto de Redes, Redes Móveis e Redes de Sensores. É membro da Ordem dos Engenheiros. É coautor dos livros “Engenharia de Redes Informáticas”, “Administração de Redes Informáticas”, “TCP/IP – Teoria e prática”, “Redes de Sensores sem Fios” e “Introdução à Criptografia”, publicados pela FCA. É autor dos livros “Gestão de tempo e organização do trabalho” e “Expor ideias”, publicados pela editora PACTOR.

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