Ano Propedêutico
Modesto embrião da Universidade Aberta, o Ano Propedêutico constituiu uma importante e frutuosa experiência pedagógica, na qual tive a oportunidade e o privilégio de colaborar.
Viviam-se anos felizes de renovação de um país, em liberdade, depois de quatro décadas de mordaça política e religiosa. Era ministro da Educação e Investigação Científica o muito jovem Mário Augusto Sottomayor Leal Cardia (1941-2006), no Governo de Mário Soares (1924-2017), sendo Presidente da República o general António Ramalho Eanes. Foi um tempo em que a cultura, a integridade e a política andaram de mãos dadas. Foi um tempo de esperança que, depois, uma certa classe de políticos impreparados – bem-intencionados uns, arranjistas outros –, a coberto dos respectivos aparelhos partidários, se encarregou de destruir.
O Decreto-Lei n.º 491/77, de 23 de Novembro, reconhecia, no respectivo preâmbulo, ser Portugal um dos poucos países da Europa ainda com escolaridade pré-universitária de apenas onze anos. Este documento considerava a necessidade de facultar aos nossos técnicos uma preparação de nível cada vez mais desenvolvido, capaz de acompanhar a evolução crescente da ciência e da técnica. Por último, afirmava ser imprescindível alargar a formação dos nossos alunos em matérias que suportassem novos conhecimentos, cada vez mais complexos e para os quais se tornava necessária uma sólida preparação básica.
Reconhecendo como difícil a criação imediata de um 12.º ano de escolaridade, inserido no então sistema de ensino português, o governo considerou a urgência de avançar com a institucionalização de cursos propedêuticos do ensino superior. Na óptica do legislador, tal permitiria não só uma reciclagem da preparação adquirida no ensino secundário, como, sobretudo, a leccionação de matérias básicas comuns a várias áreas do saber, correspondentes aos diversos cursos superiores.
Foi assim instituído, a nível nacional e em substituição do Serviço Cívico Estudantil, o Ano Propedêutico, a funcionar na dependência da Direcção-Geral do Ensino Superior, tendo como presidente da Comissão Científico-Pedagógica Armando Rocha da Trindade (1937-2009), cargo que exerceu até 1980, ano da institucionalização do 12.º ano de escolaridade, pelo Decreto-Lei nº 240/80, de 19 de Julho.
Se outros méritos não tivesse, o Ano Propedêutico deu lugar, de um fôlego, à maior produção de textos de apoio, em língua portuguesa, até então produzida em praticamente todas as áreas do pré-universitário, ao serviço de gerações de professores do ensino básico e secundário e de estudantes universitários. Uma práxis que fez História, que deu frutos e que está patente na vultuosa e diversificada produção editorial da Universidade Aberta, que lhe sucedeu.
O Ano Propedêutico foi a primeira iniciativa de ensino superior à distância, dirigido a uma grande audiência, dispersa por todo o território nacional, com lições ministradas a partir de emissões televisivas. Sem salas de aula nem turmas, os alunos, nas suas casas, complementavam os respectivos estudos com base em textos produzidos especialmente para o efeito. Esta experiência pedagógica levou à criação do Instituto Português de Ensino à Distância (1980-1988), a que se seguiu, em 1988, a Universidade Aberta, tendo como fundador e primeiro reitor o citado Rocha Trindade, catedrático de Física do Instituto Superior Técnico.
A convite deste colega, participei na Comissão Científico-Pedagógica, como responsável do programa de Geologia, cabendo-me a elaboração dos respectivos textos de apoio, tendo escolhido para elaborar e ministrar as lições televisionadas o meu ex-aluno José Manuel Vale Brandão.
A Nota Introdutória do 1.º dos três volumes do divulgadíssimo “ap – Geologia” (1977-78) acentuava a minha esperança de que esta experiência, em si mesma, ou como alternativa resultante de dificuldades estruturais do ensino, em geral, e do pós-vestibular, em particular, pudesse ser de grande utilidade. Foi esta esperança que ditou a anuência que, embora reticente, dei a um convite daqueles que deixam pouca margem a outra resposta que não seja a afirmativa.
Aceitei na convicção de que algo teria de ser feito e apoiado na garantia dada de que os textos solicitados teriam carácter experimental e, como tal, seriam, necessariamente, revistos e melhorados, a partir dos ensinamentos obtidos no decurso da sua utilização. Necessários por não haver outros e imediatos por serem urgentes, estes textos justificaram o entusiasmo que me mereceram.
Mas o entusiasmo e o empenhamento não suplantam todas as carências. As minhas e as que me eram estranhas. Nestas, não eram menores a falta de tempo para elaboração de um plano global nem a urgência de conceber, lição após lição, um “rosário” de textos, com sacrifício da unidade e da coerência globais, a par da impossibilidade de recolha e organização de documentação gráfica adequada e, ainda, da inexistência daquela revisão morosa e reflexiva, sem a qual a obra pedagógica e científica desmerece. Todavia, as circunstâncias foram estas e não outras.
Foi com o sentimento de participar numa aventura. Uma aventura que deu certo. Dela resultaram três “livrinhos” – os ditos “ap” – que fizeram História no ensino da Geologia, em Portugal.
Já tinha escrito alguns artigos e comunicações científicas, mas nunca me abalançara a uma obra desta responsabilidade. O entusiasmo frutificou e a satisfação do êxito constituiu a melhor recompensa.
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15/02/2024