Antígona

 Antígona

Antígona: “Eu vou enterrar o nosso irmão. E me parece bela a possibilidade de morrer por isso.” (Créditos de imagem: Getty Images – bbc.com)

 

(“Antígona, Ode ao Homem”, de Sófocles – tradução de Márcio Mauá Chaves, em 2014)

Enquanto houver guerras em qualquer parte do planeta, “Antígona”, a tragédia de Sófocles, estará sempre actual. Pois, é das consequências de uma guerra fratricida de que se trata. E todas as guerras são fratricidas. Pela actualidade do tema, vou apenas citar dois exemplos que são, neste momento, decorrentes a partir da peça de Sófocles.

O primeiro refere-se a uma nova versão de “Antígona”, pelo Teatro da Rainha, nas Caldas da Rainha, cujo título é Antigonick, da escritora canadiana Anne Carson. A nova versão adaptada da peça “Antígona”, de Sófocles, esteve em cena entre os dias 15 e 25 de novembro deste ano.

(Direitos reservados)

Com encenação de Fernando Mora Ramos, a tragédia grega, de Sófocles, como regista o Observador, na edição de 9 de Novembro, é submetida a uma releitura pela autora, tradutora e professora de literatura grega antiga”, a qual “propõe uma versão com claros intuitos pedagógicos, fazendo uso de um vocabulário contemporâneo e reduzindo radicalmente o texto original, conferindo desse modo à ação uma dimensão rítmica”.

Como adianta o Observador, com base na agência noticiosa Lusa (a partir de uma nota dirigida à imprensa pelo Teatro da Rainha), a versão de Anne Carson – “Antigonick” – expõe “de modo atual a relação entre a autoridade e a desobediência, o poder soberano (o direito de morte) e a defesa de valores que contrariam a lei da cidade, mais de acordo com a relação democracia versus desobediência civil no presente”.

Os versos iniciais correspondem ao Primeiro Estásimo (versos 332-375), da peça de Sófocles e são conhecidos como “Ode ao Homem”. Constituem uma das elegias mais belas escritas pelo poeta e dramaturgo grego, neles se exalta a criatividade do homem e da sua obra na conquista da ciência, da cidadania, da agricultura e da vida, em geral, acabando desta forma:

Mas, curiosamente, é este homem louvado que é capaz de originar as maiores desgraças, aquele que colocará irmão contra o irmão, fazendo que todos os mortos sejam da mesma família, como se destaca na peça, mais de uma vez.

Antígona, por Frederic Leighton (1830–1896). (revistacult.uol.com.br)

Na peça, Antígona desafia o édito de Creonte, tentando, sem autorização deste, sepultar o seu irmão morto, mesmo sabendo que esse gesto lhe trará a morte. Creonte acabará por se arrepender, tarde demais, num cenário em que “por um triz se teria evitado tudo, por um triz tudo acontece”.

Desenho de Siza Vieira que integrou a exposição “Édipo/Antígona”, com textos de Valter Hugo Mãe, que esteve patente, até ao dia 6 de Maio deste ano, na Galeria II da Casa Comum (à Reitoria) da Universidade do Porto. (proximarte.wordpress.com)

(“Antígona”, de Sófocles – tradução de Jaa Torrano, em 2019)

É com esta versão, mais aterrorizante e tenebrosa, que abre o espectáculo de “Antígona na Amazónia”. Estão, apenas, três actores no palco e um músico, para nos revelar a tragédia de Sófocles.

“Antígona na Amazónia” (Créditos fotográficos: Kurt Van Der Elst – agendalx.pt)

Seria normal que perguntássemos: “Mas, onde está o Coro?” O Coro haveria de surgir, mais tarde, num tríptico de projecção em vídeo. Eram os integrantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que colabora no espectáculo. É considerado o maior movimento de trabalhadores sem terra do Mundo. Com os componentes do MST, é criada uma peça alegórica projectada em três grandes telas verticais, sobre a devastação violenta causada pelo Estado moderno, que coloca a propriedade privada acima do direito tradicional à terra.

(Créditos fotográficos: Kurt Van Der Elst – timeout.pt)

A Antígona de Milo Rau / NTGent conta a tragédia que decorre na Amazónia: Todos morremos sozinhos, mas deveríamos viver e criar juntos.” Em diálogo com Sófocles, a encenação de Milo Rau propõe um olhar contemporâneo sobre a exploração da floresta da Amazónia. Integrada no programa do Alkantara, a peça passou por Lisboa e pelo Porto.

Uma reflexão sobre poder, resistência e lei no Brasil contemporâneo, em que o encenador suíço cria uma Antígona política para o século XXI, em conjunto com indígenas, activistas e intérpretes do Brasil e da Europa.

Na Amazónia, Antígona vive e luta pela terra que é sua. (Créditos fotográficos: Moritz Von Dungern – timeout.pt)

Para o espectáculo “Antígona na Amazónia”, Milo Rau e a sua equipa deslocaram-se ao estado brasileiro do Pará, onde as florestas ardem devido à expansão da monocultura de soja e onde a Natureza é devorada pelo capitalismo.

Num pedaço de terra ocupado, perante um cenário em que o estado do Pará e a cidade de Tebas se tornam um só, ainda há referências históricas a observar. Como anota Clarissa Pacheco, na edição de 24 de Abril de 2023 do jornal Estadão, em 1996, “a Polícia Militar do Pará matou 21 trabalhadores rurais na localidade conhecida como Curva do S, onde hoje fica a rodovia BR-155, na entrada da cidade de Eldorado dos Carajás (PA) – 19 morreram no local e dois no hospital”. A jornalista esclarece que os “trabalhadores bloqueavam a pista em um protesto a favor a reforma agrária e contra a demora na desapropriação da terra da Fazenda Macaxeira”.

Militantes do MST e sobreviventes de massacre de Eldorado dos Carajás se juntaram aos actores que encenaram o assassinato de 21 trabalhadores rurais no Pará há 27 anos, em 17 de abril de 1996, para a peça de dramaturgo suíço. (Créditos fotográficos: Nelson Almeida / AFP – estadao.com.br)

Uma das personagens centrais do texto de Sófocles inclui, como noutras tragédias gregas, a personagem de Tirésias, o adivinho/áugure cego que antecipa o Mundo à realidade dos acontecimentos. Ele é, como a Cassandra de Ésquilo na “Oresteia”, o visionário ao qual não prestamos atenção.

Para esta personagem, o encenador contou com a colaboração (também em vídeo) de Ailton Krenak, líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta, escritor brasileiro da etnia indígena krenaque e “imortal” da Academia Brasileira de Letras.

Ninguém melhor do que ele para falar das condições actuais da Amazónia: a seca, o desaparecimento das árvores e das espécies, dos animais autóctones e do panorama devastador que, hoje, apresenta aquele território do Brasil.

A sua visão só pode ser comparada à da peste, nas primeiras palavras da peça “Édipo Rei”, primeira parte da trilogia conhecida como o Ciclo Tebano, juntamente com a “Antígona” e “Édipo em Colono”.

Ailton Krenak: líder indígena, ambientalista, filósofo e escritor brasileiro.
(Créditos fotográficos: Vozes da Floresta/YouTube/Reprodu​ção –
oglobo.globo.com)

Esta “Antígona na Amazónia” é, sem dúvida, um dos mais potentes e impactantes espectáculos que tenho visto ultimamente e que revitalizam a minha esperança no teatro latino-americano, que está tão ausente dos nossos palcos. Também é de assinalar o magnífico trabalho videográfico, muito mais próximo do cinema que do audiovisual, que temos visto em alguns espectáculos.

Para terminar, quero ainda referir algumas das muitas outras Antígonas: a de Jean Anouilh, a de Bertolt Brecht e a “Glosa Nova da tragédia de Sófocles”, a versão de António Pedro1, encenada por ele com cenários e figurinos de Augusto Gomes, contando com a interpretação, entre outros actores, de João Guedes e de Júlio Cardoso, no papel de Hémon.

Capa de “Antígona” de António Pedro e pintura de Augusto Gomes. (Direitos reservados)

Dizer que a morte de Carlos Avilez deixa o teatro português mais pobre é muito pouco, muito deve o teatro chamado experimental a este homem que queria ser actor e acabou sendo um dos grandes renovadores da cena, em Portugal. Os que hoje lamentam a sua morte e escrevem palavras meritórias, se calhar, são os mesmos que, em 2018, cortaram os subsídios plurianuais do Teatro Experimental de Cascais (TEC), a sua companhia, com 52 anos de actividade, até ao momento. Vi muitas das encenações do TEC e recordo, por exemplo, “Rei Lear”, com João Vasco. E também o seu belo espectáculo “Amadeus”, para a Seiva Trupe. Sim, faz-me muita falta o Carlos Avilez!

Carlos Avilez (Créditos fotográficos: Carlos Manuel Martins / Global Imagens – dn.pt)

Recomendo-vos a leitura do texto jornalístico de Alexandra Tavares-Teles, na edição de 23 de Novembro do Diário de Notícias, intitulado “Carlos Avilez: o experimentalista”.

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Nota:  

1 – Recorrendo à Infopédia, lemos que “Antígona” foi uma peça levada à cena, em 18 de Fevereiro de 1954, pelo Teatro Experimental do Porto, sob a direcção do próprio António Pedro. “Glosa Nova da tragédia de Sófocles”, a versão de António Pedro, precedida por três antecedentes – a “Antígona” de Anouilh, representada em Lisboa, no Teatro da Trindade, em 1946; a de António Sérgio, de 1930; e a de Júlio Dantas, levada à cena também em 1946, pelo Teatro Nacional –, mas próxima sobretudo da lição de Anouilh (cf. REBELLO, Luís Francisco, prefácio a “Teatro Completo”, Lisboa, 1981, p. 23), apresenta como traço mais saliente, na linha do teatro pós-pirandelliano, a rejeição da convenção teatral, por uma desmistificação da ilusão cénica anunciada num “prólogo”, ao longo do qual, enquanto o encenador explica o significado da peça, os actores preparam-se diante do público para tomar posse das suas personagens, e os técnicos (o electricista, o chefe maquinista) ultimam a preparação do espectáculo; e confirmada no decorrer do texto por personagens que interrompem a “história” para se interrogarem sobre a sua funcionalidade ou das outras personagens. Na voz de Antígona, que, contrariando a interdição do tirano Creonte, cumpre, sem temer a morte, as exéquias fúnebres devidas ao seu irmão Polinices, ecoa uma condenação da tirania e um anseio de justiça, que adensam, relativamente ao texto de Sófocles, o seu carácter de “tragédia da liberdade”, que é a “a tragédia de quem se recusa a obedecer à lei em nome duma lei que é superior aos homens” e “às circunstâncias em que os homens fazem certas leis”.

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11/12/2023

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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