António Ribeiro: Igreja Católica e ditaduras ou democracia
Nos nossos dias, a historiografia e outras ciências sociais – nomeadamente, a antropologia e a sociologia – desenvolveram e têm à sua disposição, pelo menos, quatro metodologias de recolha e tratamento de dados sobre os indivíduos em contexto social: biografias, microbiografias, prosopografias e histórias de vida. A obra que aqui se procura recensear decorre, precisamente, da aplicação da metodologia de investigação biográfica ao percurso de formação profissional e cívico de António Ribeiro, nascido no ano de 1928, Patriarca de Lisboa e, depois, Cardeal-Patriarca de Lisboa (com o nome D. António II) entre 1971 e 1998.
Tendo em conta o peso do(s) catolicismo(s), da Igreja e da “acção católica” em Portugal – neste caso, sobretudo, nos segundo a quarto quartéis do século XX –, a biografia de uma individualidade como António Ribeiro resulta, também, na análise cruzada de problemáticas político-ideológicas nucleares. Destaco, no plano nacional, a evolução do Estado Novo e da situação nos “Territórios Não Autónomos” no pós-Segunda Guerra Mundial, o Golpe de Estado/a Revolução de 25 de Abril de 1974 e a consolidação do regime democrático/a integração na Comunidade Económica Europeia; no âmbito global, a Guerra Fria, a Segunda Vaga de Independências e o pós-Guerra Fria.
Mais especificamente no plano religioso, António Ribeiro presenciou como adulto e interveio em fenómenos como a adaptação da Igreja e da “acção católica” ao pós-Segunda Guerra Mundial, à independência de múltiplos países asiáticos e africanos, à crescente influência global da América Latina; ao Concílio Vaticano II e ao ampliar das clivagens entre “católicos progressistas” e “católicos integristas”; ao aprofundar do debate acerca dos papéis de eclesiásticos e de leigos, de homens e mulheres, etc. António Ribeiro foi, igualmente, o sucessor de Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977) enquanto Cardeal-Patriarca de Lisboa e manteve actividade como sacerdote durante os Papados de Pio XII (1939-1958), João XXIII (1958-1963), Paulo VI (1963-1978), João Paulo I (1978) e João Paulo II (1978-2005).
Em Dom António Ribeiro (Lisboa, Universidade Católica Editora, 2021, 414 p.), Paula Borges Santos terá adoptado uma abordagem sincrética em termos epistemológico-teóricos e discursivos. Por um lado, a presente biografia adopta um registo na aparência descritivo e narrativista, eventualmente mais acessível aos leitores generalistas; por outro lado, a obra inclui referências a temáticas complementares, as quais são abordadas autonomamente e de modo mais estruturado em termos teóricos. O facto de a autora parecer assumir sintonia – ideológica – com o legado decorrente do percurso religioso e cívico do biografado não a levam, no entanto, a eximir-se da aplicação do essencial das regras que hoje fundam a produção historiográfica (científica) nos países com regimes democráticos ou demoliberais abertos.
Considero que, mesmo quando os historiadores se empenham em produzir e em divulgar conhecimento sobretudo científico – isto é, tanto quanto possível objectivante –, continua a justificar-se procurar identificar os respectivos factores de enquadramento cívico e profissional (predominantemente, senso comum e ideologia). Uma tal cautela metodológica será, eventualmente, tanto mais operatória quando, como é o caso deste livro de Paula Borges Santos, a problemática em causa abarca época contemporânea (até ao fim da Segunda Guerra Mundial), história recente (período da Guerra Fria) e, mesmo, história do tempo presente (pós-Guerra Fria).
Evoco, em primeiro lugar, o facto de a obra Dom António Ribeiro ter sido elaborada e publicada num período durante o qual alcançaram grande centralidade as polémicas – ideológicas e científicas –, tanto de historiadores pós-modernos versus historiadores modernos e historiadores neo-modernos, como entre historiadores pós-modernos de extrema-esquerda e historiadores pós-modernos de extrema-direita. Assinalo, entretanto, o facto de, na mais recente historiografia portuguesa, as perspectivas pós-modernas (ainda) não terem atingido a prevalência que conquistaram, por exemplo, nos países anglo-saxónicos, em França e na generalidade dos Estados da América Latina (a começar pelo Brasil).
Diria que, em grande parte, Paula Borges Santos recusa as concepções pós-modernas, segundo as quais a historiografia não pode produzir conhecimento científico (objectivo para os modernos, objectivante para os neo-modernos); aos historiadores apenas caberá a escolha entre leituras justas/mobilizadoras acerca do passado das sociedades humanas e narrativas injustas a propósito do mesmo; os vestígios da realidade – a documentação – só podem ser legitimamente utilizados para reforçar a credibilidade das leituras justas acerca das temáticas consideradas. Malgrado, quer alguma precariedade da explicitação dos pressupostos teórico-metodológicos, quer alguma ambivalência no plano deontológico-epistemológico, a biografia Dom António Ribeiro respeita o grau de exigência da historiografia neo-moderna.
Um segundo âmbito de enquadramento do livro Dom António Ribeiro será o do debate historiográfico e no contexto de outras ciências sociais/das humanidades (científico-ideológico) em torno da reconstituição e análise de informação sobre regimes políticos, em geral, e acerca do Estado Novo português, em particular. Ter-se-ia tratado de uma ditadura autoritária e/ou totalitária? De um regeneracionismo conservador ou de um fascismo? Apesar de a autora não abordar esta problemática formalmente, a mesma surge diversas vezes – de modo difuso – na caracterização do percurso de António Ribeiro e da evolução da Igreja Católica/”acção católica” (em Portugal e à escala mundial).
Pelo menos, desde a década de 1980, revisionismos e negacionismos à parte, entre nós e no plano internacional, o enfoque principal tem sido em torno da maior ou da menor capacidade de objectivação decorrente da aplicação de configurações restritivas ou amplas das categorias teóricas – o que é diferente de adjectivos – de fascismo e de totalitarismo. Atrevo-me a pensar que os importantes fenómenos verificados nos últimos anos (a crise das democracias e do multilateralismo, o aumento da influência das ditaduras e de governos populistas com vectores de autoritarismo; desde Fevereiro de 2022, a guerra de conquista e de devastação, económica e de propaganda que as ditaduras vigentes na Federação Russa – uma das duas maiores potências nucleares do Mundo – e na Bielorrússia estão a impor à Ucrânia), acabaram por se reflectir no modo como a historiografia e outras ciências sociais/as humanidades estruturam conceptualmente a investigação sobre estas temáticas.
O terceiro e mais óbvio nível de contextualização é o da investigação historiográfica, de outras ciências sociais e das humanidades (teologia incluída) acerca da evolução, ao longo do século XX, por um lado, do catolicismo, da Igreja Católica e da “acção católica”; por outro lado, do correlacionamento dos mesmos com o sistema de relações internacionais, com regimes políticos (sociedades civis, sistemas políticos e aparelhos de Estado) e com outras confissões religiosas. Destaco que, durante o percurso de vida de António Ribeiro, o sistema de relações internacionais foi marcado pelas etapas designadas como “Época do Fascismo” (décadas de 1920 a 1940), Guerra Fria (anos quarenta a oitenta) e pós-Guerra Fria (1991-…).
Relativamente ao catolicismo, saliento que, no século XX, se passou da hegemonia de concepções neo-teocráticas e providencialistas para o pluralismo teológico decorrente do Concílio Vaticano II (1962-1965). Por sua vez, na Igreja Católica e na “acção católica”, ao predomínio da Democracia Cristã Conservadora – simbolizada, em Portugal, pelo Centro Académico da Democracia Cristã de Coimbra das décadas de 1910 a 1940 e por Manuel Gonçalves Cerejeira – seguiu-se a tensão entre Democracia Cristã Conservadora e Democracia Cristã Democrática; mais tarde, a conflitualidade entre Integrismo Católico, Democracia Cristã Conservadora, Democracia Cristã Democrática e Teologia da Libertação.
Paula Borges Santos escolheu um registo misto, em simultâneo historiográfico (científico) e de afirmação não explícita de alguma convergência existencial e cívica (ideológica) com o modo como o Cardeal-Patriarca António Ribeiro encarou a situação da Igreja/“acção católica” – e interveio – na etapa final do Estado Novo, face ao Golpe de Estado/Revolução de 25 de Abril de 1974 e ao PREC (Processo Revolucionário em Curso), durante a fase de consolidação do regime democrático. Optou, ainda, por estruturar um discurso sobretudo descritivo (com informação, muitas vezes, inédita ou pouco conhecida), mas intercalado por momentos de análise de questões particularmente relevantes.
Evoco, a este propósito, problemáticas como as posturas da Santa Sé e da Igreja Católica/”acção católica” portuguesas face às desigualdades e/ou discriminações por motivos socioeconómicos e socioculturais, étnicos e religiosos; aos “Territórios Não Autónomos” tutelados por Lisboa e aos conflitos militares aí activos a partir de 1961; às diferentes concepções sobre o papel de eclesiásticos e de leigos no universo do catolicismo; ao Estado Novo e a outras ditaduras – autoritárias e totalitárias, de extrema esquerda e de extrema direita –, bem como aos regimes democráticos e demoliberais abertos; à escalada de radicalização verificada, entre nós, durante o PREC, com particular atenção ao “caso da Rádio Renascença”.
Nesta biografia de António Ribeiro são também observados com detalhe, entre outros, aspectos como o relacionamento tanto com o Cardeal-Patriarca de Lisboa, Manuel Gonçalves Cerejeira, como com os Papas Paulo VI e João Paulo II; a influência não linear dos novos equilíbrios teológios e organizacionais alcançados durante o Concílio Vaticano II; a interacção com organismos de “acção católica” crescentemente em oposição à ditadura; a intervenção em órgãos de comunicação social controlados pelo Estado Novo; o tardio e complexo processo de consolidação da Universidade Católica Portuguesa.
Quanto a vertentes deste livro que, na minha perspectiva, Paula Borges Santos poderia ter elaborado de forma mais objectivante, indicaria, antes de mais, alguma precariedade quer no grau de conceptualização adoptado quer no nível de explicitação das características e do peso relativo das várias alternativas em presença em cada um dos principais momentos do percurso de vida de António Ribeiro. Referiria, igualmente, o menor aprofundamento da reconstituição do percurso do Cardeal-Patriarca de Lisboa na etapa posterior ao 25 de Abril de 1974, por comparação com a atenção dedicada às duas últimas décadas do Estado Novo.
Enumero, finalmente, algumas temáticas que seria relevante, em termos historiográficos, ver mais desenvolvidas na obra Dom António Ribeiro: os contactos estabelecidos, no contexto do Golpe de Estado/Revolução de 25 de Abril de 1974 e durante o PREC, com correntes político-militares, com partidos políticos e com representações diplomáticas; as interacções com individualidades, organismos e organizações católicos que defendiam a alteração do status quo no que concerne à situação da mulher e à valoração da sexualidade, ao respeito por indivíduos com orientações sexuais minoritárias; a atitude relativamente à violência sexual e a situações de opacidade financeira no seio da Igreja/da “acção católica”.
Para concluir esta nota de leitura, diria que vale a pena ler a biografia de António Ribeiro elaborada por Paula Borges Santos e publicada pela Universidade Católica Portuguesa. Numa conjuntura de crise e, por consequência, de radicalização, é ainda mais relevante uma obra que, optando por assumir algum pendor ideológico, não abandona preocupações de objectivação. É, também, significativa porque permite conhecer melhor o Cardeal-Patriarca de Lisboa que se seguiu a Manuel Gonçalves Cerejeira e que interveio, a partir da Igreja e da “acção católica”, da década de 1960 aos anos 1990.
Saliento, igualmente, que, em Dom António Ribeiro, se reconstituem e analisam indirectamente, por um lado, a situação do catolicismo, da Igreja e da “acção católica”, em Portugal, na Santa Sé e em outros países europeus. Ao Concílio Vaticano II e ao Papa Paulo VI é atribuída uma centralidade inultrapassável. Por outro lado, as características da ditadura portuguesa (na “Metrópole”, “Ilhas Adjacentes” e “Colónias” ou, em alternativa, “Províncias Ultramarinas”) e, com menor aprofundamento embora, do PREC e do regime democrático consolidado.
Nesta vertente da problemática delimitada, talvez uma das conclusões fundamentais desta obra tenha a ver com a validação da hipótese segundo a qual, para António Ribeiro, como antes para Manuel Gonçalves Cerejeira, era fundamental que a Igreja e a “acção católica” portuguesas não voltassem a ficar presas à defesa de uma solução político-religiosa concreta (o Estado Novo de António de Oliveira Salazar ou, mesmo, de Marcello Caetano). Os termos de comparação foram, explicitamente, quer a vinculação à Monarquia Absoluta de Direito Divino e Carácter Corporativo, após 1820, quer o apoio à Monarquia Constitucional, depois de 1910.
07/07/2022