Aqui há romance – literatura e sexualidade
Fiquei a pensar porque é que este poema me agradava tanto. E depois percebi que era um poema de uma sexualidade completamente sorridente. Nada de lirismos, de arroubos, de sofrimento (tão frequentes na vida e na literatura). É um simples dia de sol num elétrico de Lisboa, e um poeta lá dentro a pensar no seu desejo com imensa ternura.
Esta temática da sexualidade e da criação literária é vastíssima, como sabemos. Aliás, foi a presença, ou melhor, a invasividade da temática amorosa na poesia escrita, não em Latim mas em linguagem romanice, ou românica, que, no século XII, deu origem à palavra “romance”; para além do significado de narrativa, esta palavra irá, posteriormente, designar uma relação amorosa entre duas pessoas.
E gostaria de começar recordando… a história da Carochinha, um conto tão conhecido que passou a ter uma conotação negativa. Uma “história da carochinha” é uma coisa inverosímil e tonta.
Mas talvez não seja assim tão tonta. Examinemos de perto o conteúdo narrativo. Começa com o despudor de alguém do sexo feminino que se enfeita toda e que se expõe audaciosamente à janela, ou seja, ao mercado do casamento: Quem quer casar com a Carochinha, que é tão linda e bonitinha? Aqui, a mulher obedece ao seu próprio desejo sexual e à pressão social para constituir família. Mas, depois de se mostrar excessivamente crítica face aos possíveis noivos, acaba por escolher um rato. Acontece que, por uma série de razões, o noivo morre imediatamente após o casamento.
Esta trágica história dá que pensar: será que foi a excessiva ânsia sexual da Carochinha que mereceu castigo, ou foi a sua excessiva exigência? O conto indica-nos que nem ela nem o noivo glutão e indiferente são exemplos a seguir; mas, sobretudo, diz-nos que o amor é um lugar perigoso.
Sentir paixão: há todo um desejo de estar perto, de adivinhar e de incorporar-se no outro. No entanto, essa proximidade tem riscos, e, desde sempre, as artes, nomeadamente a literatura, refletiram essa contradição. Diz-nos Nuno Júdice, no seu poema:
O desejo sexual – a pulsão genésica, reprodutora – é parte integrante de todos nós. Para já, por um estranho capricho da evolução, somos os únicos animais, para além de dois outros grupos de primatas (chimpanzés e bonobos) e dos golfinhos, que conseguimos ter atividade sexual fora da ovulação; ou seja, o sexo não pretende gerar vida, mas apenas prazer.
Aparentemente, o desejo é algo simples. Basta ter boa saúde hormonal e um parceiro próximo. Mas a questão é que o nosso cérebro é um presente envenenado sempre em luta consigo mesmo, como vimos no poema de Nuno Júdice.
A nossa sexualidade, embora partilhando a biologia de outros grupos animais, ultrapassou muitíssimo a simplicidade do desejo e da cópula e espraiou-se pela complexidade do pensamento e das emoções entre dois seres humanos. E eu diria que é aí que a literatura – e as complicações – começam. É aí que começa a própria paixão, que deriva do grego pathos, que significa dor, excesso, catástrofe.
Como sabemos, em “ROMEU E JULIETA”, de William Shakespeare, dois adolescentes vivenciam uma paixão ardente e são separados pela inimizade das famílias, morrendo ambos. Na famosa cena da varanda, diz Julieta: “No caso de seres visto, poderão matar-te”. E Romeu responde: “Ai, nos teus olhos há maior perigo do que em vinte punhais dos teus parentes.”
Desde sempre, na literatura de todas as épocas, existem inúmeros exemplos deste perigo do amor. Lucrécio, poeta romano que viveu no século I a. C., chamava-lhe “a ferida oculta”. No século XIV, Petrarca descreve a paixão desta maneira: “Ó morte viva! Ó mal delicioso!”. E Camões, dois séculos mais tarde, no seu famoso soneto AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER, fala-nos de “um contentamento descontente”.
Já no século XX, o brasileiro Carlos Drummond de Andrade escreve o poema DESTRUIÇÃO:
Aquilo que imediatamente ressalta, quer na vivência da paixão sexual, quer na literatura que a reflete, é a existência de um quero-e-não-quero, de uma enorme ambivalência, de uma dor que lhe é nuclear. No fundo, de uma ameaça constante. Como é que se explicam todos estes sentimentos antagónicos na paixão amorosa?
Paul McLean foi um neurocientista da 2.ª metade do século XX a quem estas questões também intrigaram. E, para resolver este puzzle, sugeriu que o nosso cérebro resulta de uma longa evolução e é feito de camadas, ou seja, composto por três cérebros distintos: o complexo R, responsável pela conservação e preservação da espécie, presente já nos répteis, que surgiram há cerca de 300 milhões de anos; o sistema límbico, que só existe nos mamíferos, centralizador das emoções que guiam e determinam os comportamentos, e que terá aparecido mais de 100 milhões de anos depois; e, finalmente, o neocórtex, a parte mais recente do cérebro, presente apenas nos mamíferos evoluídos – recorde-se que o Homo sapiens surgiu há cerca de 300 mil anos.
À luz dos atuais conhecimentos, esta é uma explicação muito simplista do cérebro, mas ajuda-nos a entender algumas das tortuosidades da alma humana.
No fundo, esta coexistência de cérebros com prioridades diferentes faz com que, muitas vezes, o nosso comportamento e as nossas emoções sejam contraditórias.
Como dizia o biólogo Konrad Lorenz, milhões de anos antes do amor e da solidariedade, existia apenas a agressividade territorial. O “outro” era sempre interpretado como um inimigo que poderia roubar a nossa comida ou o nosso território de caça e que deveríamos hostilizar. Só recentemente apareceram as tais estruturas cerebrais capazes de uma atitude solidária e altruísta.
Portanto, já não nos admiramos que a própria proximidade que o desejo desencadeia cause tensão territorial, sensação de perigo e uma eventual atitude de rejeição do outro.
No cânone literário, não encontramos apenas o espelho desta tensão entre querer e não querer. Encontramos também múltiplos exemplos da doçura, da beleza e da intensidade do desejo, tal como o bíblico “Cântico dos Cânticos”, a poesia árabe medieval ou a lírica trovadoresca. E basta abrir os “Lusíadas” no famoso Canto Nono e ler como Camões falou do desejo entre os navegadores e as ninfas na Ilha dos Amores. Diz Veloso:
“Acende-se o desejo”, diz Luís de Camões. E é apenas de desejo que estamos falando. Na verdade, estas ninfas não são mulheres reais, não são “o outro”, são meras divindades sem individualidade. Existem como corpos simpáticos e obviamente cooperantes, como fantasias sem alma que nada exigem. Não há risco neste desejo, porque não há nenhuma relação de afeto nem de paixão.
Paixão é outra coisa. É uma palavra contaminada. Tanto pode significar amor (outra palavra de contornos incertos), como obsessão, como desejo. Afinal, em que é que ficamos?
A paixão, ao contrário do desejo sexual constante que partilhamos com alguns animais, é mesmo exclusiva dos humanos. Ela implica desejo, sim, mas fixado numa dada pessoa; implica ainda uma ânsia de verdadeira fusão, de intimidade, de um estranho conhecimento do outro. “Transforma-se o amador na cousa amada / por virtude do muito imaginar”, diz-nos Camões.
Ela implica também a apropriação do amado: o jogo da sedução usa sempre uma linguagem de luta, porque o “outro” continua a ser um inimigo, embora simbólico, como dizia Drummond, no seu poema – repare-se no uso de palavras como “jogo”, “conquista”, “cerco”, “perseguição”, “caça” e “rendição”.
Além disto, o alvo da paixão é visto como profundamente valioso, ou a luta não valeria a pena. Inventamos – ou projetamos – mil qualidades no outro, porque só assim podemos amá-lo. Beleza, riqueza, prestígio social, inteligência, capacidade de afeto ou apenas um certo brilho de olhar, seja o que for que o torne único e inalcançável. E isto é sublinhado por Florbela Espanca, nestes três versos:
A paixão é uma verdadeira tempestade cerebral que nos euforiza e nos aflige. E isso é resultado do aumento de neurotransmissores cerebrais como a dopamina, a ocitocina, a serotonina, as catecolaminas e outros palavrões que significam apenas isto: um cérebro apaixonado quase que delira…
E a verdade é que vivemos a paixão como um império da vontade, aprisionante e incontrolável (fall in love, tomber amoureux, ficar caído, descrevem bem isso), mas também fechado e asfixiante – repare-se no nosso “ficar apanhado”, ou no crush da língua inglesa, o ficar esmagado.
Este poema sintetiza, admiravelmente, o desejo exigente e a paixão obsessiva… e a coexistência entre eles.
A paixão não gera apenas risco e conflito dentro de nós mesmos. O perigo pode vir do outro, do cérebro do outro, onde proximidade e posse se confundem. Onde a ânsia de domínio e de controlo absoluto podem matar. Otelo, um personagem de Shakespeare, acreditando nas falsas acusações de Iago, assassinou a sua mulher, Desdémona. Mesmo se o malévolo Iago o avisa cinicamente: “Tende cautela, meu senhor, com o ciúme! É um monstro de olhos verdes que brinca com a caça da qual se alimenta”. (Otelo, Ato 3, cena 3).
A paixão pode fundir dois seres, mas eles continuam a ser duas entidades distintas. O ciúme, o tal “monstro de olhos verdes”, é apenas a manifestação do medo e da insegurança do ciumento, que teme constantemente que o roubem. Não é sinónimo de desejo, nem de paixão, nem de amor, e nunca dá bom resultado. Otelo, ao aperceber-se de que Desdémona estava inocente, suicida-se.
O desejo e a paixão, pela sua natureza intensa, mas breve, parecem mais adequados para a poesia. Que atire a primeira pedra quem nunca escreveu um poema de amor – ou melhor, de paixão.
Mas o amor – que já pressupõe um afeto mais duradoiro, menos inventado – parece mais talhado para a narrativa. Não só o amor, mas também o seu irmão gémeo, o desamor, cheio de casos extraconjugais, de medos e de angústias, de amores não correspondidos, de parafilias ou de perversões, de censura social, de separação, de ódio, de ciúme. Ou, pura e simplesmente, de desgaste.
Enfastiada por um casamento sem amor, Emma Bovary acolhe-se nos braços de um amante. Diz Flaubert acerca de Madame Bovary:
Esta passagem ilustra bem como “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert (1856), e, vinte anos mais tarde, “O Primo Basílio”, de Eça de Queirós (1878), são romances com uma forte vertente didática e moralizante, em que os seus autores criticam a influência perniciosa da literatura romântica sobre a sensibilidade exacerbada das suas heroínas.
As mulheres que ousavam transpor os limites do casamento – e recordo ainda “Ana Karenina”, de Tolstoi (1873), pagavam com a vida essa ousadia. A força controladora da família, da religião e da sociedade estava demasiado presente, era demasiado poderosa para que os romancistas retratassem a sexualidade feminina de outra forma.
Mas bastaram poucos anos para que a Europa sofresse uma brutal transformação e, logo no início do século XX, verificamos que a literatura passa a refletir uma outra realidade e passa a desconstruir aquilo que antes exaltava. Ocupa-se, agora, da descrição explícita da sexualidade, da fragilidade dos laços do casamento, da nova liberdade de escolha das mulheres e do peso do desgaste das relações.
Um dos romances que causou profundo escândalo foi “O Amante de Lady Chatterley”, de D. H. Lawrence, que dele escreveu várias versões. Foi lançado em Itália, em 1928, mas só em 1960 foi publicado em Inglaterra na versão não censurada. Porquê? Porque contém descrições da relação sexual entre um homem e uma mulher, embora o cerne do romance seja a busca da inocência do corpo, após uma guerra que tinha estilhaçado para sempre a Europa do século XIX.
Tal como na escrita de Henry Miller ou de Anaïs Nin, o falocentrismo de “O Amante de Lady Chatterley” parece-nos algo simplista nos dias de hoje. Mas, para além destes romances onde se explora a genitalidade sem entraves, surgem igualmente as narrativas do desencanto do amor, que vamos descobrir num livro de um romancista inglês contemporâneo, David Lodge. Sobre a vivência do casamento, diz assim, em 1975, no seu romance “A Troca”:
Depois dos arroubos românticos do século XIX, a paixão tornou-se um clichê insuportável; e, curiosamente, transitou para a não-literatura, para os atuais best-sellers de aeroporto, explorando comercialmente a nossa curiosidade infindável sobre os comportamentos sexuais dos outros. O retrato que fazem é sempre vulcânico, em que as relações sexuais são descritas de modo estereotipado, simplista e atlético. Eis um exemplo:
A autora vende milhões de livros. E modula expetativas. E ensina emoções. Já assistimos a esta descrição, dezenas ou centenas de vezes, na televisão, em filmes, e todos eles dão uma ideia completamente errada da sexualidade humana. Não haveria nenhum problema, se houvesse informação sexual adequada, mas, a verdade é que não há. Não falo sequer de anatomia nem de fisiologia sexual, falo do enorme fosso de ignorância emocional entre homens e mulheres.
Porque a verdade é que vivemos num esplêndido mundo de enganos. A nossa “aldeia global” está inundada deste falso erotismo e deste pseudo-amor. E esta sexualidade, qual fogo de artifício sem falhas, não tem nada a ver com a realidade de cada um, nem com um dia-a-dia que é frenético e, ao mesmo tempo, desencantado.
Um dos problemas que tem vindo a aumentar nas consultas de Sexologia é o desinteresse sexual – quer em homens, quer em mulheres. Aliás, a Literatura também fala da hipossexualidade humana. Fernando Pessoa, um dos nossos maiores poetas, revela-se singularmente desinteressado pelo amor, mesmo que afirme:
Em apenas sete versos, Pessoa dá-nos a sua visão do sexo e dá-nos um retrato de si mesmo. Diz-nos que o desejo é um acidente biológico pouco interessante, até animalesco (uma visão da sexualidade comum na época) e que a doença da sua própria inteligência, uma provável alusão aos episódios depressivos que sofreu, afetou a sua capacidade de amar. Mais uma vez, a nossa imensa curiosidade se debruça sobre a sexualidade dos outros, sobretudo quando esses outros sabem ir até ao fundo deles mesmos e, portanto, de nós próprios.
E o amor? Em que difere da paixão? A poeta Maria do Rosário Pedreira descreve-nos essa permanência do laço amoroso:
O amor já não é uma tempestade de emoções como a paixão, já não inventa o outro. Contém um elemento de solidariedade, de partilha, de compromisso, uma verdadeira novidade do nosso córtex pré-frontal. E, no entanto, as vantagens deste laço emocional (que é também normativo) contêm em si o declínio progressivo do desejo – uma questão que qualquer casal monogâmico com longos anos de união conhece. E contêm, igualmente, as imensas dificuldades, tensões e ambivalências que a proximidade emocional gera.
Mas, apesar de tudo isto, o desejo, a paixão e o amor continuam a ser uma das vivências mais intensas do ser humano; e termino com as palavras de Carlos Drummond de Andrade:
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13/07/2023