Arte de rua se espalha por Salvador
Expoentes da street art local falam do momento de efervescência que está mudando a paisagem urbana na capital da Bahia
Fundada em 1549 pelos portugueses e debruçada sobre a Baía de Todos os Santos, Salvador é uma cidade antiga, histórica, com boa parte do casario dos tempos coloniais ainda preservada, deixando evidente a herança lusitana. Mas a capital do estado da Bahia, na região Nordeste do Brasil, é também uma cidade em constante evolução, que se renova e se modifica com o passar dos anos. Boa parte dessa renovação pode ser vista, hoje, através de intervenções em muros, paredes, fachadas, laterais de prédios, estabelecimentos comerciais e em qualquer outro lugar onde o ato de se expressar artisticamente pode ser concretizado.
Salvador vivencia um fecundo processo de efervescência nas artes visuais de rua. Grafites produzidos por uma nova geração de talentos dão prosseguimento ao trabalho de artistas como Bel Borba, que já nos anos 90 criava obras que interagiam com a geografia acidentada da cidade. Há também um prolífico intercâmbio artístico, com artistas locais expondo em outros países e nomes consagrados aportando na cidade para deixar sua marca.
“Em 2015, Os Gêmeos, dupla mais famosa de artistas brasileiros da atualidade, pintaram um vagão de trem no subúrbio ferroviário de Salvador em 2015. Além deles, Speto, Chermie, Derlon e TOZ são alguns dos artistas de outros estados ou países, com expressão nacional e internacional no campo do grafite, que já deixaram sua marca na cidade de Salvador”, conta o artista plástico Davi Caramelo, que cita o BTC – Bahia de Todas as Cores – como o mais relevante evento desse segmento.
Fundada em 1549 pelos portugueses e debruçada sobre a Baía de Todos os Santos, Salvador é uma cidade antiga, histórica, com boa parte do casario dos tempos coloniais ainda preservada, deixando evidente a herança lusitana. Mas a capital do estado da Bahia, na região Nordeste do Brasil, é também uma cidade em constante evolução, que se renova e se modifica com o passar dos anos. Boa parte dessa renovação pode ser vista, hoje, através de intervenções em muros, paredes, fachadas, laterais de prédios, estabelecimentos comerciais e em qualquer outro lugar onde o ato de se expressar artisticamente pode ser concretizado.
Salvador vivencia um fecundo processo de efervescência nas artes visuais de rua. Grafites produzidos por uma nova geração de talentos dão prosseguimento ao trabalho de artistas como Bel Borba, que já nos anos 90 criava obras que interagiam com a geografia acidentada da cidade. Há também um prolífico intercâmbio artístico, com artistas locais expondo em outros países e nomes consagrados aportando na cidade para deixar sua marca.
“Em 2015, Os Gêmeos, dupla mais famosa de artistas brasileiros da atualidade, pintaram um vagão de trem no subúrbio ferroviário de Salvador em 2015. Além deles, Speto, Chermie, Derlon e TOZ são alguns dos artistas de outros estados ou países, com expressão nacional e internacional no campo do grafite, que já deixaram sua marca na cidade de Salvador”, conta o artista plástico Davi Caramelo, que cita o BTC – Bahia de Todas as Cores – como o mais relevante evento desse segmento.
Autor de um grande painel na região do porto de Salvador, representando a figura de Iemanjá (divindade das religiões de matriz africana Candomblé e Umbanda), Caramelo vê com entusiasmo a cena contemporânea de street art na cidade. Por outro lado, lamenta o fato dessa manifestação artística ainda não ser plenamente reconhecida e valorizada por parte da sociedade. “Ainda há muito preconceito e ignorância sobre o que é arte urbana e o seu poder transformador da paisagem e da vida de quem a produz e das pessoas que ali circulam, não só na esfera do visível mas também no seu efeito sobre o inconsciente”.
No ano passado, houve um marco importante: o artista plástico Eduardo Kobra – nome reconhecido internacionalmente, com obras expostas nas ruas de Amsterdam, Nova York, São Paulo, Roma e Tóquio, entre outras – criou um grande painel com a imagem da santa católica Irmã Dulce em um dos principais shopping centers da cidade. Mas bem antes desse painel a arte de rua já tomava a paisagem de Salvador.
Mistura de vivências
Profundamente desigual, como todas as grandes cidades brasileiras, Salvador possui o maior contingente de população negra do país, concentrada principalmente nos bairros mais pobres e desamparados pelo poder público. De certa forma, essas características étnicas e sociais se refletem na arte urbana de forte conotação social produzida na cidade. Para Bigod O Sapo, um dos principais expoentes da street art soteropolitana atual, a arte de rua local é resultado de uma mistura de vivências.
“A gente tem um trabalho muito enraizado na cultura local. Quando você bota essa carga de vida, o que você come, o que você cheira, o que você respira, onde você mora, seu trabalho ganha um peso a mais. Nosso trabalho é muito ligado à ancestralidade. São as coisas que você passou mal na vida, coisas boas, alegrias, frustrações. Tudo isso somado vai para junto do seu trabalho e dá uma carga muito forte. Quando eu falo sobre grafite estou falando sobre minha vida, sobre o meu cotidiano. A gente é como uma esponja: absorve tudo, de bom e de ruim.”, reflete.
O artista Éder Muniz, o Calango, tem uma visão semelhante à de Bigod: “Nos últimos anos houve uma mudança na forma e no conteúdo, fruto da conscientização dos artistas. As pinturas ganharam mais personalidade e temáticas sociais importantes, como a cultura negra e dos povos originários. Elas ficaram mais presentes, inclusive nos tons, que reproduzem a cor da pele: marrom, negro”.
Autor de trabalhos expostos nos EUA e na Itália, além dos muitos grafites espalhados pelas ruas de Salvador, Éder acredita que os antigos marcos, monumentos e esculturas de Salvador representam “coisas velhas”, e uma nova forma de arte começa a contar a história contemporânea da cidade. “Uma cidade sem arte é uma cidade sem personalidade, uma cidade vazia. O que alimenta o espírito do baiano é a arte, e temos que atentar para isso. Ainda mais neste momento que estamos vivendo, em que o artista é considerado um terrorista. O que é um país, uma cidade, sem arte?”, questiona.
Outra artista de destaque na cena soteropolitana, Nila Carneiro acredita que Salvador ainda não dá a devida importância ao legado da arte de rua para a estética urbana e o bem-estar social. “Os artistas e os projetos que, mesmo sem o financiamento adequado, ainda assim acontecem externam a urgência que esse grupo tem de comunicar sua existência e trazer memória artística para a cidade. Mas, levando em conta o grafite como patrimônio cultural material para a humanidade, infelizmente Salvador ainda engatinha nesse espaço.”
Uma arte democrática
Criadora, entre outros trabalhos, de um grande painel na fachada do Hospital da Mulher, na Cidade Baixa, Nila acredita que a arte de rua comunica para todos, não importando se o observador possui ou não poder aquisitivo. “A street art difere da arte tradicional porque é uma arte sem distinção de público. Não está restrita a um espaço pequeno com limite de observadores, como as galerias, ela está na rua, sujeita a intempéries. É uma arte efêmera e o observador é livre, seja ele um transeunte ou esteja ele em situação de rua.”
Éder tem um pensamento semelhante: “O grafite tem a característica de beber de várias fontes, inclusive da arte tradicional. Nós misturamos tudo e colocamos na rua. Quando você mistura e bota na rua, você democratiza, é de todo mundo. Deixa de ser privilégio de poucos. Grafite é uma arte dinâmica, um microfone aberto”.
Artista plástico com aquarelas exibidas na fachada de um shopping de Salvador, Hiram Gama pensa que a street art tem como conceito essencial a apropriação orgânica da cidade, sem permissão e com uma linguagem muito própria, plural mas identificável. “Ela tem um sentido rebelde. Entendo a street art como uma extensão natural da proposta da arte moderna, com forte aspecto social. Ela se desamarra dos salões e museus de arte e ganha as ruas, democratizando algo que era elitizado, consumido por poucos”.
Já Caramelo acredita que cada vez mais a linha delimitadora entre arte tradicional e arte de rua vem se apagando. “A street art atual trabalha composição, cores, conceito, linguagem, suporte, estilo, identidade, site specific, etc. Creio que essa distinção é um pouco semelhante à discussão de outrora entre fotografia e arte. Elas estão em plena convergência e consonância”.
Novos espaços
Diante de um cenário tão fecundo, caberia ao poder público e a empresas privadas incentivar e viabilizar espaços para a exposição sistemática e efetiva dessas obras e desses artistas? Para Éder, sim. Ele cita como uma iniciativa interessante, mas que acabou não indo adiante, um projeto de estímulo à arte de rua promovido pela Prefeitura de Salvador, através da Fundação Gregório de Mattos.
“Esse projeto verticalizou o grafite de salvador, que até então tinha a característica de ser horizontal. Salvador precisa evoluir mais para atrair um turismo específico de admiradores do grafite. Eu mesmo faço um tour que começa em Castelo Branco, de onde eu venho, que tem uma cultura forte de grafite, e vai até o Comércio e a Gamboa”, pondera.
Já Caramelo não considera positiva a apropriação da street art por espaços comerciais, como shopping centers. “Acredito que há meios mais interessantes de divulgação, exposição e sobretudo remuneração. A arte urbana foi feita para estar na rua, seu papel é intervir na paisagem, com ou sem autorização. Acho bastante questionável essa colocação da obra criativa, autoral e que deveria ser espontânea, como produto de campanha, necessitando ser aprovada por diversos setores de uma empresa. Sinto que, após tantas opiniões e pedidos de alteração ou conformação desse corpo corporativo, ela já chega ao mundo um pouco natimorta”.
Street art como inclusão social
Éder Muniz fala sobre o poder de superação e autoconhecimento do grafite.
Nascido em um bairro pobre de Salvador, Éder Muniz, o Calango, representa o jovem que superou uma realidade adversa e as armadilhas do caminho. E deve tudo isso à arte de rua e à própria persistência. A seguir, ele reflete sobre essas dificuldades e fala de como o grafite lhe proporcionou vivenciar um outro mundo.
“Eu sou quem sou hoje por causa do grafite. Eu corria o risco de ir para a rua e não para a Academia. A maioria dos colegas que começaram comigo abandonou a Escola de Belas Artes.
Para quem vem da periferia, para quem não vem da aristocracia nem tem amigos ricos, a única maneira de se expressar é através do grafite. E falo aqui do grafite pichação mesmo, uma
arte que não deve nada a ninguém. Ali você percebe o quanto os jovens estão precisando de educação, de cultura, de escola.
“No início do ano a gente perdeu um cara muito importante, o Scank [artista de rua espancado e morto a tiros enquanto trabalhava em um painel]. Quando soube da notícia, senti como se fosse eu que tivesse morrido. Um cara cheio de sonhos, que estava começando a viver da sua arte. Quando se ceifa um jovem como ele não se tem ideia de como isso ofende toda uma geração.
“Eu influencio a geração do meu bairro. Já são umas três gerações que estão me vendo trabalhar, vendo meus grafites. Acho que o grafite representa, sim, um acesso, uma possibilidade de mudança, uma oportunidade de autoconhecimento, de humanização. É a chance de se conhecer outras pessoas, de não se envolver com crime, com tráfico.”
Os desafios da mulher na vida e na arte
Nila Carneiro aponta os obstáculos para a mulher viver plenamente no Brasil.
Com persistência e dedicação, Nila Carneiro vem se destacando no cenário da street art soteropolitana, buscando seu espaço em um ambiente ainda majoritariamente masculino. No depoimento abaixo, ela discorre sobre o desafio das mulheres em um país no qual o feminicídio ainda é espantosamente naturalizado e as oportunidades estão longe de ser igualitárias.
“Os desafios perpassam todas as etapas do meu trabalho. Mas o maior desafio é acessar o espaço da rua, e por isso eu bato tanto na tecla da ocupação do espaço público por mulheres. A sociedade androcêntrica nos vê apenas adequadas a espaços privados, que é o espaço doméstico, do lar, onde somos privadas de nossa subjetividade, de conteúdos e experiências importantes para o nosso crescimento emocional e intelectual. É um mecanismo de opressão muito articulado para a manutenção de um sistema que privilegia apenas homens há séculos.
“Até dezembro do ano passado, 12 mulheres morriam por dia no Brasil vítimas de feminicídio. E hoje, com a pandemia, temos problemas em efetivar as denúncias dentro desses espaços privados. Enquanto o espaço público é desafiador por barrar com violência física e psicológica o acesso das mulheres às ruas, seja através do assédio ou da agressão física, o espaço privado mantém essa mesma mulher presa a um modelo heteronormativo adoecedor de tortura, que muitas vezes acaba em morte.
“Eu penso que o meu maior desafio como artista é levar ao espaço público o meu processo de enfrentamento, que uso como processo de cura. Vivi durante muitos anos nesse espaço privado sob muita violência e hoje elaboro as minhas angústias e a perda de identidade através do meu processo criativo. Esse processo de enfrentamento precisa ser visto pelo maior número de mulheres possível. Para que elas possam se enxergar nesses lugares, enxergar que direito à liberdade e dignidade da pessoa humana são direitos fundamentais, previstos na nossa própria constituição, e que não estão sendo respeitados.
“Queremos a valorização do nosso trabalho artístico. Ele reflete um momento histórico e estamos aqui para honrar todas as que foram abrindo espaços para que hoje estivéssemos aqui no papel da fala, sem silenciamentos.”