As botas do gato

(Créditos fotográficos: Luke Chesser – Unsplash)
Muito do que fazemos e somos é ditado por questões de forma, mais até do que de conteúdo. Na nossa sociedade, interiorizámos de tal maneira a importância da forma que muitas pessoas consideram perfeitamente normal que seja mais importante parecer do que ser. É claro que isso não é de agora e talvez seja, mesmo, intrínseco à natureza humana, já que muitos são os contos e as fábulas que exploram essa questão, sendo um dos meus preferidos “O gato das botas”, de Charles Perrault, publicado no século XVII.

representando o gato das botas. (culturagenial.com)
Gato das botas? Contos? Fábulas? Século XVII? Mas será que tudo isso não estará completamente ultrapassado e esquecido na era da Internet, dos telemóveis, da robótica e da inteligência artificial? Bem, se pararmos um pouco para pensarmos objetivamente, olhando para o conteúdo e esquecendo a forma, é evidente que não. Ainda que muitos achem que as tecnologias são um fim em si, a verdade é que não passam de uma forma para atingir um fim, uma ferramenta. Usamo-las, é certo, de maneira intensiva, têm um papel central, dado que a nossa sociedade, tal como a vivemos e entendemos agora, não seria possível sem elas, mas o objetivo nunca pode ser a tecnologia em si e, sim, o que se faz com ela.

É claro que nunca deixarão de existir os que privilegiam o meio em detrimento do fim e que se valem das tecnologias para se colocarem num patamar que creem superior. Vemos exemplos disso todos os dias e em todo o lado: “Comprei um telemóvel novo. Gostas?”; “Que tal o meu smart watch?”; “Não me digas que não sabes usar esta app!”; “O meu tablet é topo de gama. Custou-me dois mil euros”; ou, também, “Na escola da minha filha não usam papel. Fazem tudo no computador!”.
Para além dos que gostam de mostrar que têm, há, ainda, os que gostam de mostrar que sabem usar a tecnologia, embora, na maior parte das vezes, não se perceba bem para quê. É por isso que todos nós já assistimos a incontáveis apresentações nas quais os diapositivos estão carregados de dados, de gráficos, de cores, de texto e de efeitos especiais. Aí, pretende-se demonstrar superioridade porque se domina uma tecnologia, ainda que o conteúdo e a mensagem se percam, mortos por overdose visual. Dos mais novos aos mais velhos, da escola ao Governo da nação, o que importa é acompanhar qualquer apresentação por um Power Point vistoso, esperando que o “barulho das luzes” disfarce os pontos fracos e preencha os buracos deixados pela falta de conteúdo.

Por fim, ainda há os que desejam mostrar que inovam, esquecendo, também eles, que a inovação é, meramente, um meio, uma forma, e não um fim nem um conteúdo. É por isso que assistimos a iniciativas que visam a realização de exames exclusivamente em plataformas informáticas. Neste caso, não importa perceber o desempenho dos alunos e das alunas nas áreas em causa, não interessa se eles ou elas adquiriram competências para pensarem de forma crítica ou criativa. O que importa é que o exame seja feito usando uma ferramenta informática. Tampouco importa se a plataforma foi devidamente testada, se os alunos e alunas tiveram oportunidade para explorá-la e familiarizar-se com ela, para que a utilização seja tão intuitiva que se esqueçam de que a estão a utilizar. O que importa é dizer que se está a inovar, mostrar trabalho a qualquer preço, promover a forma e menorizar o conteúdo.
Muitos mais exemplos se poderiam arranjar para mostrar que, de facto, ao contrário do que é voz corrente, as tecnologias não mudaram o mais profundo da nossa forma de pensar, de ser e de viver em sociedade. Criaram, isso sim, muitíssimas mais oportunidades para parecermos, em vez de sermos, embora, felizmente, não impeçam que, quem souber, possa vencer sendo e não apenas parecendo. Posto isto, parece-me claro que poucas fábulas ou contos serão mais atuais do que “O gato das botas”, escrito e publicado no longínquo século XVII. Para perceber isso, basta apenas substituir as botas do gato pelas tecnologias, ambas utilizadas como um meio para afirmação de um estatuto social.
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11/04/2024