As mascotes nossas de cada dia
Foi, aproximadamente, há 12 anos que entrou em casa, ao colo do meu sobrinho. O meu irmão Rafael e a minha cunhada Sylvia, no princípio, mostraram-se renitentes em relação ao facto de termos mais um elemento na família. Era um cão de rua, abandonado como tantos outros.
Com a sua inteligência e perseverança, acabou por conquistar os donos, os amigos, os parentes e os vizinhos. Deram-lhe o nome de Juanín, personagem fictícia da série televisiva “31 minutos”1, animada por bonecos ou fantoches.
Nunca saberemos se gostava ou não do seu nome, mas a verdade é que atendia por ele, quando era chamado. Teríamos de recuar aos tempos das fábulas de Esopo ou de La Fontaine, para termos a certeza. Ninguém tem a coragem de chamar um cão por “cão” ou gato por “gato”. Procuramos, na nossa intimidade ou no nosso quotidiano, nomes dos quais gostamos, os quais associamos às nossas mascotes. Há quem dê o nome de um filósofo, como Nietzsche, ao seu cão; ou algo tão singular como “porta-chaves” (o mais original que já ouvi), a um cãozinho que parece um Chihuahua, uma raça de cães de pequeno porte originária do México.
Hoje, no espaço físico deixado por Juanín, uma gatita procura, com todas as habilidades e sagacidade características dos felinos, conquistar o espaço emotivo de memória e afecto deixado pelo antigo hóspede.
Juanín partiu no dia 8 de Agosto do ano passado, está enterrado no jardim da casa e alguns objectos assinalam o lugar: uma miniatura da bandeira chilena, um emblema do Colo-Colo (o mais popular clube de futebol deste país), um peluche e um catavento.
Falo de mascotes. Nunca tive nenhuma, mas emociono-me ao ver como as pessoas cuidam destes seres queridos, quando as circunstâncias mais trágicas os golpeiam, nas guerras, nas inundações recentes ou noutras catástrofes que, nestes tempos, são o pão nosso de cada dia. Na precariedade e na angústia do exílio, as pessoas levam consigo os seus cãezinhos, os seus gatinhos e até passarinhos nas suas pequenas gaiolas. Mais tarde, em algum lugar de refúgio, eles voltarão a compensar os seus donos – também pelo novo abrigo e aconchego que lhes oferecem – com a ternura dos seus olhares, gestos e outras meiguices.
Se voltássemos ao “tempo em que os animais falavam”, eles poderiam argumentar, com Gabriela Mistral, a poeta, com estas palavras: “[…] busco la familiaridad inmediata, quiero la buena fé; pido como todos los errantes, la casa tíbia en que entrar, pues llevo años de ruta helada y de viento y polvo en el rostro […]”
Num dos meus últimos artigos, falei da Espanha e das eleições e dos perigos do “vox-populismo”, que já parece estar a dar frutos. A esse respeito, cito a imprensa espanhola, sobre uma situação de censura.
O jornal La Vanguardia, numa peça jornalística de Magí Camps, de Barcelona, na edição do dia 4 do corrente mês de Julho, destaca com o antetítulo “NUEVA CENSURA EN BURGOS” e intitula: “El ayuntamiento del PP de Briviesca cancela una obra sobre un maestro republicano fusilado”. O principal diário da Catalunha informa que a “obra de Xavier Bobés e Alberto Conejero narra as experiências de um professor republicano antes de ser baleado na Guerra Civil”.
A mesma situação de censura é também relatada no jornal El País, por Rocío García, na edição de 5 de Julho, com o título “Alarma en el mundo del teatro ante los casos de cancelaciones y censuras”. “É um atentado à liberdade de expressão de nossa Constituição”, garante a dramaturga Carme Portaceli. “Basta gritar ‘morte à inteligência’, como fez Millán Astray”, alerta a atriz Aitana Sánchez-Gijón.
E Rocío García desenvolve: “As vozes de alarme saltaram no mundo do teatro. Os criadores das artes do espectáculo manifestam diariamente uma profunda preocupação com os casos de cancelamentos e censura de espectáculos que se vão verificando com a chegada das novas equipas municipais aos Paços do Concelho após as eleições de 28 de Maio. As redes sociais estão a arder com mensagens de protestos e apelos para alertar o que consideram um perigoso atentado à liberdade de expressão.”
Entretanto, já foram identificados os primeiros resquícios das represálias de Cuelgamuros. “O meu desejo era abraçar os ossos do meu pai”, regista ainda o título da edição de 5 de Julho de 2023, do jornal elDiario.es. Na peça jornalística assinada por Marta Borraz é referido que, quase um mês depois do início dos trabalhos, “a perícia conseguiu identificar geneticamente Valerico Canales, Emilio Caro, Flora Labajos e Román González, quatro republicanos baleados em 1936 e que repousavam na caixa (ou camarote) 198, junto de outras vítimas”.
Na mesma peça jornalística, Marta Borraz esclarece que, com esses restos mortais, “os familiares construíram um monólito no cemitério de Pajares de Adaja, para onde, em princípio, querem levar os que saem de Cuelgamuros”. Entre eles – conta ainda a jornalista – está Fausto Canales, filho de Valerico, que afirma ter recebido a notícia oficialmente na manhã de 5 de Julho (quarta-feira) e que estava “emocionado e satisfeito por ter chegado ao fim, porque era o objectivo, mal conhecendo o meu pai”.
Marta Borraz escreve que, quando Valerico foi assassinado, aos 29 anos, Fausto tinha apenas dois anos. “É cumprir toda a saudade que eu tinha, é poder segurá-lo nos meus braços porque ele me terá acariciado, mas eu não tenho consciência disso”, afirma Fausto Canales, com 89 anos.
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Nota:
1 – “31 minutos” foi uma série televisiva infantil chilena produzida pela empresa Aplaplac, que, posteriormente, também criou uma banda musical. Apresentada originalmente pela Televisión Nacional de Chile (TVN), entre 15 de Março de 2003 e 2 de Outubro de 2005, a série voltou à emissora, entre 4 de Outubro e 27 de Dezembro de 2014. Este programa começou por ser uma paródia (ou comédia) relativamente a “60 minutos”, telejornal polémico exibido pelo mesmo canal, nas décadas de 1970 e de 1980.
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17/07/2023