As nossas ferramentas
O que distingue a nossa espécie de todas as outras é a capacidade para conceber e utilizar ferramentas. Não se sabe ao certo se foi a inteligência que potenciou essa capacidade ou se foi essa capacidade que desencadeou a inteligência, embora seja geralmente reconhecido que na base de tudo isso esteve o facto de, ao passarmos a deslocarmo-nos sobre dois membros, ficarmos com outros dois – as mãos – livres para usar ferramentas.
Como engenheiro informático, sempre encarei as tecnologias da informação e comunicação (TIC) como mais uma ferramenta ao nosso dispor, mais um passo na sofisticação tecnológica que nos permitiria fazer mais e melhor todo o tipo de tarefas. Sendo uma ferramenta, seria utilizada pelos humanos e estaria sempre sob o seu controlo, contribuindo para o desenvolvimento – idealmente em sentido positivo – da sociedade em que vivemos. Infelizmente, esta visão revelou-se errada e, até, custa-me admiti-lo, ingénua.
Com efeito, as TIC deixaram de ser uma ferramenta ao serviço de cada um de nós e passaram a ser uma ferramenta ao serviço de entidades terceiras, frequentemente não declaradas, que nos controlam sem que nos apercebamos disso. Alguns dirão que esta afirmação é um exagero, que lá vamos ler outra vez um texto sobre a teoria da conspiração, mas, infelizmente – e objetivamente – não é assim.
Com base nas TIC, temos agora toda uma panóplia de dispositivos e sistemas denominados ‘inteligentes’ (smart). Todos temos os chamados smart phones que, muito mais do que telefones, nos mantêm constantemente ligados à Internet. Todos utilizamos computadores e/ou tablets, seja no trabalho ou em lazer. Muitos falam orgulhosamente das suas smart TV ou até das suas smart homes, para não referir os automóveis controlados por telemóvel e com ligação permanente à Internet. Todos estes dispositivos recolhem constantemente informações sobre o que fazemos, o que vemos, onde estamos e como estamos. Sabemos nós a quem enviam essas informações, porque são recolhidas e para quê? Quando navegamos na Internet esses dispositivos só nos apresentam aquilo que convém a alguém, influenciando a nossa visão do mundo, as nossas opiniões, as nossas decisões. Quem são essas entidades? Não sabemos.
Se soubéssemos que se tratava de uma qualquer entidade governamental há muito que nos teríamos revoltado, insurgindo-nos contra esse controlo ilegal e essa afronta à liberdade. Mas não, não é esse o caso e, portanto, aceitamos pacientemente a ingerência de entidades desconhecidas, com fins que nalguns casos serão inconfessáveis e em todos os casos são ilegítimos.
É claro que, oficialmente, a primeira preocupação de todos os agentes neste nosso mundo governado pelas TIC é a privacidade. Todos valorizam a nossa privacidade – isso nos dizem à cabeça sempre que visitamos um novo sítio – desde que possam continuar a recolher informação sobre o que fazemos, o que vemos, onde estamos, do que gostamos. Todos somos senhores dos nossos dispositivos smart, essas ferramentas de última geração. Deixámos, no entanto, de controlar estas ferramentas, para passarmos a ser controlados por elas, a falar com elas e a obedecer. Será que continuaremos a abdicar da nossa inteligência para nos submetermos à ‘inteligência’ de dispositivos que não o são? Se ainda nos resta um pingo de inteligência valeria a pena pensar nisto. Uma coisa é certa: quando deixarmos de controlar as nossas ferramentas e passarmos a ser controlados por elas deixaremos de ser humanos.
25/10/2021