As notícias não se produzem no vácuo

 As notícias não se produzem no vácuo

O efeito do observador indica que examinar um fenómeno pode alterar o seu estado. Ou seja, segundo a Física, uma observação pode mudar o que se está a ver. Uma ideia simples, quando aplicada a experiências que requerem uma alteração de estado para serem concretizadas (como verificar a pressão de ar num pneu), mas que se complica na hora de observar sistemas. Na Física Quântica, isto fica ainda mais estranho, mas a minha formação em Humanidades não chega para tanto.

Apesar disso, não consigo deixar de pensar na aplicação desta ideia às notícias que, todos os dias, nos entram em casa; porque, quando vemos um telejornal ou lemos um artigo, ninguém pensa nas suas implicações. O “quarto poder” baseia-se na promessa implícita de que tanto o que se noticia como a maneira de o fazer resultam de uma realidade sem filtros em que o espetador/leitor pode confiar. Esta é a teoria do espelho onde as notícias são um reflexo puro da realidade, sem considerar o impacto do observador na sua criação.

Esta teoria, sob um ponto de vista académico, está ultrapassada há muito. Entre o que se observa na realidade e o que se mostra nos media, existe um mundo de decisões tomadas pelo observador, resultado da perspetiva do repórter, dos seus preconceitos e da cultura do órgão de comunicação. As pessoas entendem isto — afinal, até São Tomé tinha de “ver para crer”. Mas, no dia a dia, é mais fácil aceitar o que nos põem à frente como pura realidade. Uma visão desconectada, cheia de pessoas verdadeiras que se tornam meras personagens.

Sempre que vejo um artigo sobre uma família de refugiados, reportagens onde se pintam imagens de um massacre e a dor dos sobreviventes, histórias de sofrimento num mundo em chamas, sinto-me dividido. Por um lado, sem o esforço de jornalistas, não conheceríamos a magnitude das situações. Mas, por outro, até que ponto é justo aproveitar o sofrimento dos outros para criar conteúdo? Pode-se argumentar que jornalismo não é apenas produção de conteúdo, há uma diferença clara entre uma reportagem com corpos num cenário de guerra e um influencer a fotografar-se à frente do caixão no funeral do avô. Até se pode dizer que as histórias reais de sofrimento são necessárias para retratar a realidade, mas onde é que está a fronteira entre notícia e voyeurismo?

Créditos: Shutterbug75 (Pixabay)

E claro, esta pergunta é ainda mais complexa devido ao efeito do observador. As notícias não são criadas no vácuo. E vivemos num mundo tão cínico que certas coisas se fazem em função de quem as vai ver. Por exemplo, o secretário-geral das Nações Unidas faz uma visita e isso resulta em bombardeamentos na cidade. Uma de muitas manobras teatrais que, infelizmente, levam ao sofrimento de pessoas reais.

A dignidade humana deve ser sempre protegida, com o bom senso a guiar os profissionais da comunicação. Apesar disso, é fácil encontrar exemplos de falta de noção. Num outro dia, vi um artigo onde se pedia a uma médica que especulasse acerca dos motivos da morte, durante o parto, do filho de um futebolista. Que valor há numa “notícia” assim? Ou quando comparo notícias de um possível homicídio/suicídio perto de Barcelona que saiu nosmeios de comunicação locais sem qualquer identificador, enquanto na imprensa internacional aparece com todos os detalhes. Qual é a opção correta?

Continuo na dúvida de se é correto ou incorreto fazer notícias baseadas no sofrimento dos outros. A minha primeira reação é “não”. Porém, se consideramos que sem um observador a realidade não se vê, o jornalismo é necessário. Não consigo imaginar um mundo onde não existam meios de comunicação, mas gostava de viver num planeta onde a dignidade dos demais fosse a prioridade.

03/05/2022

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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