Assombrado pela tragédia do presente Brasil repensa o seu passado
País busca acerto de contas com a memória da escravidão e a violência racial em meio à pandemia
Ainda contando os mortos pela covid-19, o mundo desenvolvido se viu desde o final de maio engolfado por uma onda crescente de revolta. Provocadas pela morte do cidadão norte-americano negro George Floyd por um policial branco em Minneapolis, enormes manifestações se iniciaram em cidades dos Estados Unidos e em seguida ganharam as ruas de diversos países. Tornaram-se, também, mais amplas em suas motivações.
Mais do que a tragédia individual de um homem morto em função da cor da sua pele, passou-se a questionar uma tragédia coletiva: o vínculo entre o legado de opressão contra o povo negro e a brutalidade policial contemporânea contra esse mesmo povo. Nada mais lógico, portanto, do que repensar a glorificação concedida a certas figuras históricas, eternizadas em monumentos, estátuas e ruas, que de alguma forma simbolizam esse vínculo e passaram a ser atacadas. Por toda a parte, fica evidente a necessidade de uma releitura da história e dos seus protagonistas.
Paralisado pelas mais de 50 mil vítimas da pandemia e pela maneira errática com que essa trágica situação vem sendo conduzida pelo Governo Federal, o Brasil também começa a repensar a sua história, ainda que de forma restrita. Nas últimas semanas, centenas de pessoas se mobilizaram, mesmo correndo o risco da contaminação, e foram às ruas de várias cidades empunhando a bandeira do combate ao racismo, aliada a críticas ao presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro.
O debate vem sendo ampliado na imprensa, no mundo acadêmico e nas redes sociais, trazendo à tona uma questão que até então não recebia a atenção devida. Sobretudo em um país onde a polícia mata com assustadora frequência: só em 2019, foram ao menos 5.804 vítimas. E nada menos que 75% delas tinham a pele escura*. Um país onde a exclusão e a desigualdade se concentram maciçamente entre homens, mulheres e crianças negros. Diante de um cenário tão dramático, seria este o momento de repensar o processo histórico que fez o país chegar até aqui?
Professora titular das universidades de São Paulo e de Princeton (EUA) e autora de diversos livros, a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz acredita que sim. “Já está na hora de pensarmos em histórias mais plurais, mais generosas, no sentido de incluir outras narrativas. Importante pensar que o Brasil é um país que tem praticamente 56% de sua população, segundo dados do IBGE, composta por pretos e pardos, e mesmo assim a nossa imaginação é profundamente branca, europeia e masculina. Eu penso que é hora de mudarmos a imaginação dos brasileiros.”
A pós-doutora em antropologia (Universidade de Harvard) Olívia Gomes da Cunha tem opinião semelhante: “Não há outra postura além de reconhecer e enfrentar a dimensão profunda do racismo nas entranhas do nosso cotidiano. De jamais esquecermos que milhões de pessoas foram escravizadas para construírem riqueza, de famílias e de nações”. Para Olívia, não se trata de revisionismo, e sim de atos e práticas históricos: “Os manifestantes recusam as narrativas e certas histórias cristalizadas e materializadas nas estátuas e monumentos. Se não reconhecermos a legítima historicidade desses atos políticos estaremos naturalizando crimes como o racismo e as atrocidades cometidas pelo colonialismo”.
É preciso ressignificar os monumentos
Lilia Schwarcz acredita que essa mudança de mentalidade pode e deve abarcar a revisão de personagens históricos na paisagem urbana. “Precisamos ressignificar os nossos monumentos públicos. É preciso repensá-los, e não naturalizá-los. A forma como faremos isso é variada. Eu particularmente não sou favorável a vandalismo, mas sou favorável à retirada dessas obras e, a depender do tamanho, à sua colocação em museus, com legendas críticas. Ou, então, a construção de monumentos paralelos que tensionem, questionem essas estátuas e monumentos que vivem quase que naturalizados no nosso cotidiano”.
Em São Paulo há dois monumentos particularmente controversos, que há décadas geram discussões sobre o seu papel. O primeiro é o Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, inaugurado em 1954 por ocasião do quarto centenário da cidade. E o outro é uma enorme estátua (13 metros de altura, contando o pedestal) do bandeirante Borba Gato, feita pelo artista Julio Guerra em 1962. Sertanistas cuja atuação remonta ao período colonial, os bandeirantes exploraram o interior do Brasil em busca de riquezas minerais como ouro e a prata. Nesse processo, escravizaram e mataram indígenas e exterminaram os quilombos, focos de resistência de escravos fugidos.
“Criou-se essa figura do bandeirante como uma espécie de identidade do paulista. Ou seja, uma figura desbravadora, aventureira, que descobriu ouro e ampliou nossas fronteiras. O que não se disse é que foram grandes apresadores de indígenas e de escravizados fugidos. Enfim, tinham um papel muito ambíguo, um papel muito duvidoso e com certeza muito violento. É hora, sim, dos paulistas e brasileiros se manifestarem contra essas e outras figuras”, conclui Lilia Schwarcz.
Olívia Gomes da Cunha vai mais além. Para ela, há inúmeras ambiguidades na formulação do que se denomina “memória nacional”, que está na base da celebração e do culto de símbolos da monarquia, do colonialismo e, por extensão, na emergência de movimentos de extrema direita. “Não há dúvida de que são inscrições materializadas de projetos de histórias nacionais. Mas isso não define sua legitimidade moral no nosso presente político. É precisamente porque são ‘históricos’ que esses monumentos estão sujeitos à destruição, revalidação, negação e crítica. Devemos entender, ‘devorar’ seus múltiplos sentidos e efeitos políticos”.
Uma outra visão
Já o antropólogo, ensaísta e historiador Antônio Risério tem uma visão radicalmente diferente. “Seria muito interessante se esses gestos e movimentos questionassem todos os heróis da humanidade. Mas veja bem: todos. E não é isso o que estou vendo. De uma parte, por estreiteza ideológica. De outra, por ignorância histórica. Quando digo isso é porque temos de sublinhar o seguinte: a personalidade histórica só é questionada se atende a dois requisitos básicos: ser ocidental e branco. Como se o resto da humanidade fosse composto de santos e anjos.”
Autor de livros como A Cidade no Brasil e A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros, Risério acrescenta: “Havia escravidão pesada na África, antes da chegada dos europeus. Negros escravizavam negros para trabalhar, mas também para muitas outras coisas, como a oferenda de vítimas sacrificiais aos deuses. Há um exemplo impressionante disso num achado arqueológico numa cidade nigeriana: 41 jovens cobertas de joias enterradas vivas no fundo de um poço. Nossos índios tupinambás também eram escravistas – e às vezes comiam algum escravo depois de churrasqueá-lo num banquete canibal.”
Risério faz um paralelo entre duas estátuas presentes hoje na paisagem urbana de Salvador, cidade com o maior contigente de população negra em todo o Brasil. Uma é a do Conde Pereira Marinho, cuja fortuna foi em grande parte amealhada com o tráfico de escravos, localizada em frente ao hospital Santa Isabel, no bairro de Nazaré. A outra é a de Zumbi dos Palmares, líder e herói da resistência negra à escravidão, que fica na Praça da Sé (Centro Histórico).
“Se querem destruir a estátua em homenagem ao Conde, tudo bem, contanto que destruam também o monumento a Zumbi dos Palmares. Havia escravos em Palmares trabalhando nas plantações, além de mulheres forçadas a prestar serviços agrícolas e sexuais aos palmarinos. Qualquer historiador sério sabe disso. E, por esses exemplos, já se vê que o buraco é mais embaixo”, afirma.
Voltando ao passado das civilizações, Risério vai mais além: “Questionar é uma coisa, destruir monumentos é outra. Existe a questão fundamental da memória histórica e outras coisas mais. No dia em que esses movimentos por acaso descobrirem que o Egito era imperialista, escravista e patriarcal (estão em múmias egípcias os primeiros achados arqueológicos da prática de mutilação do clitóris para refrear a sexualidade feminina), vão querer destruir as pirâmides?”
“Demolir no próprio concreto”
O escritor, ativista social e agitador cultural Nelson Maca pensa o oposto de Risério. Para ele, atos como a recente derrubada da estátua de Edward Colston em Bristol (Inglaterra) são necessários. “As sociedades contemporâneas superaram a barreira física e política da escravidão, outrora assumidamente institucional. No entanto, a lógica da discriminação racial continua orientando suas estruturas oficiais. Da política à polícia, mantemos a hierarquia racial e o sentido de justiça oriundos do histórico perverso dos colonizadores. Da cultura à religião, ainda nos orientam, hegemonicamente, instituições, narrativas e valores supremacistas etno-centrados. Essa complexidade maligna está presente em nossos símbolos civilizatórios.”
Professor, autor do livro Gramática da Ira e organizador do Sarau Bem Black (evento que reúne poesia, música e artes plásticas sobre negritudes e periferias em Salvador), Maca acredita ser impossível haver cicatrização das feridas profundas da história sem uma revisão corajosa.
“Manter hinos, bandeiras, estátuas e monumentos cívicos nascidos nesse contexto implica, necessariamente, a manutenção de fatos, heróis, objetos, conceitos e valores que forjaram a sociedade sobre os paradigmas da desigualdade e da subjugação.É como se, no dia a dia, a cada esquina e praça pública, nós, os negros atuais, os de baixo, estivéssemos sendo alertados sobre o nosso lugar social. E o remédio pode ser bem amargo. Numa analogia rápida, eu digo que é preciso demolir no próprio concreto, serrar no próprio ferro e derreter no próprio bronze”.
Para Maca, não é uma estátua de bandeirante que lembra o massacre indígena, mas a continuidade desse genocídio. Ele aceita o argumento de que monumentos são marcos históricos e que servem de disparo à reflexão histórica, mas enxerga problemas nesse processo.
“O problema está na ausência de leitura crítica e, consequentemente, na parcialidade da potência enquanto paradigma comportamental. Ou seja, são totens diante dos quais a história oficial se fundamenta. Há também a ausência de equidade em relação às peças contraditórias. Não há, qualitativa e numericamente, monumentos em memória e homenagem aos sujeitos que caíram lutando justamente contra os heróis oficiais eternizados naqueles monumentos. Salvo quando erigidos enquanto iniciativas de movimentos sociais das ditas ‘minorias’”, conclui.
A reflexão de Maca encontra eco na análise de Olívia Gomes da Cunha, para quem os museus e as instituições científicas devem participar dessa discussão: “Enquanto eles não se abrirem para uma participação radicalmente crítica de suas políticas de celebração e preservação, continuaremos a negar aos coletivos do nosso presente o direito de fazer e ser parte da história. Formas diversas de escravidão de africanos e povos indígenas ao longo de quase quatro séculos participaram dos modos de conhecer a natureza, as espécies, os seres e as formas que se tornaram objetos das ciências. O imperativo do esquecimento é uma violência profunda, que tem consequências nos corpos e nas vidas de todos nós.”
Como entender o racismo estrutural no Brasil?
O professor e ativista Nelson Maca e a antropóloga Olívia Gomes da Cunha refletem sobre os desafios dos povos negros num país onde eles são maioria, mas vivem como minoria
A herança escravista no Brasil ainda está presente na forma como a sociedade se desenvolveu e se desenvolve até hoje, com desigualdade brutal e violência cotidiana contra os povos de origem africana. Diante desse contexto, existe alguma possibilidade de superação do racismo estrutural, com tudo que ele traz a reboque? Com a palavra, o professor, escritor e ativista social Nelson Maca e a antropóloga Olívia Gomes da Cunha.
Olívia Gomes da Cunha
Embora mais de um século nos separem da data que extinguiu oficialmente a escravidão no Brasil, o racismo recrudesce. No primeiro mês após o 13 de maio de 1889, o congresso nacional deu início à discussão sobre a chamada Lei de Vadiagem – que tornava legítimo prender qualquer pessoa nas ruas sem domicílio ou trabalho. A tônica do debate era a utilidade de um dispositivo legal que “lembrasse” os ex-escravos e os seus descendentes que o acesso à liberdade, na prática, estava condicionado à obrigatoriedade de ser produtivo a outrem, e na aceitação de certas regras de moralidade em ambientes públicos.
Os congressistas argumentavam sobre o caráter pedagógico do dispositivo introduzido no Código Penal de 1890; reformulado e fortalecido por teses científico-criminológicas em 1940. A lei de vadiagem foi mantida no código penal brasileiro. Um dos seus efeitos mais eficazes foi a criação do registro de passagem para averiguação criminal. Não é à toa que familiares de milhares de jovens vítimas da violência policial no nosso presente, ao justificarem a inocência de seus filhos executados, aludam ao fato de seus filhos “não terem passagem (para averiguação em delegacias policiais)”.
A experiência da escravidão habita em nós. Impor o esquecimento é a sua primeira e mais iníqua violência. Não podemos esquecer. Precisamos tornar o antirracismo uma preocupação, orientação e prática nas nossas vidas, nas nossas relações interpessoais e, sobretudo, nos espaços institucionais nos quais habitamos. As mortes violentas de pessoas negras e a expansão dos movimentos “Black Lives Matter” fazem reverberar uma pergunta inquietante em diferentes contextos: quais são os limites da nossa existência no Estado-Nação? A conversa começa assim.
Nelson Maca
Lendo teóricos como Carlos Moore, especialmente no debate condensado em “Racismo e Sociedade”, não consigo deslumbrar a superação do racismo. Em sua abordagem, calcado no fenótipo, ele o localiza já em sua leitura dos Vedas. Dentro do movimento social negro, nossa atuação só tem sentido se apontar para as demandas “black Power” ou integração do negro na sociedade atual. É uma escolha, ao menos teórica, com a qual todo militante negro vai se debater. Isso me faz relembrar, em parte, o grande debate sobre a perspectiva de “superação” de Martin Luther King, classificado, principalmente pelos desafetos, de “integracionismo”. No sentido negativo, inclusive, por não propor uma ruptura na estrutura social. Vale insistir numa redundância.
Não há como cogitar a superação dos estragos do racismo estrutural sem a revisão das estruturas políticas, jurídicas e sociais do país. E, ainda que isso seja politicamente enfrentado, Carlos Moore nos relata uma fobia racial milenar. Não tenho expectativa de uma superação efetiva da psique racista do homem. No conto “A Igreja do Diabo” de Machado de Assis, versando sobre o pecado, o próprio personagem Deus afirma no epílogo: “É a eterna contradição humana”. Mas, apesar de tudo, penso que o enfrentamento frontal do preconceito racial, da discriminação e do racismo pode, sim, levar a humanidade à frente.
Esse enfrentamento é uma obrigação de todo o conjunto da sociedade. As políticas de reparação, como as cotas raciais nas universidades públicas e a promulgação da Lei 10.639 e respectivamente a 11.645, que estabelecem a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana no país, são exemplos incontestes de que a luta pela igualdade de direito representa, comprovadamente, um caminho de superação de diferenças no acesso à oportunidades.