Ateneu de Coimbra: uma casa feita de cravos
O número 8 da Rua do Cabido, na Alta da cidade de Coimbra, acolhe, há 81 anos, o Ateneu de Coimbra, Coletividade de Cultura e Recreio. A calçada, que se vai deteriorando, é preenchida pela produção cultural e cívica deste coletivo movido pelos valores-base da democracia e do compromisso social.
A sua fundação começou há mais tempo, a 1 de dezembro de 1940, motivada pelos desafios impostos pela ditadura do Estado Novo e pela Guerra. A pobreza, a fome, a censura e a violência levaram a que um grupo de trabalhadores (operários, comerciantes e industriais da zona da Sé Velha), em conjunto com estudantes, se unisse pela luta do Povo e da Liberdade. O Ateneu, nos primórdios da sua instituição, tinha como principal função distribuir alimentos pela população faminta e esquecida. Hoje, o alimento transformou-se em cultura e o Ateneu de Coimbra posicionou-se como uma das principais associações de cultura e recreio da cidade.
Em 1942, no seguimento da mudança para a sede atual, o Ateneu cresceu e, assim, cresceram as áreas em que a casa passou a intervir. Foi criada uma biblioteca, que desenvolveu atividades com o objetivo de dar a conhecer obras e escritores, bem como promovidas sessões de explicações dirigidas a jovens trabalhadores, coordenadas por recém-professores e estudantes.
A literatura é uma área muito prezada dentro das paredes desta casa, que, ciente da memória que carrega e conhecendo os grandes nomes que por ela passaram, criou um espaço em que o gosto pela leitura e pela escrita são fomentados. Na Biblioteca do Ateneu, textos, cartas e outras publicações, deixadas para trás por personalidades relevantes da cultura portuguesa, são recuperados, preservados e expostos, para serem vistos e lidos por toda a comunidade, à luz da sua importância e valor histórico. Pelas salas do Ateneu passaram, entre outros, João José Cochofel, sócio fundador, Agostinho Neto e Mário Sacramento.
“Toda a arte, toda a cultura, não esqueçamos, requer um esforço de quem a aborda. Fazer obra de Cultura Popular consiste não em evitar esse esforço, mas sim em criar as condições necessárias para que tal esforço frutifique na aquisição de conhecimentos, no exercitar da inteligência, no apuramento da sensibilidade, na formação do carácter.”
João José Cochofel, sócio fundador
Saltando pelos anos de vida desta casa, em 1964, o Ateneu organizou o Festival de Teatro Amador, que contou com a participação do TAC (Teatro do Ateneu de Coimbra), do TEUC (Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra), do CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) e de outros três grupos de fora de Coimbra. O teatro ganhou uma grande importância no seio do Ateneu, começando por reforçar a ideia de que a cultura é transversal a todas as idades e vertentes sociais. Hoje, o trabalho desta secção não é tão evidente, no entanto, é constante a procura de novos colaboradores que queiram concretizar projetos na área da formação do teatro amador ou na encenação de novas iniciativas, por exemplo.
Ainda neste âmbito, em meados dos anos 60, um pequeno grupo de sócios desta instituição cria o Grupo de Fantoches do Ateneu de Coimbra – Os Xarabanecos. De nome caricato, manteve a sua atividade até 1980, estando inativo durante os dez anos seguintes. Em 1990, os fantoches voltaram a ter voz, desta vez na mão de, principalmente, estudantes. Este projeto tem trabalhado no sentido de recuperar o espólio arquivado e de recriar a tradição através de espetáculos, de peças teatrais infantis e de outras atividades semelhantes. O teatro de marionetas remonta aos finais do século XVI e é, hoje, um mundo secreto que sobrevive da tradição oral. A produção teatral para bonecreiros está votada ao abandono, mas são grupos como estes que mantêm vivas a História e a Cultura portuguesas.
A par das visitas guiadas, o Ateneu deixou a sua marca também no campismo coletivo de Coimbra, na figura de Carlos Guedes, como pioneiro da ideia e movedor de jovens. Foram realizados diversos acampamentos nacionais, demarcados pelas atuações no tradicional “Fogo de Campo”. Recorde-se que “Fogo de Campo” é uma atividade tradicional que se dinamiza nas sessões de campismo, que consiste num espetáculo ao ar livre, à volta de uma fogueira, com teatro, música e dança.
Em 1965, a Secção de Campismo organizou o “Acampamento em Coimbra”, no seguimento da inauguração da Casa Abrigo do Ateneu, nas Torres do Mondego, para campistas. Faz parte do espólio do arquivo da RTP uma pequena reportagem, a preto e branco, sem som, da Casa Abrigo do Ateneu de Coimbra. As portas da casa abrem-se às dezenas de pessoas que vão chegando e que se reúnem na rua da frente. Junto do rio, as paredes cobrem-se de trepadeiras, e, por dentro, a casa está decorada com azulejos tradicionais, peças de barro, tapeçaria e com o típico Galo de Barcelos. Por aqui, os caminhantes de todo o país dormiram, comeram, cantaram e partilharam histórias. O primeiro passeio fluvial aconteceu em 1944, na zona de Montemor-o-Velho. Como este, aconteceram vários passeios a outros lugares e regiões do distrito de Coimbra.
“A ideia generalizada de que para mudar o mundo a responsabilidade é da exclusividade do Governo e seus governantes deve ser cada vez mais contrariada, promovendo a responsabilidade do cidadão na contribuição e construção de uma sociedade fortalecida e democrática.”
“site” do Ateneu de Coimbra
Sempre conhecedor da sua índole mais social, o Ateneu criou, em 1967, um posto médico, que fornecia serviços de saúde gratuitos a toda a comunidade. Dez anos mais tarde, em 1977, o Ateneu de Coimbra criou o Centro de Dia 25 de Abril, que se mantém até hoje como um espaço de cuidado, de valorização e de incentivo da reinserção social das pessoas de terceira idade.
De acordo com os últimos dados (em fevereiro de 2023) recolhidos pela plataforma Mapa Social, que faz um levantamento da oferta social em Portugal, este centro recebe 15 idosos, tendo disponibilidade para 50. No entanto, a equipa do Centro de Dia 25 de Abril consegue chegar a 37 casas, em serviço domiciliário, cumprindo a sua missão original de apoiar e de chegar a toda a comunidade. Atualmente, a luta do Ateneu mantém-se no seguimento da valorização do Serviço Nacional de Saúde, assim como pela exigência de melhores e de mais condições de serviços de saúde pública.
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83 anos depois…
Com o tempo, o Ateneu foi redirecionando a sua linha de ação, mas não esqueceu as bandeiras hasteadas na sua fundação. A cultura e a solidariedade cívica são preocupações evidentes nas atividades do coletivo, tendo como ambição principal promover o desenvolvimento da crítica e da reflexão, através do teatro, da música, da fotografia e da conversa.
Hoje, 83 anos depois da sua fundação, o Ateneu está mais vivo do que nunca e, além das comemorações da Revolução dos Cravos, das quais não abdica todos os anos, são várias as atividades que vai dinamizando.
Nos últimos tempos, foram organizados concertos, colóquios, conferências, exposições, visitas guiadas, sessões de cinema, manifestações e outros espetáculos. Entre as iniciativas realizadas no corrente ano, destacam-se as conferências “Luta pela Liberdade – Fuga de Caxias”, que contou com testemunhos pessoais de antigos presos políticos, e “Direito à alimentação e soberania alimentar”. Foi ainda dinamizada uma exposição no âmbito da comemoração dos 80 anos do nascimento de Adriano Correia de Oliveira, em colaboração com o Centro Artístico, Cultural e Desportivo Adriano Correia de Oliveira. A Foteu – Secção de Fotografia do Ateneu de Coimbra tem também promovido diferentes oficinas de introdução à fotografia analógica, dando uso ao laboratório fotográfico do coletivo. De forma a poder dar livre acesso ao laboratório, a todos os sócios do Ateneu que queiram revelar, estudar ou imprimir as suas fotografias, foi criado o Clube do Utilizador.
Muitas vezes, o Ateneu de Coimbra sai da Rua do Cabido e expande-se a diferentes lugares e a diferentes públicos. Além das visitas guiadas já referidas e da participação em congressos fora da cidade, o Ateneu tem colaborado com diferentes repúblicas de estudantes, com grupos académicos e outros coletivos determinados por jovens (e não só), dando reconhecimento a associações e a grupos que têm como foco a produção recreativa e cultural.
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“Queima do Fascismo”
O Ateneu de Coimbra, dando palco à sua assumida aversão à extrema-direita e ao regime outrora vigente em Portugal, até 1974, organiza todos os anos as comemorações do 25 de Abril. Neste ano, depois de terem sido ultimamente realizadas de forma remota, graças à pandemia da covid-19, ou em moldes diferentes, ao ar livre, como no ano passado, as celebrações voltam à sua forma original e estão a decorrer, desde 22 de março, até 10 de maio. Entre conferências, concertos, cinema, declamação de poesia, debates e sessões de formação, o “grande dia” acontece, como sempre, quando, no número 8 da Rua do Cabido, na Alta, se “queima o fascismo”.
A música e a poesia foram a voz da celebração, da recordação e da exaltação da História e dos valores que 25 de Abril cumpriu e que, presentemente, trabalhamos por continuar a cumprir. A falta de apoio à cultura, a precariedade no trabalho, os parcos serviços de saúde pública, as negligências da ação social, entre outros problemas sociais, são contestados pelos cidadãos que se movem pela esperança de um futuro mais livre. Mais livre no direito à habitação, à saúde, ao trabalho, à educação, à cultura… Mais livre no direito ao associativismo.
Pela noite dentro, ouvimos testemunhos de camaradas assíduos que se abraçam e de caras novas que conhecem o Ateneu pela primeira vez. Nas escadas, junto à banca da cerveja, em frente ao palco ou à janela, a fumar, e por todo o lado, ouvimos e vemos gente feliz, envolvida no espírito de união e de camaradagem, fascinada pela força da voz popular: “Só em 74 é que não foi preciso… Desde sempre, lembro-me de isto acontecer aqui, assim.” “Há 49 anos que queimo o fascismo, mas ele continua nas ruas.” “Na minha terra não se celebra o 25 de Abril, isto é espetacular!”
Todos sabem as letras das cantigas de reivindicação cantadas por Miguel Araújo e dançam as canções populares tocadas pelo GEFAC (Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra). A vida que se celebra neste dia é, também, produto da memória que o Ateneu construiu.
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Só há liberdade a sério quando houver
A paz, o pão
habitação
saúde, educação
Só há liberdade a sério quando houver
Liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir
(“Liberdade”, de Sérgio Godinho)
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Já no dia 25 de abril, o povo junta-se na Praça da República, gritando em uníssono, com cartazes e bandeiras, cravos atrás da orelha e punho cerrado, vestido de Liberdade.
Também convocada pelo Ateneu de Coimbra, que se junta à Associação Académica de Coimbra e a outros grupos na divulgação deste momento, a manifestação popular dirige-se até ao Pátio da Inquisição.
O calor não é suficiente para afastar a multidão que, de braço dado, dança e canta, celebrando o dia que abriu portas ao futuro: “Fascismo nunca mais, 25 de Abril sempre!”
A mensagem do Ateneu traduz-se, de certa forma, por via das atividades que vai desenvolvendo, como pela determinação com que respeita, partilha e exalta os valores de Abril. Assim, a importância de as associações não deixarem morrer Abril é decisiva na manutenção da luta do Povo, por criarem espaços de discussão inclusivos, igualitários, democráticos e livres. São elas coletividades que continuam a denunciar os atentados à democracia, que forçam e que reforçam uma reflexão sobre os problemas estruturais da sociedade, que apoiam e que exigem apoio à própria comunidade. O Ateneu de Coimbra é a casa de muita gente e, acima de tudo, um berço de resistência, uma casa da Liberdade.
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04/05/2023