Atlas

 Atlas

(plural.jor.br)

“Ó rei do tempo e substância e cifra do século!, na Babilónia desejaste que eu me perdesse num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; o Poderoso teve por bem que eu agora te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros para impedir a passagem.”

(In “Os dois reis e os dois labirintos”, um dos dezassete contos que compõem o livro “O Aleph”, de Jorge Luis Borges)

(singularidadepoetica.art)

Faço anos em Julho, mas continuei a receber prendas atrasadas ainda este mês. A última veio dos meus amigos Frederico e Marília. São os meus amigos mais antigos em Portugal. Conheci-os em 1975, quando ambos frequentaram o meu primeiro curso de formação teatral, que ministrei no Teatro Experimental do Porto (TEP), no desaparecido Teatro de Bolso António Pedro, na Rua do Ateneu Comercial do Porto. Andei com o primogénito ao colo, também Fredy, que hoje vive em Inglaterra. E a filha, Evelina Pereira, conheço-a também desde pequena. Tenho seguido a sua carreira como modelo e actriz. Actualmente, vive em Miami, nos Estados Unidos da América.

(Direitos reservados)

A prenda em questão é o livro “Atlas”, da autoria de Jorge Luis Borges, livro que os editores apresentam assim:

“Borges juntou às suas impressões de viagem a riqueza inesgotável do seu saber livresco.
Borges começou a viajar com María Kodama em 1975. Os lugares, as cidades e os países que percorreram juntos foram vistos e vividos pelo mestre através dos sons, das línguas que neles se falavam, da textura do ar e da luz, de imagens antigas. Kodama fotografava e descrevia. Borges recitava, e recuperava da memória recordações, poemas e testemunhos da grande literatura. Escreveu depois pequenos textos: sobre a História, os mitos e a poesia que habitavam esses lugares, aliando às suas impressões de viagem a riqueza inesgotável do seu saber livresco: a imensa memória dos livros da sua vida. Atlas foi o último livro de Borges a ser publicado em vida do autor.”

E os editores (Quetzal) prosseguem, na sinopse, transcrevendo um excerto do prólogo desta obra, em que Jorge Luis Borges explica:

“…Não há um só homem que não seja um descobridor. Começa por descobrir o amargo, o salgado, o côncavo, o liso, o áspero, as sete cores do arco-íris e as vinte e tal letras do alfabeto; passa pelos rostos, os mapas, os animais e os astros; conclui pela dúvida ou pela fé e pela certeza quase total da sua própria ignorância.”

E Jorge Luis Borges recorda, ainda:

“María Kodama e eu temos partilhado com alegria e espanto o achado de sons, de idiomas, de crepúsculos, de cidades, de jardins e de pessoas, sempre diferentes e únicas. Estas páginas desejariam ser monumentos dessa longa aventura que continua…”

Jorge Luis Borges é um dos mais famosos escritores argentinos do século XX. (aguiarbuenosaires.com)

Confesso que gosto mais do Borges narrador do que do poeta, mas o defeito é meu, certamente. “Atlas” é um livro para saborear aos bocados. Para ler e reler. Para voltar a ler e descobrir aquilo que nos escapou na primeira ou na segunda leitura. Neste livro, de reduzida dimensão, estão condensados quase todos os mais frequentes temas que povoam o universo borgesiano: os livros, os seus autores prediletos, William Shakespeare e Samuel Taylor (S. T.) Coleridge, os labirintos1, os desertos, os animais (nos quais se desataca o tigre), as cidades, as esquinas, e a sua Buenos Aires, em que ele (Borges) se reconhece porteño (ou seja, pessoa da cidade portuária).

Também há lugar para os sonhos e para os pesadelos. Os sonhos que evocam o pai e um jogo de xadrez. Os sonhos ou pesadelos que são um prolongamento da sua vida na biblioteca da capital argentina. Os sonhos e pesadelos apresentados em nebulosa própria, da sua cegueira. Para ele, os sonhos são livros e/ou bibliotecas!

No texto sobre as ilhas do Tigre (nesta obra traduzida por Fernando Pinto do Amaral), Borges remata:

“Releio o que escrevi e comprovo com uma espécie de agridoce melancolia que todas as coisas do mundo me levam a uma citação ou a um livro.”

Voo num globo aerostático ou balão de Montgolfier, descrito por Jorge Luis Borges. (Direitos reservados)

A referida obra é ilustrada com fotografias que nos trazem imagens de mundos e de cidades que o casal Borges/Kodama captou quando partiu à descoberta. Há uma bela descrição de um voo num globo aerostático como o idealizado por Montgolfier. Julgo que o ideal para Borges talvez tivesse sido a Passarola (projecto de aeróstato) cuja invenção é atribuída a Bartolomeu de Gusmão. No pequeno livro, há reminiscências de outros livros e ilustrações, bem como da Enciclopédia Britânica, que eu também recordo, muitas vezes.

(Direitos reservados)

Na minha infância, a enciclopédia era a nossa Internet. Aí, íamos à procura das palavras e dos conceitos que nos batiam à porta e, às quais, não podíamos fugir enquanto não descobríssemos os seus significados.

Afortunadamente, em casa, tínhamos a colecção da Enciclopédia Britânica, com imagens, fotos, gravuras, mapas, etc. Havia uma outra que era a Barsa2, também enciclopédia. E o meu pai acarinhava, desde a sua adolescência, uma outra obra que completava a nossa formação autodidáctica, El Tesoro de la Juventude3. Recordo, igualmente, outra ainda mais ambiciosa no seu título, composta por revistas encadernadas que se transformaram em volumes: Je sais tout4.

Capa da revista infantil argentina Billiken, n.º 1.
A imagem mostra um menino jogando futebol.
(en.wikipedia.org)

E, finalmente, esta panóplia era completada com a Billiken5, revista argentina que chegava a casa e à nossa livraria para entretenimento da ganapada ou garotada, com artigos diversos e banda desenhada (BD).

E claro, felizmente, havia os mapas ou cartas geográficas, no Atlas. Livro que também representava a nossa geografia, a do meu país, violenta, vulcânica e louca na sua extensão. Nesse atlas, estavam os países que eu ansiava conhecer, incluindo os destinos mais longínquos como a cidade de Bagdade ou Samarcanda (terceira maior cidade do Usbequistão), cidade de aventuras, de comerciantes e de palácios turquesa-esmeralda. “Samarcanda, a mais bela face que a Terra já mostrou ao Sol”, como a define o franco-libanês Amin Maalouf, no seu livro “Samarcanda”.

(viajarentreviagens.pt)

Hoje, perante um atlas, posso marcar com nostalgia as cidades e países que conheci, fundamentalmente, na América e na Europa. Aí estão as recordações de belos destinos, alguns que repeti. E estão também os países que nunca poderei visitar, pois a violenta, louca e bélica geografia dos homens impede-me!

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Notas:

1“[…] Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto.” (Jorge Luis Borges)

A enciclopédia Barsa foi publicada, pela
primeira vez, em 1964. (tnonline.uol.com.br)

2 Como explica a Wikipédia, a Barsa foi uma enciclopédia criada no Brasil e, posteriormente, comprada pela espanhola Editorial Planeta, que a traduziu para o Espanhol e a vendeu em quase toda a América Latina.

Enciclopédia Tesouro da Juventude
(Direitos reservados)

3 – Segundo Cristina Parodi, O Tesouro da Juventude ou Enciclopédia do Conhecimento é uma coleção de vinte volumes e mais de sete mil páginas ilustradas, publicada originalmente em Inglês. Foi traduzida para o Espanhol, editado e distribuído na América Latina pela Editora Jackson, em 1920. Em cada país, as primeiras edições contaram com a colaboração de escritores e de cientistas locais. Na edição argentina – dirigida por Estanislao Zeballos – colaboraram Miguel de Unamuno, José Enrique Rodó, Adolfo Holmberg, entre outros. Cada volume, encadernado em tecido e impresso em papel brilhante, incluía histórias tradicionais, poemas, biografias de homens e mulheres famosos, informações sobre temas científicos, geográficos, históricos e literários. Aulas de Francês e Inglês; trabalhos manuais; jogos, músicas, com excelentes ilustrações e fotografias. Foi a enciclopédia infantil mais famosa e difundida do século XX, obra obrigatória em muitas bibliotecas nacionais, que podia ser adquirida juntamente com um móvel especialmente concebido para conter e expor os vinte volumes.

(Direitos reservados)

4 Je sais tout, foi uma revista mensal francesa criada, em Paris, pelo editor de imprensa Pierre Lafitte, em 15 de Fevereiro de 1905. Queria-se, com a sua edição, uma revista enciclopédica ilustrada destinada à família, para depois evoluir enquanto revista de divulgação científica. Foi famosa pela publicação das obras de Maurice Leblanc, particularmente, as aventuras de Arsène Lupin.

5Billiken é uma revista semanal infantil argentina, fundada em 17 de Novembro de 1919, dia em que foi lançada publicamente, pela primeira vez, em Buenos Aires, pelo jornalista uruguaio Constancio Vígil, proprietário de Atlântida, editorial que publicou a revista, além de ser proprietário desta como de outras empresas editoras.

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02/11/2023

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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