Aumenta a negligência contra idosos, vitimando sobretudo as mulheres

 Aumenta a negligência contra idosos, vitimando sobretudo as mulheres

Fundação Bissaya Barreto, em Coimbra. (© VJS – sinalAberto)

Um aumento significativo dos casos de negligência para com idosos, vítimas de violência (em casa e em instituições) é o dado mais marcante do relatório da linha SOS Pessoa Idosa, que regista denúncias de violência no país, a partir da Fundação Bissaya Barreto, em Coimbra.

(fbb.pt)

É a maior subida registada: no espaço de um ano, os casos aumentaram 16%. Quase metade das denúncias advém do abandono no respeitante a cuidados básicos. Está em causa a violência “praticada principalmente por familiares ou em instituições”. De maio de 2022 a maio de 2023, o serviço contabilizou 1785 denúncias, que chegaram através de contactos telefónicos, de e-mails e de articulações interinstitucionais. No total, as queixas resultaram na abertura de 251 processos internos. A maioria das denúncias (59%) foi realizada por e-mail e por telefone (41%). Ao longo do último ano, o serviço recebeu 301 pedidos de ajuda.

Marta Ferreira, assistente social da linha SOS Pessoa Idosa – que esteve em direto, na manhã de 26 de maio, nas redes sociais da Fundação, a apresentar estes dados – clarificou os diferentes tipos violência: a negligência ativa, a omissão de auxílio intencional, a ausência de cuidados essenciais ao bem-estar da pessoa idosa, perpetrada por familiares ou em contexto institucional.

Marta Ferreira, assistente social responsável pela linha SOS Pessoa Idosa.
(© Fundação Bissaya Barreto)

O abandono ocorre a vários níveis, a começar por não garantir alimentação adequada, por não assegurar que a pessoa tenha higiene ou por negligenciar, de forma propositada, a toma da medicação.

No atinente a lares, há situações de utentes sem alimentação adequada ao estado de saúde, de administração de dosagens elevadas de medicação, deixando os idosos mais prostrados, e de subnutrição – que chegam, debilitados, aos hospitais.

Marta Ferreira inclui, nesta tipologia, a autonegligência, ou seja, a incapacidade da pessoa idosa de perceber que precisa de ajuda, bem como a negligência “sem intencionalidade, passiva, por desconhecimento sobre a forma correta de tratamento, por cansaço do cuidador ou por acentuadas dificuldades financeiras”: “Nos casos que acompanhamos, esta negligência tende a ter por base problemas económicos, que impedem a contratação de um serviço de apoio, por exemplo, apesar de o cuidador agir sem dolo. Os cuidadores não pretendem maltratar a pessoa idosa, contudo, nem sempre têm consciência de que estão a praticar atos negligentes, nomeadamente, quando os próprios também apresentam limitações físicas ou mentais que os impedem de cumprir os cuidados de forma adequada.”

“Os cuidadores não pretendem maltratar a pessoa idosa, contudo, nem sempre têm consciência de que estão a praticar atos negligentes”, refere a assistente social Marta Ferreira, no balanço anual da linha SOS Pessoa Idosa. (© Fundação Bissaya Barreto)

Entre as causas do aumento deste tipo de casos de negligência, figuram as baixas reformas, a diminuição do poder de compra de bens essenciais à sobrevivência, as condições de habitabilidade precárias, o cancelamento de serviços de apoio por impossibilidade de pagamento, entre muitos outros fatores que confluem no aumento das situações de pobreza e, consequentemente, de negligência, nas camadas mais envelhecidas da população.

A maioria das vítimas de violência são mulheres (62%), com idades compreendidas entre os 75 e os 84 anos. Cerca de metade das vítimas está na situação de viuvez (51%) e reside com familiares ou cuidadores (49%). As que vivem sozinhas são cerca de 40%, e 11% reside numa instituição. E os agressores são maioritariamente seus familiares: 42% filhos/as e 38% são homens.

A violência psicológica é referida em 29% dos casos, o que significa o aumento de 3%, face ao período homólogo de 2022. Em 11% dos casos, é referida a violência financeira e agressões físicas, quedando-se os casos de abandono pelos 6%.

(Créditos fotográficos: Roseanna Smith – Unsplash)

Ao longo do último ano, foram trabalhados 13 processos em conjunto com o Ministério Público (MP), enquanto a Procuradoria-Geral da República (PGR) foi responsável por 5% das sinalizações efetuadas ao Serviço SOS Pessoa Idosa.

Lisboa é o distrito com maior percentagem de situações reportadas (27%), e Coimbra ocupa a segunda posição, com 12%, o que significa um aumento comparativamente a 2023. O aumento deve-se à maior divulgação do serviço a nível local e a mais conhecimento do trabalho desenvolvido pelo SOS por parte das entidades deste distrito, onde tem a sede. Os distritos de Setúbal e Porto estão perto daqueles dois, em números de denúncias.

Fundação Bissaya Barreto, com sede na Quinta dos Plátanos, em Coimbra. (© VJS – sinalAberto)

Desde 2014, início da atividade do serviço, a Linha SOS Pessoa Idosa recebeu 2203 pedidos de ajuda, que resultaram na abertura de 1848 processos internos e na realização de 3115 articulações com entidades que intervêm na área da violência/envelhecimento, como a Segurança Social, instituições particulares de segurança social (IPSS), autarquias, unidades de saúde e forças de segurança, entre outros.

O projeto SOS Pessoa Idosa é uma resposta de intervenção social que integra uma linha, nacional e gratuita (800 102 100), com um serviço de atendimento direto e personalizado, incluindo um serviço de mediação familiar. Visa apoiar as pessoas que vivem situações de violência ou que delas têm conhecimento e responder aos seus apelos, garantindo o anonimato de quem denuncia. Os casos podem também ser reportados através do e-mail:sospessoaidosa@bb.pt

***

Os abusos de idosos são os maus-tratos físicos ou psicológicos, a negligência ou a exploração financeira do idoso. Cada tipo pode ser intencional ou não. É frequente a polivitimização (coocorrência de múltiplas formas de abuso) é comum. Os agressores são, não raro, os filhos adultos, mas podem ser outros membros da família ou cuidadores pagos ou informais.

(Créditos fotográficos: Elvis Bekmanis – Unsplash)

Abuso físico é o uso da força, com dano físico ou psicológico ou com desconforto. Inclui golpear, empurrar, sacudir, bater, restringir e administrar alimentação forçada ou fármacos contra a vontade. Pode incluir violência sexual (intimidades sexuais sem consentimento, à força ou por ameaça de força). Abuso psicológico é o uso de palavras, atos ou outros meios de stresse emocional ou de angústia. Inclui ameaça (por exemplo, de institucionalização), insultos, comandos difíceis, silêncio e ignorância da pessoa, bem como infantilização ou paternalismo de preconceito de idade que trata o idoso como criança, tornando-o dependente do agressor.

A negligência é a falta ou recusa de alimentos, de remédios, de cuidados pessoais ou de satisfação de outras necessidades. Inclui o abandono. Negligenciar resulta em dano físico ou psicológico e é considerado abuso.

O abuso financeiro é a exploração ou desatenção aos bens ou fundos do indivíduo. Inclui burlar, pressionar a pessoa para distribuir bens e administrar o seu dinheiro de modo irresponsável.

São notificados menos de 20% dos casos de abuso e apenas cerca de 15% dos idosos que passam por abuso procuram ajuda de autoridades ou de profissionais de saúde.

(Créditos fotográficos: Jose Antonio Alba – Pixabay)

O National Center on Elder Abuse, nos Estados Unidos da América (EUA) cita estudos que apontam 10% de idosos como vítimas de violência física, psicológica, sexual, exploração financeira ou negligência. Estudos do Canadá e do Oeste da Europa revelam que a incidência de abuso se comparava à dos EUA. O abuso do idoso está associado a problemas de saúde física, a danos psicológicos, à hospitalização repetida, à ruína financeira e à mortalidade prematura.

Notificações de abuso de idosos aumentaram durante a pandemia, mercê do aumento da vulnerabilidade das vítimas e de stressores ou gatilhos dos abusadores, devido ao isolamento social, a dificuldades financeiras e a saúde mental ruim. Assim, os médicos devem permanecer atentos para identificar pacientes idosos em risco de maus-tratos e também fornecer encaminhamentos apropriados para intervenção e aconselhamento. Para a vítima, os fatores de risco para abuso em idosos incluem doenças (crónicas, funcionais e cognitivas) e isolamento social. Para o agressor, são o uso abusivo de substâncias, os transtornos psiquiátricos, a história de violência, o stresse e a dependência da vítima, incluindo condições de vida compartilhadas.

O isolamento social da vítima dificulta a deteção de abuso em idosos. (Créditos fotográficos: Getty Images – bbc.com)

É difícil detetar o abuso em idosos, pois muitos sinais são subtis e, muitas vezes, as vítimas não são capazes de falar sobre o abuso e podem escondê-lo por vergonha, por medo de represália ou por desejo de proteger o agressor. Às vezes, quando procuram ajuda, encontram respostas preconceituosas à sua idade, da parte dos profissionais de saúde, que podem, por exemplo, rejeitar as reclamações de abuso como um diagnóstico de confusão, de paranoia ou de demência.

O isolamento social da vítima dificulta a deteção de abuso em idosos. E o abuso tende a aumentar o isolamento, pois o autor limita o acesso da vítima ao mundo exterior: nega visitas e telefonemas.

Os sinais e sintomas de abuso em idosos podem ser erroneamente atribuídos a doença crónica (por exemplo, fratura do quadril atribuída à osteoporose). Porém, são particularmente sugestivas de abuso as seguintes situações clínicas: demora entre a ocorrência de lesão ou doença e a busca de atendimento médico; discrepância nas narrativas do paciente e do cuidador; lesão grave incompatível com a explicação do cuidador; explicação implausível ou vaga referente à lesão por parte do paciente ou do cuidador; visitas frequentes ao pronto-socorro por exacerbações de doença crónica, apesar de um plano de cuidados apropriado e recursos adequados; ausência do cuidador quando o paciente debilitado se apresenta ao médico; achados laboratoriais incompatíveis com a história clínica; e relutância do cuidador em aceitar assistência domiciliar (por exemplo, a visita do enfermeiro) ou deixar o paciente sozinho com o profissional de saúde.

(Créditos fotográficos: Gerd Altmann – Pixabay)

Os médicos são incentivados a considerar a investigação de rotina ou a triagem de rotina à procura de abuso de idosos. A investigação de rotina baseia-se no aumento de suspeita e envolve entrevistas não sistemáticas sobre possível abuso de idosos. A triagem de rotina envolve o uso sistemático de instrumentos validados no contexto de cuidados primários.

Face à suspeita de abuso, deve-se entrevistar o paciente sozinho, pelo menos em parte do tempo, e podem ser entrevistadas separadamente outras pessoas envolvidas. A entrevista ao paciente pode começar com perguntas gerais sobre os sentimentos de segurança, mas deve incluir perguntas diretas sobre possíveis maus-tratos. Os recursos sociais e financeiros do paciente devem ser avaliados, porque afetam as decisões de gestão.

Em pequenas comunidades, devem-se desenvolver processos adicionais para preservar a confidencialidade e a privacidade, ao rastrear e ao responder a suspeitas de abuso em idosos

Deve-se examinar detalhadamente o paciente, de preferência na primeira consulta, à procura de sinais de violência em idosos. O médico pode precisar de ajuda de um familiar ou amigo de confiança do paciente, de serviços de proteção estaduais para adultos ou, ocasionalmente, das autoridades policiais para incentivar o cuidador ou o paciente à avaliação.

É de avaliar o estado cognitivo, bem como os estados de humor e emocional e o estado funcional. E devem ser procuradas as doenças coexistentes causadas ou agravadas pelo abuso.

Devem obter-se de imagens e exames laboratoriais para identificar e documentar os abusos.

(Créditos fotográficos: Alex Boyd – Unsplash)

O prontuário médico deve conter relatório completo do abuso atual ou suspeito, preferencialmente com as palavras do paciente, e incluir uma descrição detalhada de todas as lesões, apoiada, quando possível, por fotografias, desenhos, radiografias e outras documentações objetivas. E devem ser documentados exemplos de falta de atendimento das necessidades, apesar de um plano de cuidados em concordância e recursos adequados.

Os idosos que sofrem abuso estão em elevado risco de morte. Num grande estudo longitudinal de 13 anos com idosos com mais de 65 anos residentes na comunidade encaminhados para serviços de proteção, a taxa de sobrevida foi de 9%, em comparação com 40% num grupo controlo que não foi encaminhado. E a análise multivariada confirmou o efeito do abuso.

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É uma questão de vida. Não é fácil lidar com o idoso, mas abusar dele é apressar-lhe a morte e ferir-lhe a dignidade e a integridade.

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29/05/2023

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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