Aumenta o crime e cresce o medo nas populações
A Notícias Magazine, que se vende, ao domingo, com o Jornal de Notícias (JN) e com o Diário de Notícias (JN), publicava, já a 3 de novembro, na sua edição online, a peça do jornalista Roberto Bessa Moreira intitulada “O crime está a crescer. E o medo também…”, que desmitifica a ideia de Portugal como o “país dos brandos costumes”.
Frequentes assaltos, confrontos mortais entre grupos de adolescentes e tráfico de haxixe – enfim, homicídios, roubos, guerras de gangues, tiroteios e facadas preenchem, em crescendo, os noticiários e fazem escalar a sensação de insegurança. Todavia, o ministro da Administração Interna garante que o país está mais pacífico do que há 10 anos, embora prometa investir 600 milhões de euros na segurança. Polícias, investigadores e estudos internacionais anotam a presença de máfias agressivas, pelo que o futuro pode ser ainda mais violento.
Um jovem de Odivelas (19 anos) foi assassinado com uma garrafa partida, na madrugada de um domingo, em Lisboa. As imagens, gravadas por telemóvel, mostram dois grupos em confronto e o jovem a ser agredido pelo vidro fatal. As circunstâncias do homicídio estão por esclarecer e não há notícia de detenções. Ao invés, foi detido um cadastrado de 46 anos, que tentou matar a tiro os funcionários de um bar, no Porto, na noite em que foi assassinado o dito jovem de Odivelas. O cadastrado disparou seis vezes do interior de um carro em andamento, tendo os projéteis atingido a fachada e a porta do bar de que era cliente. O automóvel com os alvos foi alvejado, mas ninguém ficou ferido. O atirador, apanhado a seguir, ficou em prisão preventiva. A Polícia Judiciária (PJ) informou que a tentativa de homicídio fora motivada por “desentendimentos antigos”.
Dados recentes mostram que a criminalidade cresceu nos primeiros oito meses do ano. No início de novembro, José Luís Carneiro, ministro da Administração Interna, apresentou o balanço da atividade operacional da Guarda Nacional Republicana (GNR) e da Polícia de Segurança Pública (PSP) até agosto. A PSP assinalou 16473 crimes (mais 1,2% do que em 2022), de que resultaram 18929 detenções (mais 7,5%), e registou o crescimento da criminalidade geral, da violenta e grave, da delinquência grupal e da juvenil. E a GNR registou mais crimes (8%), mais detenções (22%) e mais contraordenações (14%), mais apreensões de veículos (4%) e de armas (18%) e 1989 episódios de criminalidade grupal (aumentaram 35%). Os resultados são reveladores.
Contudo, a Associação Nacional de Sargentos da Guarda (ANSG) sustenta que os números não são verdadeiros, porque o país está ainda mais violento. “As estatísticas de criminalidade são distorcidas e branqueadas, não refletindo a realidade, por não incluírem os crimes não denunciados/participados”, refere José Lopes, presidente da ANSG, na certeza de que o “aumento da criminalidade, em particular os crimes contra o património e contra as pessoas, é real”, pois a “descrença leva os cidadãos a não denunciarem muitos crimes”. A estes sentimentos soma-se “um sério défice de patrulhas e viaturas, que compromete seriamente a operacionalidade e infere diretamente no sentimento de segurança das pessoas”. E a “falta de capacidade de investigação [da GNR], ilustrada pela proporção da alarmante média de dez crimes a distribuir por cada investigador, mina a confiança do cidadão nas polícias e no Estado”. Parte da culpa do que está a acontecer, segundo José Lopes, é do ministro da Administração Interna, que permite “um funcionamento com base em interesses segregadores, nomeadamente o enorme ‘séquito’ adstrito aos órgãos de direção e comando superiores, que provocam a absorção de recursos humanos e a natural desmotivação dos militares”.
Também na PSP há problemas, como o da capacidade de recrutamento (por falta de atratividade da profissão) e o do envelhecimento dos recursos humanos, como aponta Rui Silva, vice-presidente do Sindicato Nacional da Carreira de Chefes (SNCC), defendendo que é “preciso reorganizar a orgânica das polícias, adequando a dimensão e a implementação territorial à nova organização das áreas urbanas”, repensar as “funções de polícia”, distinguindo-as das que podem ser desempenhadas por outros atores”, e refletir sobre se é útil manter a profusão de órgãos de polícia criminal existentes. Só com alterações estruturais significativas será possível combater “tendência de crescimento gradual dos crimes contra as pessoas e contra o património”.
A criminalidade organizada e a grupal são realidade, há muito, nos países do centro da Europa. Portugal não está imune, embora longe dos problemas da França, da Alemanha, da Bélgica e dos Países Baixos. Vivemos desafios com o tráfico de droga e com crimes ambientais, como o tráfico de meixão ou de resíduos, que são objeto de redes criminosas. E o foco tem de ser virado para a prevenção que, nos últimos 20 anos, foi secundarizada pelas áreas de repressão criminal.
Empresários de diversão noturna, seguranças e clientes temem a violência. Há lugares em que o crime acontece todas as noites, agravando-se aos fins de semana. Há grupos que praticam roubo, com recurso a facas, à frente de toda a gente. E cresce o sentimento de medo dos clientes e o sentimento de impunidade de quem comete os crimes. Por isso, há clientes com receio de irem beber um copo à Baixa do Porto. A noite está mais agressiva. Hoje, bebe-se menos do que há 10 anos e a violência pode surgir de repente. Os dados mostram que, de janeiro a setembro, houve 349 roubos violentos no país, mais 149% do que em 2022. Já os 1716 roubos por esticão representam um aumento de 26%, enquanto as denúncias de extorsão (1074) subiram 21%.
No Porto, a angústia pela violência associada à criminalidade levou à marcação de uma assembleia municipal. E os partidos concederam que a cidade está dominada por uma perceção de insegurança. Porém, recusaram fazer da Invicta uma localidade sem lei. “Não vemos o Porto como uma cidade insegura, mas como uma cidade com um sentimento de insegurança”, sintetizou José Maria Montenegro, deputado do movimento independente “Aqui Há Porto”. O tráfico de droga é tido como a origem da maioria dos casos criminais e o presidente da Câmara, Rui Moreira, calculou que a venda de cocaína, heroína e haxixe na cidade movimente, no mínimo, 100 milhões de euros por ano.
No resto do país, os crimes não são de menor gravidade. Por exemplo, recentemente, um rapaz, de 17 anos, ficou em prisão preventiva pela tentativa de homicídio, com várias facadas, de um adolescente mais novo, no festival da Juventude, no Cacém. Em Chaves, um jovem de 16 anos foi detido por tentativa de homicídio: em plena rua esfaqueou três rivais, com idades entre os 18 e os 25 anos. São casos de desentendimento. Há um ano, os dados fornecidos pela PJ levaram a Comissão de Análise Integrada da Delinquência Juvenil e da Criminalidade Violenta a concluir que, em zonas da Área Metropolitana de Lisboa (AML), há a “pulverização de grupos juvenis”. São gangues de jovens entre os 16 e os 25 anos, oriundos de zonas urbanas sensíveis.
“Inexistem dúvidas em como os crimes de competência partilhada entre a PJ e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras aumentaram”, vinca a presidente da Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal (ASFIC) da PJ. Carla Pinto diz que a eventual tendência do aumento da criminalidade terá por base a crise económica e a ineficácia da aplicação de sanções aos delitos cometidos por menores. Entre os grupos mais violentos a atuar em Portugal proliferam os do tráfico de droga, crime que mais cresceu ao longo do ano. Só a GNR apreendeu mais de 6,6 toneladas de droga, de janeiro a agosto, aumentando em 101% a quantidade apanhada comparativamente a 2022. E a PSP destaca o crescimento de 26% do número de apreensões e os 3715 traficantes detidos (mais 37%).
Os portos e aeroportos estão inundados de cocaína. Os grandes cartéis fazem tudo para manter o lucro de um negócio que põe em perigo a Europa e pagam fortunas a estivadores e a funcionários de empresas de handling, com acesso aos contentores marítimos e aos porões dos aviões, que escondem a droga. No âmbito destas relações, emerge a violência impiedosa e brutal.
A droga e a violência chegam de lancha rápida. Até setembro, a Polícia Marítima (PM) apreendeu 33 barcos – mais do dobro do que em todo o 2022 –, com quase 33 toneladas de droga, tal como identificou e deteve 81 tripulantes de narcolanchas, quando, em 2022, tinham sido apenas oito os intercetados. O contra-almirante Vizinha Mirones, segundo-comandante-geral da PM, sustenta que há “um crescimento emergente no tráfico internacional de estupefacientes por via marítima”, cujas redes assumem novas estratégias de atuação utilizando meios tecnológicos mais evoluídos”. E esclarece que a esmagadora maioria das apreensões ocorreram ao largo da costa sul do Algarve a grupos que partem da costa de Marrocos, em “embarcações de alta velocidade, de pesca ou de recreio”. E os traficantes de haxixe estão mais agressivos.
Os peritos internacionais estão atentos ao que ocorre em Portugal e tiram conclusões ambivalentes. Em agosto, o Índice da Paz Global, do Instituto para a Economia e Paz, fazia de Portugal o sétimo país mais pacífico do Mundo. Este ranking utiliza “23 indicadores qualitativos e de fontes altamente respeitadas” para medir o estado de paz em três domínios: o nível de segurança e proteção da sociedade; a extensão dos conflitos internos e internacionais em curso; e o grau de militarização.
Todavia, um mês depois, o relatório anual da Iniciativa Global contra a Criminalidade Transnacional Organizada garantia que Portugal está na mira das redes de tráfico de seres humanos. “Acredita-se que os casos de tráfico de seres humanos são significativamente subnotificados. A maioria das vítimas menores são rapazes da Roménia, explorados para adoção, exploração laboral, servidão doméstica, mendicidade ou exploração sexual”, alertava a organização.
O “Índice Global do Crime Organizado 2023” assegura que Portugal é usado para tráfico de armas para África e de diamantes do sudoeste africano, para abastecer o mercado negro da Bélgica. E identifica “grupos mafiosos que se dedicam à extorsão, ao jogo, ao tráfico de droga, à exploração sexual e à posse e tráfico ilegais de armas e munições”. “Alguns grupos são constituídos por seguranças privados associados à vida noturna das grandes cidades, como o Porto, e estão ligados a casos de homicídio”, lê-se no relatório.
O recrudescimento do crime organizado no país enquadra-se na tendência global dos últimos tempos. O crescimento dos mercados criminais e dos grupos envolvidos em atividades criminosas gerou o aumento da corrupção e da violência por ajustes de contas e por disputa por territórios de atuação. As notícias divulgadas no último ano indicam a atuação em Portugal de redes criminosas de diferentes nacionalidades, nomeadamente chinesa, brasileira, italiana, espanhola, marroquina, paquistanesa, indiana, entre outras, além da portuguesa.
Para o ministro da Administração Interna, importa ter em mente que os estudos internacionais comparativos mostram que Portugal é “o quinto país mais pacífico e seguro da Europa e o sétimo a nível mundial”. Para tanto, recorre aos efeitos do confinamento da covid-19 e ao impacto dos conflitos na Ucrânia ou no Médio Oriente para defender que “a comparação de 2022 com 2019 é mais rigorosa em termos estatísticos”. Houve “redução de 7,8%, na criminalidade violenta e grave” e “aumento de 2,5% na criminalidade geral”. E, comparando com o período homólogo de 2013, desceu 31,9% a criminalidade violenta e grave e de 3,8%, a criminalidade geral.
O governante referiu que, até setembro, a GNR fez mais operações de fiscalização, mais 8% de patrulhas e mais 22 % de detenções e efetuou mais 2600 patrulhas de controlo costeiro, enquanto a PSP reforçou as operações especiais de prevenção criminal e fez mais de 30 mil operações policiais. Anunciou o reforço do “sistema de vigilância costeiro, operado pela GNR, nos Açores”, para lidar com o tráfico de droga. Lembrando que Portugal tem – comparado com a generalidade dos países europeus – elevado número de polícias, fruto do empenho do governo em rejuvenescer as forças de segurança, relevou que, em 2022, ocorreram cerca de 2500 ingressos na GNR e na PSP, o maior número dos últimos oito anos, prevendo-se que, em 2023, os ingressos nas forças de segurança sejam superiores a 1600. E prometeu 64 milhões de euros, para veículos, 15 milhões, para equipamentos de proteção, 11 milhões, para armamento, cerca de cinco milhões, para equipamentos de apoio para atividades operacionais e 236 milhões para esquadras da PSP e postos da GNR. É, em suma, um investimento total de 607 milhões de euros até 2026.
Porém, da PJ vem o pedido do aumento da qualidade da formação, face à celeridade do desenvolvimento dos meios tecnológico-financeiros usados pelos criminosos, e maior celeridade legislativa, para que a investigação consiga acompanhar a criminalidade, como é o caso da lei dos metadados ainda por publicar. Com efeito, só com mais ferramentas, será possível combater casos graves de crimes organizados ou de criminalidade grupal.
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Tem razão o ministro em salientar o papel das forças de segurança, o aumento de efetivos e um ambicioso investimento na segurança das populações. Porém, não interessa comparar com 2013. A descida é fictícia, porquanto a trajetória da criminalidade é de subida e com outros ingredientes. Foi o confinamento a deixar as populações transmutadas na sua sensibilidade; e são, agora, os conflitos no Leste Europeu e no Médio Oriente. Temos de estar preparados.
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09/11/2023