Bardot: “E Deus Criou… a Mulher”
Se Deus criou a Mulher, Roger Vadim criou BB. Isto é, Brigitte Bardot.
A vida da actriz francesa, hoje com 89 anos, é recordada numa série de ficção também francesa de seis episódios, destacando-se a sua icónica carreira cinematográfica. Recentemente apresentada na RTP2, a série, baseada em eventos reais, centra-se “nos primeiros anos da sua vida de estrela, enquanto lida com o novo estatuto e, ao mesmo tempo, tenta encontrar o seu verdadeiro eu”, como informa o canal televisivo.
“Jovem e livre, Brigitte Bardot [interpretada por Julia de Nunez] era apaixonada e liberta de convenções, desafiando as regras da sociedade da época. Considerada a mulher mais bonita do mundo, provocou, mesmo não sendo sua intenção, uma revolução sexual mundial. Uma mulher muito à frente do seu tempo, dez anos antes dos acontecimentos de Maio de 68. Filha de boas famílias, tornou-se um ícone internacional depois de protagonizar o filme “E Deus Criou… a Mulher”, anota ainda a RTP 2.
“Et Dieu… créa la Femme” (no original), é um filme ítalo-francês, de 1956, com realização de Roger Vadim e que contou, ainda, com a interpretação do actor alemão Curd Jürgens e Jean-Louis Trintignant. É reconhecido como o filme que lançou Bardot ao estrelato e a tornou o sex-symbol do cinema europeu, por três décadas. Quando o filme foi exibido, causou escândalo na França e na Europa e, imediatamente, transformou Brigitte Bardot numa sensação nos Estados Unidos da América (EUA), onde foi condenado pela Liga da Decência Católica, por ultrapassar os limites da representação da sexualidade no cinema americano. A maioria das cópias disponíveis foram fortemente editadas para se adequar aos padrões de censura do Código Hays.1
Como adianta a Wikipédia, a cena em que Brigitte Bardot dança descalça em cima da mesa é considerada uma das mais eróticas da História do Cinema.
Refira-se, também com base neste projecto de enciclopédia multilingue de licença livre, que “o biquíni, até então muito contestado por uma sociedade conservadora”, se torna “sucesso a partir deste filme, quando Brigitte Bardot o utiliza em algumas cenas”.
O filme é de 1956, tinha eu apenas quatro anos. Devo tê-lo visto aos 15 anos ou aos 16 anos, numa “reprise”, com certeza, quando a censura no meu país (Chile) classificava os filmes para maiores de 14 anos, de 18 anos e de 21 anos. Provavelmente, ter-me-ei colado à entrada do cinema fingindo uma idade mais adulta.
Eu e os rapazes da minha época adorávamos ir ao cinema. O cinema era uma escola de aprendizagem, de tudo, desde a realidade até a fantasia… E esta Bardot, com certeza, despertou em todos nós aquilo que o cinema sempre teve escondido e que satisfazia “esse obscuro objecto do desejo”, parafraseando o belo título de um filme (“Cet obscur objet du désir”), adorado por mim, de Luis Buñuel, datado de 1977.
Mais de 50 filmes integram a filmografia de BB e alguns são notáveis. Ela própria, odiando a sua figura e a sua fealdade, conquistará, pouco a pouco, com esforço e sacrifício a grandeza de ser actriz e intérprete criativa. Não será apenas mais um corpo do desejo, como tantos outros que o cinema, sobretudo nos EUA, criou e vandalizou!
A série televisiva mostra-nos a sua primeira e relevante relação com Roger Vadim, o seu primeiro marido e amante da juventude, aquele jovem realizador que a descobriu e ao qual voltará, muitas vezes, à procura de apoio e confiabilidade.
Também estão presentes os seus outros amores e divagações sentimentais: os cantores Gilbert Bécaud e Sacha Distel, bem como o jovem actor Jean-Louis Trintignant, em início de carreira, e Sami Frey, que resultou no rompimento com seu marido Jacques Charrier e pai do seu único filho. Entre outros acontecimentos da sua vida, a série recorda uma tentativa de suicídio, poucas semanas antes de completar 26 anos; e ainda os insultos sofridos na via pública por mulheres, assim como o assédio dos “paparazzi” na sua vida privada.
O encontro com o realizador do filme “La Vérité” (“A Verdade”), de 1960 – trabalho muito aguardado, de Henri-Georges Clouzot – e, mais tarde, com Jean-Luc Godard, na produção franco-italiana de 1963, do filme “O Desprezo” (“Le Mépris”), inspirado no romance “Il Disprezzo”, do escritor italiano Alberto Moravia.
Aclamado pela crítica, é considerado um dos melhores filmes de Godard e da nouvelle vague. O filme, produzido por Carlo Ponti, foi a oportunidade única de BB (curiosamente, neste filme, há uma brincadeira com a sigla BB: Brigitte Bardot ou Bertolt Brecht?2) contracenar com uma das glórias da História do Cinema Mundial, o cineasta alemão Fritz Lang, numa participação especial, como ele mesmo (“as himself”, como dizem os norte-americanos).
Na apresentação do livro “Brigitte Bardot e a Síndrome de Lolita”, de Simone de Beauvoir, a jornalista de cultura Daniella Zupo (que também é escritora e apresentadora do podcast “As Perennials”) lembra que “o ensaio3 que dá título ao livro, e que foi publicado em 1959, pela revista Esquire, trata do impacto gerado por Brigitte Bardot, alçada ao estrelato após o filme ‘E Deus… Criou a Mulher’, e que, curiosamente, teve rápida aceitação do público americano, enquanto foi duramente criticada pelos franceses”. A jornalista Danielle Zupo acrescenta: “Bardot, explica Beauvoir, foi a primeira a[c]triz a não caber nos estereótipos do cinema e da sociedade ao personificar uma mulher que vive conforme [os] seus desejos, abrindo novas perspectivas para o feminino.”
É de realçar, na referida série, a proximidade física e visual, se assim podemos chamar, da actriz franco-argentina Julia de Nunez, que encarna a Bardot, em alguns momentos notáveis, assim como a acertada escolha do naipe masculino, em que se destaca Victor Belmondo (filho de Jean-Paul Belmondo), no papel de Roger Vadim.
Nos últimos anos, dedicada à protecção dos animais, está na origem da Fundação Brigitte Bardot, instituição para o bem-estar animal criada em 1986 e considerada de utilidade pública pelo Estado francês, desde 1992.
Definindo-se como uma “conservadora no espectro político”, durante a campanha presidencial de 1974, apoiou publicamente o candidato de centro-direita Valéry Giscard d’Estaing, contra o socialista François Mitterrand. Mais próxima dos animais que dos seres humanos, em Novembro de 2021, foi condenada a pagar 20 mil euros, em França, por insultos racistas, e também por comentários homofóbicos, como comenta a Folha de São Paulo, em Paris, na sua edição de 11 de Julho de 2003): “A ex-atriz Brigitte Bardot, cujo último livro “Um cri dans le silence” (Um grito no silêncio) desencadeou na França polêmica e ações judiciais por racismo, negou hoje que seja homofóbica, em carta aberta publicada pela revista gay Tribumove… No livro, Brigitte lamenta a islamização da França, o que provocou a ira de várias entidades – entre elas, a Liga dos Direitos Humanos (LHD) e o Movimento contra o Racismo (MRAP) –, que decidiram processar a ex-actriz”.
Brigitte Bardot, parece fazer parte de uma maldição que recai sobre as belas e formosas actrizes no cinema, as quais, mesmo tendo conquistado público, fama e prestígio, foram infelizes na relação entre o cinema e a vida. A propósito, relembro outras três “estrelas” que todos acompanhamos no ecrã e na vida: Marilyn Monroe, Grace Kelly e Rita Hayworth.
Antes de terminar este artigo, quero deixar uma nota de profundo pesar pela morte de Odete Santos (1941-2023), deputada e militante do Partido Comunista Português. Advogada dos pobres e actriz amadora, pela qual sempre senti uma enorme simpatia e admiração, Odete Santos dedicou a sua vida, entre outras causas, ao amor pelo teatro. Lembro-me, particularmente, de uma entrevista, na televisão, em que falou da morte do seu filho Mário, no dia 6 de Março de 1988. O jovem faria 16 anos no emblemático dia 25 de Abril. Nessa altura, confessou: “Foi o trabalho que me ajudou a superar. Agarrei-me sobretudo à advocacia, e aos poucos a dor acabou para ficar esmagada lá bem no íntimo.”
Notas:
1 – O Código Hays, como nos informa a Wikipédia, foi um conjunto de normas morais aplicadas aos filmes lançados nos Estados Unidos, entre 1930 e 1968, pelos grandes estúdios cinematográficos. A sua designação deriva de Will H. Hays, advogado e político presbiteriano e presidente da Associação de Produtores e Distribuidores de Filmes da América, de 1922 a 1945.
2 – “[…] Daqui o filme transforma-se no ‘meta-filme absoluto’, como lhe chama o programador da Cinemateca Antonio Rodrigues. E tudo vira metáfora do ver, pelo (e através do) cinema. Rodrigues encara também ‘Le mépris’ como uma provocadora anedota que, ao contrário do que é habitual, tem tanto mais graça quanto mais se explicar a piada – partindo daí para um desembrulhar de todas as pequenas provocações que Godard deixou pelo caminho, como as migalhas de pão de Gretel. O poemeto do pobre B.B. (Bertolt Brecht) que Lang declama à rica B.B. (Brigitte Bardot).” (In “Le mépris (1963) de Jean-Luc Godard”, de Ricardo Vieira Lisboa)
3 – O volume “Brigitte Bardot e a síndrome de Lolita & outros escritos” reúne três escritos da consagrada filósofa e escritora Simone de Beauvoir: “Brigitte Bardot e a Síndrome de Lolita” (de 1959), “O que o amor é — e o que não é” (de 1965) e “Uma existencialista observa os americanos” (texto de1947).
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04/01/2023