Belgais — As mãos na vida

 Belgais — As mãos na vida

Maria João Pires (Gulbenkian.pt)

Não podia ter ficado mais contente ao descobrir que a Gulbenkian decidiu — e em muito boa hora — dar início à sua temporada de concertos online com Maria João Pires.

Mesmo que apenas online, ouvir a grande pianista portuguesa é sempre uma experiência única, irrepetível de concerto para concerto.

Uma experiência maior é poder ouvi-la tocar na sala dos pianos, em Belgais, a quinta na Beira Baixa onde vive há muitos anos, ainda que com algumas ausências, e onde criou um centro para o estudo das artes que generosamente tem oferecido, ao nosso país e àquela região, em particular, a dádiva do seu génio criativo.

No início da primeira década deste milénio, tive a oportunidade de participar naquele projecto extraordinário que fazia da arte apenas mais uma experiência integrada de vida e da natureza. Naquela altura, era uma aventura tentar chegar à quinta, conduzindo o meu velho Citroën pelo meio dos campos, depois de abandonar a já precária estrada nacional.

O curso livre de escrita criativa, que então dirigia na Universidade de Coimbra, chamara a atenção e, num lançamento de uma antologia de poesia brasileiro no Cine-Teatro de Castelo Branco, apareceu-me um emissário com o convite para ir almoçar com Maria João Pires a Belgais, pois gostaria de ter a minha colaboração no seu projecto. ,

Pensei que se tratava de algum mal-entendido e lá lhe expliquei que, embora adorasse música, não sabia sequer ler uma pauta, pelo que a minha colaboração não seria decerto o que pretendiam.

Houve insistência e, depois de ter demorado algum tempo por impossibilidades de ordem vária, lá fui até Belgais, muito apreensiva com a possibilidade de me perder pelo meio daqueles campos e nunca mais conseguir encontrar o caminho de volta. Mas tive sorte e lá encontrei na paisagem o ponto branco do que, naquela região, chamamos “um arraial”, um conjunto de pequenas construções ligadas entre si e voltadas para o que depois percebi serem dois pátios interiores.

Durante dois anos, voltei recorrentemente, para cursos intensivos com jovens músicos de todo o mundo, em que se cruzava a música com a poesia com a dança com o teatro com o cinema e, não menos importante, com as caminhadas em grupo pelos campos ou com o apanhar da fruta na horta ecológica — numa espécie de seminários interdisciplinares em movimento.

Lembro-me de como alguns e algumas estudantes ficavam incomodados/as e até bastantes irritados/as com aqueles primeiros dias, porque se tinham inscrito para o que julgavam ir ser “master classes” com a grande pianista Maria João Pires que, já agora, detestava a expressão e o conceito. Percebiam depois que aquela era a mais extraordinária aprendizagem que poderiam realizar — e que era uma aprendizagem que os/as transformaria, também na forma de entender a música e a arte.

Lembro-me de ficar exausta só de estar ali, na sala dos pianos, dias inteiros, muitas vezes, a participar em processos experimentais que envolviam a pianista portuguesa e muitos outros/as músicos/as famosos/as, seus amigos/as, que vinham colaborar com ela, mas também bailarinos/as ou actores e actrizes, todos à volta do piano, partilhando, ouvindo-nos uns aos outros/as.

Eu estava lá pela poesia, sempre com a minha grossa antologia da Norton, chamada a ler, a escolher textos, ali, ao correr da discussão, de improviso…

Lembro-me particularmente de um dia que começou com uma jovem pianista belga possuidora de uma técnica magistral, mas que tocava como um autómato. De como a Maria João ficou incomodadíssima, sem saber como fazer, achando que não era capaz de lidar com aquilo. Lembro-me de a ouvir dizer, quase em desespero, que “não se pode ser tão educado a tocar Schubert!”.

Pediu-me então que lesse um poema seguindo um ritmo binário, marcado com dois pauzinhos (pois não havia ali metrónomos) tocados por um outro grande pianista francês, um dos outros formadores. Claro que toda a gente se riu com a minha leitura. E a Maria João virou-se para a jovem pianista belga e disse-lhe: “estás a tocar Schubert assim!”.

A seguir, foi a vez da bailarina espanhola — a Maria João sentou-se ao piano e pediu-lhe que improvisasse pela sala fora enquanto ela própria tocava. Só me lembro de ver a bailarina enrolar a saia à volta da cintura e quase voar pela sala.

A seguir, pediu à jovem belga que “tocasse” aquilo e que usasse o corpo na sua relação com o piano. E funcionou. Tinha-se dado uma transformação e, agora sim, era Schubert a ecoar por aquela sala de acústica maravilhosa, um antigo lagar, todo em granito.

Muitas outras histórias como esta poderiam ser contadas, mas foi a experiência com crianças que, na altura, me entusiasmou mais do que qualquer outra.

Todos os sábados saiam, depois do almoço, os jipes da casa, para irem recolher crianças pelas aldeias das redondezas. Falamos de aldeias onde a maior parte dos idosos e idosas são analfabetos/as, de casas onde não há pianos ou, mesmo, quaisquer livros, além dos necessários à escola.

Mais uma vez, uma equipa interartes esperava por esses miúdos, que vinham com olhos de espanto mergulhar na arte — escolher pedras no campo e, lançando-as pelo chão da sala dos pianos, dançar ao som do piano da Maria João Pires, voando pela sala atrás de uma bailarina; escolher uma árvore lá fora, abraçá-la e falar com ela — para depois escreverem poemas sobre aquelas árvores, aquelas pedras, aqueles sons, aqueles movimentos.

Costumava levar comigo alguns e algumas estudantes da oficina de escrita de Coimbra e, até hoje, todos/as falam do que foi, para todos e todas, uma experiência inolvidável, que os/as havia de marcar para sempre. Publicámos até um número especial da nossa revista Oficina de Poesia, só com textos resultantes do trabalho daqueles miúdos do Curso de Iniciação às Artes para Crianças e também do dos jovens músicos que também tinham sessões de escrita criativa comigo.

Muito poderia ser ainda escrito sobre aqueles dois anos em que colaborei com o projecto de Belgais.

Do acordar cedo, no silêncio do campo, a ouvir o piano da Maria João Pires, que se levantava sempre de madrugada, a estudar para um concerto; das noites de música e de poesia, e de muita conversa, partilhadas por gente de tantas línguas e culturas, cá fora, no pátio, aproveitando a fresca no fim de dias do intenso calor do Verão da Beira Baixa; do nosso horror ao ver a Maria João a arranjar peixe na cozinha, com um enorme facalhão nas mãos, ela a rir-se de nós, porque “quem não põe as mãos na realidade da vida, não pode ser pianista!”; das professoras do ensino básico, que apareceram por lá para ver o que andávamos a fazer, porque alguns daqueles miúdos, que até então tinham tido imensa dificuldade em aprender a ler e que tinham começado não só a ler, mas também a demonstrar interesse pela escrita; de acordar com um grande tenor austríaco a cantar no quarto do lado e de só o voltar a ver na RTP, no concerto transmitido da Ópera de Viena na véspera de Natal; da equipa de filmagem da TV Cultura holandesa, que andou por lá a fazer um documentário, e cujos operadores de câmara queriam também participar nas oficinas de escrita; do estúdio de gravação que a Deutsche Gramophon lá construiu para gravar os concertos, que traziam tanta gente àquela sala e criavam momentos de convívio para uma bebida e um acepipe que nos juntava, no intervalo, na enorme alegria de um sentimento de união através da arte; enfim… dizer que me sinto uma privilegiada por ter participado naquele projecto único e que tanto merecia ter sido acarinhado ao mais alto nível, o que nunca aconteceu.

Penso que nenhum de nós, formadores/as, músicos, artistas de todas as diferentes áreas, mas também os/as estudantes de Coimbra que me acompanharam e, sobretudo, aquelas crianças, que hoje já serão adultas, poderão alguma vez esquecer o que ali viveram. 

As boas notícias são que Belgais regressou à actividade e que Maria João Pires está de volta. Esperemos que esta terrível pandemia acabe rapidamente para que possamos regressar. Até lá, obrigada à Gulbenkian por nos oferecer a oportunidade de voltar a ver e ouvir essa força da natureza que dá forma a Belgais.

Graça Capinha (Americanista, professora da FLUC e investigadora do CES, trabalha sobre poesia e poética contemporâneas. Coordenou, durante 17 anos, a revista e o curso livre de escrita criativa “Oficina de Poesia”)

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Graça Capinha

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