Boas entradas
Quem já experimentou migrar haverá de saber como é sentir-se uma pessoa “deslocada1”, de certa forma, nas festas de final de ano. Acentua-se quando se troca de hemisfério, do Norte para o Sul, ou do Sul para o Norte. As mudanças são interessantes, uma vez que os climas são antagónicos. Cresci passando calor na “ceia de Natal”, consoada, e pulando as sete ondinhas no mar, no ano novo. O clima gélido e chuvoso não faziam parte dessa época do ano para mim.
Para além das diferenças de estações do ano, não temos por perto a família, ou aquela família que podemos escolher chamada “amigos”. Claro, constroem-se relações, tem-se a sorte de alguns destes morar perto de si na nova morada, ou conquistá-los no novo endereço, mas é diferente. Culturalmente, somos, maioritariamente, ensinadas a passar a consoada com a nossa família. E o peso de migrar para outro país (ou até de cidade) é, de certa forma, arcar com essa mudança e ressignificar essas datas.
É inegável que a passagem de ano do Mundo Ocidental significa um processo de renovação, pelo menos no campo simbólico. As pessoas fazem metas, planeiam mudar de hábitos e, às vezes, até de vida (profissional ou pessoal). Entretanto, a lógica do “eu” é a que predomina. O nós, tão importante nesse rito de passagem anual, presente nas festas de finais de ano, finda por ali.
Contudo, eu parto da ideia de que quem já migrou (mesmo que tenha voltado, ou não, para o país de nascimento) sente o “nós” de outra forma. Esse “nós” coletivo, o qual é normalmente esquecido nos votos e planos do novo ciclo anual, está lá. Isso porque se é de onde se nasceu, mas também do lugar que é (ou já foi) morada atualmente. Há sentimentos, memórias, conquistas, perdas, sofrimento e alegrias que fazem parte de quem migra e do lugar em que se aterrou. Ou seja, assim como o local de nascimento, a nova morada torna-se intrínseca à pessoa.
Em consequência disto, é quase impossível não sentir esse nós que une dois espaços numa pessoa. Se pensa num novo ano bom “aqui” e “lá”, em melhorias de vida de si, mas também dos outros de lá. Em preocupações daqui e de lá. Em esperanças daqui e de lá. E, talvez, essa mistura de vários lugares e de nenhum ao mesmo tempo, poderá ser um dos caminhos para que construamos mais metas para nós, coletivas e efetivas para uma sociedade mais justa. Desejo que tenham tido boas entradas.
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Nota:
1 – A autora utiliza “pessoas” como sujeito oculto predominante.
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04/01/2023