Bolsonaro e o FMI
O histórico da presença do Fundo Monetário Internacional (FMI) não é portador de lembranças agradáveis para a maioria da população dos países menos desenvolvidos. Ao longo das últimas quatro décadas, a simples menção a essa importante instituição do sistema multilateral é capaz de trazer de volta os difíceis momentos dos planos de ajuste econômico a que foram submetidas boa parte das nações do chamado Terceiro Mundo.
A função do FMI sempre foi aquela de defender, até as últimas consequências, os interesses do sistema financeiro internacional. Desde os primeiros casos de manifestação da chamada crise da dívida externa da década de 1980 até os contextos mais recentes de países em dificuldades extremas em suas contas externas, o Fundo costumava apresentar soluções sempre enviesadas pela abordagem ortodoxa e conservadora dos fenômenos econômicos de forma geral.
Um dos fatores complicadores de tal exercício do papel de xerife das contas dos países membros deu-se pela perversa combinação da hegemonia do chamado modelo neoliberal durante esse longo período com a ocorrência de graves crises nas economias. A construção programática e ideológica de um programa para promover um rearranjo na ordem do capitalismo internacional ganha forma com as determinações previstas naquele que passou a ser conhecido como o Consenso de Washington.
FMI e a austeridade
Tendo em vista a localização na capital estadunidense das sedes de importantes entidades do financismo internacional – tal como o Banco Mundial (BM), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o próprio FMI – esse conjunto de regras e condutas foi sendo construído como uma suposta unanimidade inquestionável no âmbito de políticas públicas para economia. Em resumo, pode-se afirmar que a abordagem propunha a introdução de reformas nos países com o objetivo de promover: i) a liberalização mais ampla das relações econômicas; ii) a abertura comercial, com liberdade de movimentação nas contas de capital e mercado de câmbio livre; iii) redução da dimensão do setor público, com privatização, desregulamentação e austeridade fiscal.
Ocorre que o balanço crítico da tal experiência dramática demorou também décadas para ser efetuado. As consequências provocadas pela chegada das famosas “missões do FMI” nos diferentes países foram desastrosas, uma vez que a adoção das propostas da austeridade fiscal vinham atreladas à política monetária arrochada e a medidas de abertura comercial e financeira descontroladas. Os únicos setores que se beneficiavam de tais planos de ajuste ou estabilização eram aqueles vinculados ao sistema financeiro local e internacional. A prioridade sempre se localizava no atendimento dos compromissos com o mercado da banca, ainda que às custas da drenagem de recursos da grande maioria da população para essa finalidade.
O aumento dos índices de pobreza e miséria, o aprofundamento do quadro de desigualdades e o até mesmo o fracasso em solucionar os problemas macroeconômicos a que os programas se propunham fizeram com que um processo de auto crítica e revisão dessa panaceia de recomendações tivesse início. Por todos os cantos do mundo o acrônimo TINA passou a ser questionado, uma vez que a ideia da frase, em Inglês, “there is no alternative” revelava-se cada vez mais irreal. Havia, sim, alternativas ao modelo econômico baseado apenas nas hipóteses da ortodoxia e do monetarismo.
As mudanças a partir da crise
A grande mudança ocorre com a crise econômica e financeira de 2008/9, quando até mesmo os países do centro do capitalismo passam por programas de ajuste que incluíam medidas que apontavam para a direção oposta do que sempre havia propugnado o Consenso de Washington. O momento exigia intervenção do Estado na economia, estatização de empresas e dívidas privadas, regulamentação de mercados e regulação na liberalização generalizada anterior. Por outro lado, a política fiscal passa ser expansionista e os aumentos nos gastos públicos foram sendo então identificados como a única alternativa capaz de reduzir os danos causados pela recessão generalizada que ameaçava os países do centro do capitalismo global.
A hegemonia da abordagem neoliberal cede finalmente o espaço necessário a tinturas de heterodoxia em termos de política econômica. Essa verdadeira reviravolta atinge também as universidades, os centros de pesquisa e as organizações multilaterais. Assim, o FMI não passa incólume a tal onda de renovação e de injeção de oxigênio. Obviamente que não se trata de mudança estrutural no que se refere à função do mesmo como guardião do establishment do financismo internacional. As transformações apenas respondem à necessidade de se promover alguma atualização no cardápio para evitar que as perdas no sistema terminem por comprometer a continuidade do mesmo.
No entanto, a partir de 2020, esse processo lento avança em ritmo e velocidade com a eclosão da pandemia. A emergência da crise proporcionada pelo coronavírus recoloca no centro do debate a questão da intervenção do Estado, a necessidade de políticas públicas dirigidas e o aumento significativo das despesas públicas em todo o planeta. O receituário do Estado mínimo e a arrogância da austeridade fiscal a qualquer custo cedem espaço a uma agenda de novo tipo. Afinal, trata-se de promover uma reviravolta na orientação da política fiscal e de incorporar a necessidade do aumento nos gastos governamentais, ainda que esse movimento promova uma elevação do déficit público e da dívida estatal.
Flexibilizar a austeridade e taxar os ricos
A situação está de tal ordem problemática na economia global que o tradicional documento do FMI, Panorama da Economia Mundial para o mês de outubro, sugere a flexibilização das regras fiscais em razão da crise:
(…) “Se as regras fiscais limitam a margem de manobra, a situação oferece justificativas para suspendê-las provisoriamente, comprometendo-se por sua vez a seguir uma trajetória gradual de consolidação uma vez superada a crise, para restabelecer o cumprimento das regras no médio prazo. Poderia ser criada uma margem de manobra para as necessidades imediatas de gasto, priorizando as medidas adotadas contra a crise e reduzindo os subsídios improdutivos e mal focados” (…)
Por outro lado, o mesmo documento toca em outro tema, igualmente considerado um verdadeiro tabu no interior do sistema financeiro. Trata-se da proposta de promover uma elevação de tributos para fazer face às dificuldades da conjuntura recessiva. Assim o Fundo reconhece a necessidade de buscar mais recursos pelo lado da arrecadação, uma vez que apenas repisar a cantilena do corte de despesas não atende mais às exigências colocadas pela gravidade da crise. (…) “Ainda que seja difícil a adoção de novas medidas de receitas fiscais durante a crise, os governos talvez devam colocar-se a possibilidade de incrementar os impostos progressivos aplicados aos menos afetados pela crise (por exemplo, elevando as agentes do setor privado mais privilegiados e aos setores que estejam relativamente alíquotas de impostos para as categorias de renda mais alta, para as propriedades mais valiosas, para os ganhos de capital e os patrimônios), assim como a possibilidade de modificar a tributação das empresas para garantir que as mesmas paguem impostos de acordo com seus ganhos. Os países também deveriam cooperar com o desenho da tributação internacional das empresas para responder aos desafios da economia digital.” (…)
Bolsonaro faz do Brasil um pária
No entanto, nem mesmo essa mudança de postura do FMI encontra ressonância no interior do governo Bolsonaro. O superministro da Economia se mantém apegado à sua obsessão com a obediência cega ao rigor fiscal. A cada nova necessidade colocada pela emergência da crise que implique aumento das despesas públicas não financeiras, Paulo Guedes reage e aponta para os supostos riscos de uma “insolvência” do governo. Assim tem sido com as propostas de um auxílio emergencial para as pessoas e famílias atingidos pela crise. O mesmo ocorre quando se fala na urgência de mais verbas para a saúde e demais rubricas orçamentárias para conter o avanço da covid-19.
Além disso, ele descarta a priori qualquer introdução nas regras tributárias para fazer com que os super ricos e os grandes conglomerados empresariais passem finalmente a oferecer sua cota mínima de contribuição para amenizar os efeitos da crise. Guedes, ao contrário, insiste na tecla de redução da carga de impostos. Ora, trata-se de mais uma insanidade de sua parte, ainda mais em uma conjuntura marcada pela necessidade urgente de mais recursos em mãos do Estado para atravessar o período atual.
Enfim, o isolamento político e diplomático de Bolsonaro só tem aumentado ao longo dos meses. Pressionado por sua base política de extrema direita, o governo parece ter se rendido à manifestação pública de seu Ministro das Relações Exteriores. Ernesto Araújo terminou por reconhecer que as orientações de seu governo não colaboram para uma atuação mais articulada no cenário internacional. E que se isso se confirmar, paciência. Em suas palavras, “que sejamos um pária internacional”.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal no Brasil.