Bolsonaro fez do Bicentenário da Independência ação de campanha
Nos termos do protocolo, Marcelo Rebelo de Sousa, pela manhã do dia 7 de setembro de 2022, chegou primeiro à Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para participar no desfile cívico-militar de celebração dos 200 anos da independência do Brasil. Quase 20 minutos mais tarde, Jair Bolsonaro apeou-se do Rolls-Royce e subiu a rampa para assistir à parada. O presidente português estava pronto para lhe apertar a mão, seguido pelos chefes de Estado de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, bem como pelo secretário executivo da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).
Durante quase três horas, à frente dos convidados VIP (very importante persons) do Governo, passaram, em grandiosa loa ao presidente brasileiro, centenas de crianças, ginastas e outros desportistas, militares, representantes das forças policiais ou de segurança, bombeiros e equipas de saúde. Tanques, motos, 28 tratores em representação da indústria agrícola, sem contar com o sobrevoo de aviões militares, os paraquedistas que aterraram na Esplanada dos Ministérios, os helicópteros…
Soaram nos ares o Hino Brasileiro, o Hino da Independência e uma canção de cariz religioso “Minha pátria para Cristo”. E Bolsonaro encerrou o desfile com um comicieiro discurso.
A tudo e ao lado de Bolsonaro, o presidente português assistiu impávido. E questionado por jornalistas portugueses querendo saber se se sentiu sempre confortável, respondeu, sem hesitação: “Sim.”
Também não terá sentido desconforto ao estar e conversar animadamente com Luciano Hang, um dos oito empresários que estão a ser investigados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em razão da troca de mensagens com intenção de promover um golpe de Estado. Proprietário da cadeia Havan, uma das maiores redes de lojas de departamento brasileiras e que o tornaram, segundo a revista Forbes, o 21.º homem mais rico do Brasil, Hang surgiu antes da chegada de Bolsonaro, a inflamar a assistência, já excitada pela ocasião e pela proximidade do “mito”, como os apoiantes de Bolsonaro lhe chamam.
Para Marcelo Rebelo de Sousa, a proximidade com Hang resulta de situação que lhe escapa ao controlo, recordando ocasiões em que se deixou fotografar com pessoas com antecedentes criminais, como sucedeu em 2019, no Bairro da Jamaica, na região de Lisboa. Interessante e oportuna justificação!
Marcelo, ao vincar que as relações bilaterais ultrapassam os mandatos presidenciais, recordou que, em 1922, pela celebração dos cem anos da separação, também os presidentes do Brasil e de Portugal estiveram reunidos a comemorar a data. E, evocando o milhão de portugueses que vive no Brasil e os mais de 250 mil brasileiros que estão em Portugal, recusou sempre o caráter eleitoralista do desfile – uma evidência, que não sentiu! – e disse: “Venho representar Portugal e, ao representar Portugal, estou a representar séculos de História de Portugal no Brasil.”
As declarações foram recebidas com aplausos dos apoiantes de Bolsonaro presentes no hotel em que o presidente português se hospedou e falou aos jornalistas, mas que se despediu e saiu rapidamente, sem ver a discussão que se seguiu entre os mesmos defensores do presidente brasileiro e uma jornalista portuguesa, constantemente apupada e classificada de “comunista” devido às questões que levantara.
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Com o pleito eleitoral brasileiro à porta, houve quem tenha escolhido ficar em casa no feriado do Dia da Independência, não fosse haver retorno para as opiniões expressas contra o Governo.
Bolsonaro mandou que o exército libertasse 60 camiões para o 7 de setembro, contrariando a ordem do governador do estado, que afirmara impedir a passagem dos veículos na Esplanada dos Ministérios, onde ocorreria o desfile comemorativo. Bolsonaro desautorizou, pois, as forças de segurança, que não autorizaram a entrada de veículos daqueles como medida de segurança. “A Esplanada está fechada e só vai entrar caminhão se depender da minha ordem. Vão entrar pessoas, como estava definido. A Polícia Federal está lá e a ordem é para não entrar ninguém”, disse o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, à Folha de São Paulo.
A notícia de não participação neste desfile frustrou os condutores de autocarro, de camiões e de veículos antigos que tentam, há dois anos, a entrada no desfile. O desafio ao bloqueio da área não é inédito, pois, em 2021, camionistas apoiantes de Bolsonaro romperam as barreiras de segurança na véspera do Dia da Independência e pressionaram a invasão do STF.
O movimento de apoio ao presidente brasileiro e recandidato recresceu em Brasília e os seus tratores participaram no desfile. E o chefe de Estado participou nos desfiles militares na capital. Também no Rio de Janeiro, onde as comemorações se concentraram em Copacabana, os ativistas pró-ditadura militar (1964-1985) tiveram lugar marcado, com presença em grande, e pagaram para montar cartazes extra nas imediações do desfile.
Nos 200 anos de independência, quando faltam poucos dias para as eleições, o Brasil vive o desafio entre as autoridades.O Estado de S. Paulo escreve que Bolsonaro chegaria ao Dia D da campanha com ataques ao STF; o Jornal de Brasília publicou uma “reportagem especial com os episódios que levaram D. Pedro I a proclamar a Independência e o que deu errado no sonho de nos tornarmos uma grande Nação”; Bolsonaro disse que, em outubro, vencerá mais uma etapa do bem contra o mal; e houve momentos de constrangimento num dia que deveria ter sido de comemoração.
Os dois candidatos favoritos na corrida presidencial de outubro – Lula da Silva e Jair Bolsonaro – comemoraram o bicentenário da Independência de forma antagónica. Lula preferiu descansar, depois de mandar uma mensagem, no horário de propaganda, sobre a importância da data, enquanto Bolsonaro, que vinha convocando a população para ocupar as ruas desde julho, sequestrou a importância histórica do bicentenário e transformou-o em palco eleitoral.
A apoteose foi no Rio de Janeiro, onde participou numa “motociata”, manifestação inspirada no modelo fascista de Benito Mussolini, e exaltou manifestantes na orla de Copacabana. O Rio é o feudo político da família Bolsonaro, onde ele e os três filhos fizeram carreira defendendo milícias, torturadores, mordomias para militares e porte de armas indiscriminado. Mas o primeiro show off do dia foi em Brasília, no pequeno-almoço, quando anunciou que na História há momentos de rutura, aludindo ao golpe militar de 1964, e que “a história se pode repetir”. Depois do desfile militar, quando deveria discursar, tirou a faixa presidencial para pedir votos, defender o Governo que segue as normas de Deus, assumindo-se contra o aborto; e que, em outubro, vencerá mais uma etapa do bem contra o mal: “O mal que perdurou por 14 anos no nosso país, que quase quebrou a nossa pátria e que agora deseja voltar à cena do crime.”
Nenhuma palavra para os desafios de um país independente há 200 anos (combate à fome, ao trabalho escravo, desflorestação, ação climática, etc.). E o maior constrangimento foi quando comparou a esposa com as outras primeiras-damas e puxou o coro dos apoiantes a exaltar a sua potência e performance sexual, que “nunca falhou” – espetáculo de machismo, que só confirmou que Bolsonaro é sempre Bolsonaro no atinente a comentários sobre mulheres e sexualidade.
Nas ruas, havia faixas a pedir o impedimento de ministros do STF, o que não cabe ao presidente decidir. E, na tribuna, Bolsonaro mandou um desafio a Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (STE), tendo ao seu lado empresários que estão a ser investigados pelo financiamento de atos antidemocráticos.
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Para vários juristas, o discurso comemorativo do presidente Jair Bolsonaro fere a Constituição, pois transformou o 7 de setembro num dia só do candidato à reeleição, mesmo que, para isso, tenha usado a data e os recursos federais e estaduais em propaganda. Estagnado nas sondagens, atrás de Lula, tentou alavancar a popularidade numa demonstração de força e de intimidação, reunindo muita gente nas ruas das principais capitais brasileiras – capitais onde também desfilaram os integrantes do “Grito dos Excluídos” que, há 28 anos, se manifestam a 7 de setembro. A pergunta deles é: “200 anos de Independência para quem?”Os atos em defesa da democracia foram organizados por movimentos sociais, igrejas e outras entidades da sociedade civil.
Alguns analistas consideram que esta foi a última cartada de Bolsonaro antes da primeira volta eleitoral. É difícil saber, mas esse discurso de ameaça à democracia aumentará a rejeição entre os que gostariam de ter de volta um país civilizado e um presidente que respeitasse as instituições.
Os advogados da Coligação Brasil da Esperança entrarão com uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) no TSE, apontando abuso de poder económico e político por Bolsonaro, que usou o evento cívico-militar de 7 de setembro, em que deveria participar como Presidente da República, para fazer um megacomício de campanha como candidato.
Os discursos desse comício deslavado foram transmitidos para toda a nação, inclusive pela estatal TV Brasil, afirmam os advogados Eugênio Aragão e Cristiano Zanin Martins, que representam a Coligação Brasil da Esperança, a qual tem o ex-presidente Lula como candidato.
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Também a Universidade de Coimbra (UC) celebrou os 200 anos da independência do Brasil e fê-lo, com uma exposição documental na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC) – inaugurada inicialmente no Recife (Pernambuco), em parceria com a Fundação Joaquim Nabuco – e com uma conferência do presidente da mesma fundação, Antônio Ricardo Accioly Campos. Prevê-se que a edição impressa do catálogo da exposição saia brevemente.
Historicamente, como assegura Vital Moreira no blogue Causa Nossa, há ligação profunda da independência do Brasil com a UC, pois os principais próceres da independência – bem como toda a elite intelectual brasileira da época – fizeram ali a sua formação académica e intelectual. Entre eles, destaca-se José Bonifácio de Andrada e Silva, o “patriarca” da independência e conselheiro do infante D. Pedro, e António Carlos de Andrada, seu irmão, deputado pela província de São Paulo às Cortes Constituintes de Lisboa, tendo sido o mais combativo expoente da “causa do Brasil”, defendendo uma solução federal para o Reino Unido de Portugal e do Brasil, cuja rejeição precipitou a secessão. A par disso, a UC manteve, ao longo dos séculos, boa relação intelectual e afetiva com o Brasil, traduzida em frutífero intercâmbio académico de professores e de investigadores e na frequência de milhares de estudantes brasileiros, em todos os graus, desde a licenciatura ao pós-doutoramento. A atestar tal intercâmbio, decorreram, no contexto da Faculdade de Direito (FDUC), dois eventos luso-brasileiros: o Encontro Luso-Brasileiro de Professores de Direito Administrativo, na sexta-feira (9 de setembro de 2022, no Colégio da Trindade – Casa da Jurisprudência) e, dois antes (a 7 de setembro, na Sala 9 da FDUC), o Congresso Luso-Brasileiro “O Direito à Cidade”, podendo dizer-se que a UC “é tanto a maior universidade brasileira fora do Brasil, como a universidade mais brasileira de Portugal”.
Imagem de uma das matrículas do primeiro aluno com registo “natural do Brasil” a estudar na Universidade de Coimbra: a inscrição de Manuel de Paiva Cabral, na Faculdade de Leis, em 13 de novembro de 1579 (trata-se do oitavo nome referido na lista). (© Notícias UC)
Por via da relação com o Brasil, que vem desde o século XVI, o Arquivo e a BGUC dispõem de valioso acervo documental, iconográfico e bibliográfico sobre a História do Brasil, sobretudo até ao século XIX, que a Universidade se orgulha em dar a conhecer, como sucedeu no dia do bicentenário. De resto, Vital Moreira diz lembrar-se de que, nos últimos 25 anos, houve duas conferências documentais e iconográficas sobre a ligação da Universidade com o Brasil, uma em 1999, por ocasião da conferência Portugal-Brasil, Ano 2000, organizada pela FDUC, e outra em 2012, organizada pela BGUC.
Além da BGUC, é de salientar o empenho da Reitoria nesta iniciativa, através do vice-reitor para a cooperação externa, João Calvão da Silva, que esteve na inauguração da exposição no Recife.
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Enfim, a Universidade de Coimbra leva a sério a relação Portugal-Brasil; o poder político encerra-se na partidarização!
12/09/2022