Brasil: 30 mil mortos e tudo está bem
O número de mortos no Brasil por conta da Covid-19 passou dos 30 mil, com mais meio milhão de infectados. Mas, na televisão e nos jornais esses números aparecem como uma mensagem qualquer enquanto as famílias almoçam ou jantam. Ao que parece essa é uma realidade normalizada, bem diferente da do começo da pandemia quando as pessoas se mortificavam com o número de mortos na Itália, por exemplo. Algumas inclusive se recusam a acreditar que as informações, imagens e falas que passam na televisão são verdadeiras. “É tudo invenção da Globo. Eu mesma fui no hospital aqui e tá tudo vazio”, afirma uma parenta, bolsonarista raiz. “Na Record não passa isso”. Ela mesma não usa máscara, a não ser quando é obrigada a entrar no mercado ou outro lugar. E insiste em dizer que as covas abertas em lugares como Manaus e São Paulo são imagens falsas.
Esse é o paradoxo que vive o Brasil. Enquanto os médicos e especialistas da saúde dizem uma coisa, o presidente da nação diz outra. Ele minimiza a pandemia, naturaliza as mortes e, não sendo médico, prescreve remédios para seus seguidores. Não bastasse isso, o Brasil deve ser o único país do mundo que nesse momento de grave crise sanitária não tem um Ministro da Saúde. Dois dos ministros da pasta saíram justamente por serem médicos e discordarem dos absurdos proferidos pelo mandatário. Um saiu porque não tinha como ser contra o isolamento social, coisa que o presidente insistia como inútil. E outro saiu porque se recusou a indicar a hidroxicloroquina como um remédio a ser usado indiscriminadamente por qualquer um que apresentasse sintomas.
Entre os seguidores do presidente a irracionalidade abunda. Dizem não crer na pandemia, mas todos já estocaram em casa os remédios aludidos e estão certos de que se a “doença comunista” chegar eles saberão combater. Pouco parece importar a dor das famílias que estão enterrando seus mortos, afinal “morrer é coisa da vida”, como diz o presidente. E se alguém tenta argumentar de que esses mortos poderiam estar vivos se as cidades tivessem acatado as medidas de achatamento da curva de infecção, dizem: E a dengue? E os ataques de coração? Tudo isso causa morte… Também se recusam a perceber que as mortes por essas doenças outras não acontecem por falta de espaço nos hospitais.
E assim vai o país, enterrando gente, a maioria moradora das periferias, onde já é precário o serviço de saúde. Uma olhada nas reportagens da televisão e as pessoas que clamam em frente aos hospitais são claramente empobrecidas. Não me lembro de ter visto alguma cena em frente a algum hospital particular. Provavelmente para os ricos não faltam leitos nem respiradores, já que eles mesmos são poucos. Mas, as gentes das comunidades, das cidades pequenas, as sem recursos, as de regiões mais afastadas dos centros pulsantes, essas estão morrendo nas cadeiras das Unidades de Saúde ou nas entradas dos hospitais. Em algumas cidades chegou a ter fila de espera para um leito com mais de 400 nomes. E como os leitos de UTI ficam ocupados por 20 ou mais dias, as pessoas simplesmente morrem sem o atendimento.
Enquanto tudo isso acontece o presidente da nação se reúne com ministros para discutir o controle da Polícia Federal, porque não quer ver os filhos dele sendo investigados por crimes como o do gabinete do ódio, que dissemina notícias falsas, ou o da “rachadinha” – esquema de corrupção que se apropria dos salários de funcionários fantasmas. E, nas ruas, grupos de extrema direita, copiando figurinos e palavras de ordem dos movimentos similares que existem nos Estados Unidos, lançam vitupérios contra o Supremo Tribunal Federal e contra os parlamentares. Pedem um golpe de estado, uma intervenção militar e, pasmem, estão armados. Fossem os sem-terra ou os índios já estariam apodrecendo na cadeia. Mas, esses, ao contrário, são protegidos pela polícia e nada lhes acontece.
Na última semana, diante da completa imobilidade dos partidos de esquerda, de centro, e da maioria dos movimentos sociais, torcidas organizadas de times de futebol, autodenominadas antifascistas, saíram às ruas para fazer o enfrentamento com esses grupos violentos da extrema-direita. O resultado não poderia ser outro. Onde as torcidas atuaram, a direita fugiu.
Agora, com os protestos massivos nos Estados Unidos pelo assassinato de George Floyd, no Brasil também alguns movimentos decidiram se mexer e estão realizando protestos nas ruas, mas ainda sem a presença dos partidos ou das centrais sindicais. O medo do vírus e a atenção ao isolamento social tornam esse movimento de tomada das ruas ainda bastante lento. Não é sem razão que os que saíram primeiro foram os jovens torcedores antifascistas, já que eles mesmos estão nas ruas trabalhando, desde sempre, enfrentando quase sem proteção o vírus mortal.
O dramático de tudo isso é que segundo todas as análises dos cientistas e agentes de saúde que estão na linha de frente do combate ao vírus, a curva de infecção ainda está ascendente, o que significa que muito mais gente vai morrer. Uma gente que perderá a vida simplesmente porque o governo do seu país não está preocupado com a sua existência. A tática do presidente tem sido jogar todas as responsabilidades para cima dos governadores e prefeitos, como se o governo federal não tivesse coisa alguma a ver com o que está acontecendo. E entre seus seguidores o mantra é: “vamos salvar a economia, abram tudo”. Para eles, nada está acontecendo. E todas as lágrimas que se derramam em frente às câmeras são de pessoas cujos familiares iriam morrer mesmo, de alguma doença.
São tempos tristes os que vivemos. São tempos de perplexidades. E, infelizmente, de imobilidade.