Brasil: a caminho das trevas?
A trajetória recente empreendida pela sociedade brasileira talvez possa ser bem sintetizada em uma única palavra: retrocesso. Caminhando na direção contrária do que sempre caracterizou a maior parte da história do país, os últimos anos têm sido marcados por um conjunto de processos que apontam claramente para um perigoso retorno a tempos sombrios.
O primeiro aspecto a ressaltar é o da economia. O PIB brasileiro tem se comportado muito aquém do desejado e do necessário. Desde 2015 a taxa acumulada apresenta uma queda de 7%, com 3 anos de recessão acentuada e outros 3 com crescimento em torno de 1%, que mal consegue repor o crescimento da população. Mas o que chama a atenção é também a perda de posição relativa do país na comparação com o resto do mundo. Em 2011, por exemplo, em função do crescimento observado ao longo dos mandatos do Presidente Lula (2003-2010), o Brasil superou o PIB do Reino Unido e alcançou a posição de sexta economia do globo. Pois dados divulgados recentemente demonstram que o país registrou em 2020, sob Bolsonaro, a décima segunda posição. Além disso, as expectativas apontam para uma nova queda para o próximo exercício, quando é previsto um rebaixamento para a décima quarta posição em 2021.
O segundo ponto que impõe preocupações diz respeito à ascensão do negacionismo como política de Estado. A eleição de 2018 colocou no centro do poder uma articulação de forças políticas que, até então, mais chamavam a atenção pelo exotismo de suas proposições extremadas e por suas condutas inadequadas. Porém, nunca se poderia imaginar que tais indivíduos chegariam a ocupar postos de comando, como ministérios e demais organismos de primeiro escalão de governo. O fato concreto é que há dois anos a política oficial brasileira não reconhece fatos inquestionáveis, como o desmatamento da Amazônia e demais biomas estratégicos existentes no território. Da mesma forma, os temas mais sensíveis da política ambiental são sistematicamente retirados da agenda oficial, a exemplo do uso crescente de agrotóxicos e defensivos venenosos, bem como a necessidade urgente de políticas de redução do aquecimento global e de resíduos poluentes.
Negacionismo e intolerância
O negacionismo de natureza anti-científica também ganhou relevância a partir da explosão da crise da pandemia. O Presidente da República assumiu para si a irresponsabilidade de subestimar os riscos da doença desde o seu início, quando a chamava de “gripezinha” ou “vírus chinês”. Na sequência, passou a recomendar, como se médico fosse, drogas e remédios sem comprovação científica alguma para enfrentar a covid 19. Assim, coerente com sua postura genocida, Bolsonaro estimulou a todo instante a aglomeração irresponsável de pessoas e apoiadores, onde parecia ele mesmo sem máscara de proteção. Ao mesmo tempo, criou toda sorte de obstáculos para que as vacinas fossem desenvolvidas e atingissem o grande público. Além disso, afirma a todo instante que não vai tomar o imunizante, em claro desrespeito ao papel de liderança política que exerce no país.
A contrapartida dessa expansão de métodos típicos da Idade Média tem sido o crescimento das igrejas e seitas de forte inspiração neopentecostal no seio da população. É sabido que, em épocas de crise acentuada e falta de perspectivas, abre-se o caminho para o salvacionismo e o apego às crenças sem qualquer fundamento de comprovação pelo avanço da ciências. Em face da perda generalizada de credibilidade das instituições, a fala do pastor ou do líder religioso passa a ocupar o espaço de referência daquilo que seria a boa conduta a se seguir.
O terceiro elemento que compõe esse quadro preocupante refere-se à ocupação crescente de postos estratégicos no governo por militares. Como se sabe, Bolsonaro construiu o início de sua carreira como integrante da baixa oficialidade e quase foi expulso do Exército por má conduta na segunda metade da década de 1980. Chegou a ser preso em 1987 e naquele momento optou pela carreira política para escapar de novas punições. Assim, candidatou-se e foi eleito deputado federal em 1990. A partir de então, seguiram-se sete mandatos ininterruptos de um parlamentar marcado por uma atuação quase inexpressiva até 2018. Essa proximidade com o mundo da caserna abriu espaço para que a alta oficialidade encontrasse nele um meio para retornar com força ao governo.
Volta dos militares e perseguição
A transição política conciliadora mal resolvida e a ausência de soluções pouco efetivas de punição dos abusos e crimes cometidos durante a época da ditadura militar (1964-1984) permitiu que tal retorno se desse sem nenhum tipo de constrangimento. Aliás, muito pelo contrário. Bolsonaro sempre defendeu a política dos anos de chumbo, inclusive enaltecendo em seus discursos a prática de tortura sistemática contra os adversários políticos do regime. Pois agora os saudosistas voltaram ao poder. Oficiais de alta patente ocupam hoje a cadeira de ministro em 9 pastas do governo e os registros oficiais apontam a existência de mais de 6.000 militares (entre membros da ativa e da reserva) nomeados para altos cargos na administração pública federal. Assim, atualmente existe mais militares em posições de governo do que havia na própria ditadura dos generais.
Finalmente, a idade das trevas se manifesta na retomada de práticas de censura e de repressão generalizada aos pensamentos críticos ao governo. Bolsonaro costuma disparar sua bateria contra a imprensa – mesmo no caso de alguns grandes grupos, como a Rede Globo – quando criticado em suas ações. No entanto, a tendência ao autoritarismo vai ganhando espaço com decisões de perseguição judicial contra servidores públicos que tenham manifestado alguma discordância com relação a atos ou decisões do governo. O fato mais recente foi a punição a um reitor de uma universidade pública por suas considerações críticas à política do governo com relação à pandemia. O detalhe é que o mesmo é especialista em epidemiologia na Universidade Federal de Pelotas. Na verdade, trata-se de um percurso que pode caminhar para rituais similares de perseguição política e ideológica, que nos fazem lembrar da própria Inquisição. Identificação do “adversário” a condenar, criação de um simulacro de “julgamento” com ares de legitimidade jurídico-institucional e ao apelo à intolerância da população a apoiar essa purgação dos “pecadores”.
*Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal no Brasil.