Brasileiras lançam-se ao exterior em busca de novas oportunidades
O movimento de migração pode vir de não-documentados, asilados políticos e, também, de refugiados. Em qualquer dos casos de migração, é forçoso re-significar as vivências”. A imigração brasileira é o ponto de partida deste ensaio jornalístico, onde a autora de A Jornada do Estrangeiro — Da Tragédia Grega à Contemporaneidade, em exclusivo para o sinalAberto, reflete e fala de uma realidade que nos passa ao lado — ou fingimos que não vemos. E todavia, os números mostram que todos deveríamos estar mais atentos a este sério problema.
Segundo os dados do Ministério de Relações Exteriores, processados pelo Departamento de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas, os Estados Unidos permanecem como o principal país de destino para brasileiros, com cerca de 1,5 milhão de imigrantes documentados, seguido do Paraguai com 218 mil imigrantes, Japão com 178 mil, Reino Unido com 140 mil e Espanha com 139 mil imigrantes brasileiros. Ao analisar os dados apresentados na Europa, percebe-se que desde 2016 Portugal aparece como o terceiro país com maior número de brasileiros: aproximadamente 110 mil imigrantes. Em seguida, encontra-se a França com 110 mil e a Suíça com 105 mil imigrantes brasileiros. Estes movimentos migratórios são de índole variada, porém os números relativos às migrações não-documentadas não constam destas listas, pela dificuldade de coleta dos dados.
No último Censo de 2010 foi registada a emigração de 491.645 brasileiros. Esse movimento ocorreu em sua maioria por mulheres em busca de melhores condições de vida e oportunidades. Aproximadamente 121 mil mulheres emigraram da região Sudeste do país, seguidas de 46.331 vindas da região Nordeste e de 43.464 da região Sul. Em particular, a migração estudantil é percebida como uma oportunidade de entrada no país de destino, seguida de uma oportunidade de adquirir um visto de trabalho a depender do país e do tempo de permanência.
O movimento de migração passa por diversas etapas, desde burocracias para adquirir o visto adequado à condição de imigrante pretendida, até às etapas de adaptação em si. Nos primeiros meses, a sensação de temporalidade do imigrante altera-se por não possuir mais a rotina e os deveres de quando ainda residia no país de origem. A suspensão da perceção do tempo cronológico faz com que os imigrantes sintam-se inicialmente de férias. Gradativamente, essa perceção faz a transição para a perceção do residente por meio do estabelecimento de rotina.
Ana, nome fictício de uma mulher de 34 anos, gastrónoma, presenciou essa sensação de falsas férias em duas ocasiões. Primeiro como imigrante estudantil em Itália e depois como residente de dupla cidadania em Portugal:
“Do Brasil para a Itália foi diferente. Como fui para estudar, não fui com expectativas de ser aceita ou vista como imigrante, até porque convivia com pessoas de diferentes nacionalidades e não só italianos. Em quase um ano, foram poucas as vezes que tive que falar italiano para lidar com coisas básicas de quem é imigrante no local, como ir ao banco, ou fazer documentação, já que na maior parte do tempo falava inglês. E isso também ajudava com que eu não me colocasse numa posição de imigrante, mas como algo temporário, como se fossem “férias de um ano”. Na transição da Itália para Portugal tive muita dificuldade, porque realmente parecia que eu tinha saído das “férias” para o mundo real novamente, e daí, para esta posição dúbia entre cidadã e imigrante.”
Sair de férias para o mundo real é a representação de um dos espaços “entre” na transição do imigrante para a cultura local. Nesta fase, o imigrante ainda não possui uma rotina estabelecida, portanto permite-se a descobrir o espaço e as relações por meio das idealizações e ficções imaginárias construídas. O estabelecimento de uma rotina faz com que o imigrante entre em contacto com questões do quotidiano, dificuldades e representações no mundo real.
Esse espaço “entre” as relações, entre a territorialidade, entre as fronteiras e as representações é o que refaz a perceção de si. Uma jornada de estrangeiro para pertencente à comunidade anfitriã. Para algumas pessoas, esse momento de transição pode-se desenvolver para um espaço de descobertas sobre si mesmo. Esse foi o caso de Mariana, 34 anos e jornalista, cujo nome também não é o verdadeiro. Mudou-se para Lisboa com o intuito de fazer uma pós-graduação. Tinha o desejo de especializar-se ao mesmo tempo que vivia uma experiência como imigrante. Já exaurida das relações na sua cidade natal, Mariana dispôs-se a descobrir novas experiências distintas daquelas vividas no Rio de Janeiro. Vejam o que ela diz:
“Percebi que em Portugal há uma sensação muito maior de segurança, a saúde pública é rápida e eficiente, as pessoas são mais educadas e corretas. Os portugueses não parecem querer tirar proveito das situações, se dar bem às custas dos outros. (…) Confesso que tive facilidade em me adaptar. Encontrei em Lisboa tudo aquilo que eu desejava, pois estava completamente saturada do Rio de Janeiro, dos moradores da cidade e seus péssimos hábitos.”
No caso de Mariana, esse cansaço deu-se pelas relações vividas. Dentre elas havia a presença do chamado jeitinho brasileiro. O comportamento do jeitinho brasileiro já muito debatido por Sérgio Buarque de Holanda e académicos foi apresentado em carta pelo poeta Ribeiro Couto ao seu amigo, diplomata mexicano, Afonso Reyes. Em princípio, o homem cordial seria o resultado das relações do suposto homem ibérico com a nova terra do Brasil, a ressaltar o que chamava de espírito hospitaleiro e crédulo. O conceito foi cunhado em oposição ao que era suposto ser a “suspicácia e o egoísmo do lar fechado a quem passa” apresentado pelo europeu.
Acontece que o homem cordial cria relações partidas do coração, em que o espírito de amizade vive lado a lado com o espírito de inimizade nos relacionamentos desenvolvidos. Essa dinâmica de poder no espaço íntimo da família e da casa, passa a ser desenvolvida no ambiente do trabalho e no quotidiano da rua. O que para Mariana resumiu-se nos “péssimos hábitos” dos moradores da antiga capital brasileira. Acrescentam-se, também, as longas horas de trânsito na cidade carioca, a agitação da cidade grande, a perceção de insegurança e as dificuldades com o sistema público que atende, aproximadamente, 6,8 milhões de habitantes na capital e 12 milhões de habitantes no estado. Essa perceção negativa em relação ao jeitinho brasileiro nem sempre é partilhada por todos os brasileiros. Muitos sentem falta da informalidade que o país apresenta em comparação à cultura europeia e norte-americana.
A jornada em busca do lugar de pertença na sociedade escolhida é, muitas vezes, um gradual e contínuo questionamento sobre como gerenciar as relações vividas, tanto interna quanto externamente. Em Lisboa, Mariana teve o que chamou um encontro de almas. Deu a si mesma tempo para descobrir-se e desenvolver o próprio ritmo. Tanto que lida até hoje com a sensação de não-pertencimento em sua migração de retorno à sua cidade natal. Mariana complementa:
“Quando voltei, tive dificuldade em me readaptar ao ritmo acelerado do Rio de Janeiro. Na verdade, nunca mais me acostumei com o estilo de vida que levamos aqui. Além disso, tudo aquilo que já me incomodava antes na cidade, passou a incomodar ainda mais. Voltei há quase 4 anos e ainda sinto muita falta de Lisboa e da vida por lá. Nunca teria retornado ao Rio se fosse possível. Me faz falta sentar para tomar um café com calma em uma esplanada, sem pressa, contemplando a vista, a cidade e as pessoas ao redor. Viver em Lisboa faz você dar mais valor aos pequenos momentos, às pausas, aos passeios a pé apreciando a cidade sem destino certo. Você vive de forma bem menos atropelada, está mais atento, percebe e desfruta mais o que acontece em volta. Em Lisboa, as pessoas não têm pressa de viver, parece que sabem que esta falta de pressa é justamente o real sentido de viver.”
Esta negociação de relações feitas pelo imigrante se faz diariamente, mesmo quando retorna ao país de origem sob a condição de uma migração de retorno. O migrante se faz na contínua relação entre as instâncias governamentais do país anfitrião, as relações familiares e de amizade no país de origem e os questionamentos internos.
Regressemos a Ana, que migrou para a Itália com o visto de estudante e terminado o curso mudou-se para Portugal em 2017. Como possui dupla cidadania, não teve nenhuma dificuldade em relação às questões de ordem governamental. Entretanto, essa busca pelo lugar de pertença ainda é um questionamento aberto para si. Debate-se entre ser brasileira — porém sem o desejo de frequentar ambientes em que haja mais brasileiros —, e ao mesmo tempo portuguesa, mas que não se sente ainda pertencente a Portugal. Sobre a sua adaptação a Portugal, Ana esclarece:
“Foi fácil por conhecer bem a cultura portuguesa, mas ao mesmo tempo difícil por não conseguir me estabelecer nem como imigrante nem como local. Não me enxergo como local, mesmo sendo portuguesa. E também não me identifico como imigrante, já que não possuo os mesmos hábitos dos imigrantes tradicionais brasileiros”.
Por ser cidadã portuguesa, Ana já possuía familiaridade com a cultura do país que escolheu para residir. Entretanto, a sua vivência encontra-se no espaço do “entre” em que negocia as relações, continuamente, em busca do sentimento de pertença no país. Ao ser questionada sobre sentir-se pertencente à cultura de Portugal, Ana afirma que sim, porém com ressalvas:
“Não sou vista pelos locais como uma igual, mesmo que seja de alguma forma. Procuro estar integrada nas notícias, políticas, cultura, a realidade do país onde vivo, para que seja mais fácil esta imersão. Mas como parte imigrante, vejo que por parte dos portugueses também há esta separação ‘você é cidadã mas não é como nós’ ”.
A migração por estudo é um dos modos para se conseguir mobilidade no exterior. No caso das mulheres, essa opção é escolhida com o intuito de melhorar as qualificações que já possuem. O estranhamento presente na condição de estrangeiro ocorre pela busca por sentir-se pertencente ao país e à cidade anfitriã. Aos poucos, o sujeito sai da posição de peregrino como aquele que fez a travessia de fronteiras, para um estrangeiro que virá a ser um hóspede até, finalmente, pertencer. Portanto, o imigrante é convidado a sair do “mundo da rua”, onde é percebido como forasteiro face aos costumes locais, e no qual é percebido como quem está de forma transitória para ser recebido e acolhido dentro de casa, daquele espaço mais íntimo onde as relações são familiares. Primeiro torna-se um hóspede e, aos poucos, torna-se em local, pertencendo à cultura e à sociedade que lhe acolheu. Entretanto, a negociação desse espaço “entre” será percebida em diversos graus, independente de sentir-se pertencente porque dentro de si habita uma multiplicidade. Esta mesma diversidade é o que permite lançar-se ao novo em terras estrangeiras. Parte desse processo de adaptação a um novo país é manter-se informado por meio de notícias, da política e das relações culturais. No caso de Portugal, a familiaridade com o idioma permite uma adaptação menos complicada quando em comparação com a migração para outros países. Entretanto, a diversidade presente na língua portuguesa se apresenta aos falantes lusófonos por meio das nuances culturais.
São muitas as camadas de transformação que o migrante vive para sentir-se em casa, numa nova casa. Assim como, também, são diversas as perceções dos migrantes. No caso de Mariana e Ana, a migração estudantil foi a oportunidade de realizar o sonho de mobilidade, podendo ter as suas intenções associadas à qualificação académica, ao desejo de viver uma aventura e à busca por uma experiência de trabalho no exterior.
Contudo, o movimento de migração pode vir de não-documentados, asilados políticos e, também, de refugiados. Em qualquer dos casos de migração, é forçoso re-significar as vivências. Desde as questões simbólicas às questões de aplicação imediata no quotidiano. Durante esse processo, o migrante irá readaptar os seus sonhos à realidade. Os questionamentos desse sujeito pertencente ao espaço do “entre”, da passagem, farão dele um imigrante transnacional. Ou seja, pertencente a dois mundos com qualidades e culturas que podem ser semelhantes ou até mesmo distintas. À medida que este estrangeiro se torna hóspede desse país anfitrião, irá participar cada vez mais do quotidiano a caminho do lugar de pertença.
A Professora e pesquisadora da Columbia University, Saskia Sassen, aponta em seus livros que o imigrante, mesmo adaptado, permanecerá sentindo-se estrangeiro por haver dentro de cada um a realidade de múltiplas vivências. Há, também, aquele que migra, mas descobre na prática a dificuldade em lidar com as exigências da adaptação. A decisão de migrar exige daquele que sai uma força que o impulsiona para permanecer, adaptar e reaprender. Seja por não possuir documentos, seguro de saúde ou uma estabilidade económica, o migrante se percebe frente a diversas adversidades que o obrigará a adaptar-se às condições apresentadas.
*Roberta de Avillez é Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, Mestre em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra e autora do livro ‘A Jornada do Estrangeiro – Da Tragédia Grega à Contemporaneidade’.