Broa de milho da Galiza e frango assado da África do Sul

 Broa de milho da Galiza e frango assado da África do Sul

Antes da internet, para poder partilhar as nossas opiniões e sabedoria, tínhamos de sair de casa e falar com conhecidos: próximos, de vista ou nem isso. Era uma pena que um número tão limitado de pessoas pudessem receber os nossos pensamentos profundos, mas, felizmente, as redes sociais ocuparam sem nenhum pudor a função social e cultural dos cafés. Fora o método, as regras não mudaram: indignar-se ao balcão sempre foi mais divertido que dizer algo construtivo e foi com base na indignação que uma publicação num grupo de portugueses que vivem em Barcelona me despertou interesse. Tudo por causa de uma broa de milho que se revelou uma ofensa nacional.

O contexto é o seguinte: uma das cadeias de supermercados mais populares em Espanha, o Mercadona, conhecida pelos seus preços acessíveis (e por um hummus que recomendo), entrou no mercado português e, pouco a pouco, a influência de Portugal começa a notar-se. A diferença mais óbvia foi que os produtos começaram a ter etiquetas em português e espanhol, o que fez mais pelo meu domínio do espanhol culinário do que anos a viver em Espanha. Aprendam: cilantro são coentros e perejil é salsa. Claro que depois, em espanhol, salsa significa molho e a coisa fica mais confusa. Mas a influência nacional não acaba aí. As redes sociais dizem-me (tenho tido azar e nunca vi) que no Mercadona já se pode encontrar bacalhau à Brás congelado, pargo e, claro, broa de milho.

Até aqui, tudo bem. O pão e a pastelaria em Espanha são de qualidade duvidosa por isso que produtos portugueses apareçam por perto é uma dádiva para os expatriados. O problema é que, quando a notícia sobre a broa saiu nalguns jornais, os espanhóis anunciaram que o Mercadona começaria a ter broa de milho… da Galiza. E foi aí que o caldo se entornou.

O autor da tal publicação queixava-se deste marketing tendencioso, até vergonhoso, negando as raízes portuguesas da broa o que representa um ato de menosprezo por Portugal algo que, diga-se, não é fora do comum por parte de nuestros hermanos. Admito que a minha primeira reação foi, também, de indignação. Como é que pessoas que nem pão sabem fazer se atrevem a ignorar o contributo de Portugal no que diz respeito à panificação? Claramente um atentado contra a nação!

Como a internet serve para mais do que para indignar-se, decidi investigar a questão. Admito, cabisbaixo e fazendo o mea culpa, que a minha reação foi despropositada. Afinal, na Galiza também há broa, uma das tantas similaridades culturais que tem com Portugal. Embora seja provável que a introdução da broa em Espanha esteja influenciada pelo interesse do mercado português, passou-me a indignação e acabei a pensar noutra coisa.

Portugal é uma cornucópia de sabores: centenas de maneiras de preparar bacalhau, marisco, azeite, queijo amanteigado, pão, presunto. Portugal está cheio de coisas boas para beber: vinhos tintos, brancos, verdes bem fresquinhos no verão. Não devemos nada ao resto da gastronomia mediterrânica e, apesar disso, a nossa comida e vinhos são pouco reconhecidos internacionalmente.

Para mim, um exemplo paradigmático desta realidade é a cadeia Nando’s, comum no Reino Unido e com mais de 1.000 restaurantes por todo o mundo. Estes restaurantes servem frango assado, Super Bock, pastéis de nata e até têm molho de piri-piri (sob o nome internacional, peri-peri). Embora inspirados num restaurante português, construídos à volta do frango de churrasco e com um Galo de Barcelos como emblema (chama-se Barci), estes restaurantes têm pouco de Portugal, já que o Nando’s foi fundado na África do Sul. Com a Inglaterra mesmo ao lado, porque é que Portugal não conseguiu que o frango de churrasco chegasse lá sem dar tantas voltas?

Os portugueses têm uma dificuldade tremenda em publicitar-se. Nem nos parece bem, ao contrário dos espanhóis que não têm nenhum problema em pôr o seu orgulho nacional acima dos outros. Se calhar ainda são resquícios do tempo da ditadura — Salazar promoveu a mediocridade como virtude seguindo a lógica do “viver habitualmente” — e a verdade é que perdemos o comboio do marketing mundial, acabando por nem ser reconhecidos perto de casa. Há um longo caminho a percorrer para entrar nesta narrativa, a não ser que queiramos ficar como um “segredo escondido”, sem a fama nem o proveito de, pelo menos, ter uma boa broa de milho ou um belo frango assado.

02/06/2021

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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