Burocracia desmaterializada

 Burocracia desmaterializada

(Créditos fotográficos: Wesley Tingey – Unsplash)

Os leitores menos novos lembrar-se-ão do aparecimento do conceito de escritório eletrónico, na segunda metade do século passado. Hoje, o conceito é tão omnipresente que nem faz sequer sentido falar dele, mas, na década de 1970 e seguintes, o aparecimento de computadores pessoais, de redes de computadores, de correio eletrónico e da Internet prometia passar todos os processos para suporte digital e fazer desaparecer o papel e a burocracia. Esta promessa ganhou ainda mais força com o desenvolvimento, já neste século, da computação em nuvem, de soluções eficazes para teletrabalho e colaboração remota e, ainda, de múltiplas ferramentas de apoio à produtividade, incluindo a inteligência artificial.

A eliminação do papel – a chamada desmaterialização – esteve e ainda está por detrás de muitíssimos projetos e iniciativas, pagos a peso de ouro, com recurso a verbas nacionais ou europeias. A desmaterialização foi, também, a bandeira de muitos governos. O fim anunciado do papel era a promessa da desburocratização, já que, em muitos casos, desmaterialização e desburocratização eram tidos como sinónimos. Infelizmente, a realidade é bem diferente.

O papel continua em força em todo o tipo de repartições, de serviços e de empresas. É certo que os meios informáticos eliminaram muitas necessidades nesta matéria e reduziram os gastos de papel em relação ao que seria necessário se não existissem esses meios, mas a verdade é que o aumento da atividade, potenciado pelas tecnologias da informação e comunicação, conduziu a muitos mais processos, que se traduziram em mais papel. Vejamos, por exemplo, certos processos judiciais que, frequentemente, exigem que muitas centenas ou mesmo milhares de dossiers físicos sejam transportados por carrinhas ou camiões de um lado para o outro; ou que sejam armazenados em intermináveis estantes nos arquivos dos tribunais nacionais. Além disso, muitos dos arquivos de empresas ou de organizações são feitos em papel, pois, surpreendentemente, a durabilidade desse suporte é maior do que a durabilidade do suporte digital, que é condicionada pela durabilidade dos equipamentos e dos suportes eletrónicos.

(Créditos fotográficos: Viktor – Unsplash)

Quantos dos documentos e ficheiros que usávamos nos computadores de há trinta anos deixaram de estar acessíveis e se perderam? Felizmente, nalguns casos, ainda existem cópias em papel.

Mas, se a promessa de menos papel ficou por cumprir, a da desburocratização não lhe ficou atrás em termos de incumprimento. A utilização de meios informáticos possibilitou que, na instrução de todo o tipo de processos e na submissão de todo o tipo de candidaturas, muitos mais passos e documentos fossem solicitados. Desmaterializou-se, é certo, mas não se descomplicou, antes pelo contrário. Em muitos casos, transpôs-se para o mundo digital tudo o que se fazia anteriormente em papel e aproveitou-se para complementar e enriquecer os processos com muitos outros dados e muitos mais procedimentos.

(Créditos fotográficos: Sigmund – Unsplash)

Por exemplo, nos recentes protestos de agricultores por toda a Europa, Portugal incluído, foram muitos os agricultores que se queixaram da complexidade dos processos, o que se traduz em infindáveis horas de trabalho e, portanto, em custos acrescidos. Exigiram, por isso, que os processos fossem simplificados.

Tudo isto nos mostra que a ideia de que o papel era a origem de todos os males, no pilar essencial da burocracia, e de que a desmaterialização tudo resolveria estava, portanto, totalmente errada. Não era o papel que criava a burocracia, mas o que se fazia com ele. Essa função é, agora, amplamente desempenhada por meios digitais, desmaterializados, que, no entanto, não se traduziram em menos burocracia, mas, sim, numa burocracia revigorada e florescente, entretanto desmaterializada.

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18/03/2024

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Fernando Boavida Fernandes

Professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, sendo docente do Departamento de Engenharia Informática. Possui uma experiência de 40 anos no ensino, na investigação e em engenharia, nas áreas de Informática, Redes e Protocolos de Comunicação, Planeamento e Projeto de Redes, Redes Móveis e Redes de Sensores. É membro da Ordem dos Engenheiros. É coautor dos livros “Engenharia de Redes Informáticas”, “Administração de Redes Informáticas”, “TCP/IP – Teoria e prática”, “Redes de Sensores sem Fios” e “Introdução à Criptografia”, publicados pela FCA. É autor dos livros “Gestão de tempo e organização do trabalho” e “Expor ideias”, publicados pela editora PACTOR.

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