Camilo abandonado

 Camilo abandonado

Busto de Camilo Castelo Branco, da autoria do escultor Henrique Moreira. (etcetaljornal.pt)

O abandono a que está votado o busto de Camilo Castelo Branco, na Avenida Camilo, no Porto, não foi alvo de nenhuma petição pública. E também não causa nenhuma inquietação ao presidente da Câmara Municipal. Percebe-se: está suficientemente longe do Largo da Perdição e dos olhares vorazes de indígenas e turistas.

A obra de Henrique Moreira1 resulta de uma homenagem promovida pelo extinto O Comércio do Porto e data de 1925, ano em que o jornal assinalou os 100 anos do nascimento de um dos maiores génios da nossa Literatura. O busto de Camilo, cujo talento gerou “Amor de Perdição”, obra maior do Ultra-Romantismo Português, foi colocado à entrada da avenida com o seu nome.

Outra perspectiva do busto do escritor Camilo Castelo Branco.
(Créditos fotográficos: Carlos S. – tripadvisor.com.br)

Isto é, na zona oriental da cidade, que foi pulmão industrial da urbe e ali acolheu centenas de trabalhadores em “ilhas”2, que ainda hoje marcam presença na Rua do Heroísmo, na Rua de São Vítor, nas Fontaínhas e em Campanhã. Colocado ali, o busto do escritor foi condenado ao esquecimento. Tal qual aconteceu e acontece com os seus habitantes, com as suas ruas e praças. Basta percorrer as artérias da zona para confirmar que assim é, sobretudo, à noite, tão má é a sua iluminação pública.

Mesmo que algumas destas “ilhas” e artérias urbanas acoitem, agora, alojamentos locais (AL) e alguns bares da moda, bem como a Biblioteca Municipal e as “Belas Artes”, útero quente de alguns dos mais importantes nomes da Arquitectura e das Artes Plásticas, a exemplo de Álvaro Siza Vieira, Fernando Távora, Alcino Soutinho, Eduardo Souto de Moura, Aurélia de Sousa, Manuela Bronze, Isabel e Rodrigo Cabral, Acácio de Carvalho, Júlio Resende, Zulmiro de Carvalho e Francisco Laranjo, a par do grupo de artistas constituído por Armando Alves, Ângelo de Sousa, Jorge Pinheiro e José Rodrigues, denominado “Os Quatro Vintes”3.

Era bom, pois, que os “37” subscritores da petição contra a obra de Francisco Simões manifestassem também o seu repúdio pelo abandono a que está condenado o busto de Camilo, a zona oriental e as suas gentes. Isso, sim, faria todo o sentido.

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Notas:

1 – O escultor Henrique Araújo Moreira nasceu em Avintes (Vila Nova de Gaia), no ano de 1890, no seio de uma família humilde. Com 15 anos de idade, ingressou na Academia Portuense de Belas Artes, que estava instalada nos claustros do Convento de Santo António da Cidade e que, mais tarde, passou a designar-se Escola de Belas Artes do Porto. Hoje, é ali que está a Biblioteca Pública Municipal. Terminou o curso com a classificação final de dezassete valores. Foi discípulo de José de Brito, António Teixeira Lopes, Sousa Pinto e Marques da Silva. Dedicou toda uma vida à produção escultórica.

Escultor Henrique Moreira.
(Direitos reservados)

Tem muitas estátuas espalhadas pelo país, mas é na “Invicta” que realiza grande parte da sua obra. Como o já referido busto de Camilo Castelo Branco, a Henrique Moreira se deve também a autoria de “A Juventude” e dos “Meninos”, na Avenida dos Aliados; de “Salva-Vidas” ou “Lobo do Mar”, na Foz do Douro; do “Monumento a Raúl Brandão”, no Jardim do Passeio Alegre; da estátua “Padre Américo” no Jardim (Praça) da República; do “Monumento aos Mortos da Grande Guerra”, na Praça Carlos Alberto; ou ainda – como co-autor, com Alves de Sousa e José Sousa Caldas – do “Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular”, na Praça Mouzinho de Albuquerque (popularmente conhecida como Rotunda da Boavista). Henrique Moreira, que foi consagrado como “o escultor do Porto”, morreu em 1979.

Esta fotografia (que não é recente) foi captada numa ilha na zona do Bonfim,
no Porto. (Créditos fotográficos: Christopher Davies – pt.wikipedia.org)

2 – As ilhas do Porto são (bairros de) habitações operárias. Surgiram, inicialmente, na zona oriental da cidade, mas rapidamente se estenderam ao centro e aos municípios próximos. A origem das “ilhas” é desconhecida, sendo certo que, no século XVIII, já eram relatadas casas a que se chamava de “ilhas”. O conjunto habitacional tinha (tem) apenas uma saída para a rua. Acredita-se que a forte presença da comunidade inglesa na cidade tenha contribuído para a construção das “ilhas”, pois essas habitações registam as mesmas características daquelas que, na cidade de Leeds, alojavam os operários. No final do século XIX, com o desenvolvimento industrial da cidade e com a chegada de muitos migrantes das terras do Norte do país, este tipo de habitação massificou-se.

3 – A denominação “Os Quatro Vintes” assinala o facto de os quatro artistas plásticos terem terminado os respectivos cursos com a nota de vinte valores. “Os Quatro Vintes” é uma alusão irónica a uma marca de tabaco dos anos 60 do século passado.

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Fontes consultadas: sigarra.up.pt, Infopédia e Wikipédia.

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18/09/2023

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Soares Novais

Porto (1954). Autor, editor, jornalista. Tem prosa espalhada por jornais, livros e revistas. Assinou e deu voz a crónicas de rádio. Foi dirigente do Sindicato dos Jornalistas (SJ) e da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP). Publicou o romance “Português Suave” e o livro de crónicas “O Terceiro Anel Já Não Chora Por Chalana”. É um dos autores portugueses com obra publicada na colecção “Livro na Rua”, que é editada pela Editora Thesaurus, de Brasília. Tem textos publicados no "Resistir.info" e em diversos sítios electrónicos da América Latina e do País Basco. É autor da coluna semanal “Sinais de Fogo” no blogue “A Viagem dos Argonautas”. Assina a crónica “Farpas e Cafunés”, na revista digital brasileira “Nós Fora dos Eixos”.

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