“Cântico Negro” para Ruth Escobar (1935-2017)
Peça em 16 cenas sobre a actriz e produtora, nascida no Porto, que revolucionou o teatro brasileiro e combateu a ditadura militar.
1.ª cena – Ruth Escobar é uma figura central do teatro brasileiro da segunda metade do século XX, como actriz e como produtora.
2.ª cena – Nascida no Porto, Ruth emigrou cedo para o Brasil. Viveu os anos de chumbo da ditadura militar (1964-1985). Mas não vacilou: afrontou censores, desafiou tiranos e falsos moralistas.
3.ª cena – A sua participação na “Passeata dos 100 mil”, que, a 26 de Junho de 1963, levou a denúncia e o protesto às ruas do Rio de Janeiro, é apenas um episódio do seu longo combate pela cultura e pela liberdade. Clarice Lispector, Dilma Rousseff, Chico Buarque de Hollanda, Gilberto Gil, Paulo Autran, Nara Leão, Milton Nascimento, Vinícius de Moraes e Tônia Carrero foram alguns dos artistas e intelectuais que juntaram as suas vozes à voz dos manifestantes convocados pelo líder estudantil Vladimir Palmeira, que, anos mais tarde, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores.
4.ª cena – Conheci Ruth Escobar em 1973, no Porto. Ruth apresentou Missa Leiga (1972), no Teatro Rivoli. A obra de Chico de Assis, que aborda as angústias e amarguras do ser humano e que apela à consciência do homem como senhor do seu próprio destino, foi dirigida por Ademar Guerra. A peça reproduzia o ritual de uma missa católica e convidava à participação activa dos espectadores.
5.ª cena – A apresentação em Portugal também causou polémica. A Censura marcelista não impediu a sua apresentação, mas os “pides” marcaram presença na sala e nas ruas da cidade. Ruth Escobar instalou-se com a sua companhia na Pensão Aviz, próximo da Praça da Batalha. Ali, as conversas prolongavam-se pela madrugada. Ruth era uma intelectual comprometida com a “Civilização da Rebeldia” e que se ouvia com atenção. Ficámos amigos e amiúde falávamos por telefone.
6.ª cena – Anos mais tarde, entrevistei-a para um dos jornais (Jornal de Notícias) onde exerci o meu ofício de jornalista e, em 2000, visitei-a em São Paulo. A doença já a minava, mas Ruth Escobar ainda arranjou forças para produzir uma versão de “Os Lusíadas”. Foi o seu último acto.
7.ª cena – Como referi, Maria Ruth nasceu no Porto, em 1935. A mãe era operária e o pai um abastado industrial da cidade, que nunca a reconheceu.
8.ª cena – Ruth frequentou o então Liceu Carolina Michaëlis e foi perseguida. Tal qual assinala na sua autobiografia: “Senti que alguém se levantava e corria atrás de mim. Era a Jacqueline. Ela descobriu – e contou para o colégio. Teve um chilique de manhã e disse que a mãezinha dela estava para morrer, de saber que a filha da amante do pai estava aqui (a filha da amante era eu).”
9.ª cena – Pouco tempo após este episódio, a mãe fez a trouxa e zarparam para São Paulo, no Brasil. Ao encontro de uma tia.
10.ª cena – Aos 16 anos, Maria Ruth foi trabalhar para uma revista paulista e, pouco tempo depois, fundou a Ala Arriba. Uma publicação dedicada à imensa comunidade portuguesa de São Paulo. A publicação alcança o êxito, mas Maria Ruth interpreta o seu primeiro acto de rebeldia: inicia uma longa viagem que a fará passar pelo Camboja e a levará até Saigão, no Vietname. Mais tarde, a Ala Arriba dá lugar à Vértice, cuja linha editorial revela já as suas preocupações sociais e o seu compromisso com a cultura.
11.ª cena – Regressa a São Paulo e casa com o filósofo e dramaturgo Carlos Henrique Escobar, seu primeiro marido. Em 1958, ruma a França, onde faz cursos de interpretação.
12.ª cena – A sua primeira companhia é a Novo Teatro, em parceria com Alberto D’Aversa. Protagoniza em “Antígone América”, de Carlos Escobar. Participa em “Mãe Coragem e Seus Filhos”, de Bertold Brecht, e em “Males da Juventude”, de Ferdinand Bruckner. O teatro passa a ser a sua vida. Definitivamente. Marília Pêra, Armando Bógus, Raúl Cortez, Lélia Abramo, Berta Zemel, Alvim Barbosa, Ivanilde Alves, Dina Sfat e Rubens de Falco são alguns dos nomes do teatro brasileiro que contrata para as suas produções.
13.ª cena – Cria o Teatro Popular Nacional, adquire um autocarro e transforma-o num teatro. Com o autocarro-teatro leva a arte ao encontro daqueles que São Paulo, o mais populoso e impiedoso centro financeiro e industrial do Brasil e da América do Sul, atira para a periferia da cidadania.
14.ª cena – Ergue o Teatro Ruth Escobar e dele faz o útero quente de uma revolução estética que marcou a cena teatral brasileira. O complexo teatral é composto pelas salas Dina Sfat (390 lugares), Gil Vicente (320 lugares) e Miriam Muniz (320 lugares). A Associação dos Produtores de Espectáculos Teatrais do Estado de São Paulo (APETESP) comprou-o em 1997 e é a entidade que, hoje, gere o espaço.
15.ª cena – Chico de Assis, Brecht, Ferdinand Bruckner, Jean Genet, Friedrich Dürrenmatt, Kurt Weill, Rafael Alberti e Fernando Arrabal são alguns dos autores que José Renato, Jô Soares, Antônio Abujamra, Antônio Ghigonetto, Ademar Guerra e o argentino Victor García, entre outros, encenam. Ruth Escobar também dirige, mas é como actriz e produtora que se destaca. Também organiza festivais internacionais, questiona o estabelecido, agita consciências. Foi deputada estadual, mas logo voltou ao teatro.
16.ª cena – A doença de Alzheimer torna-a prisioneira por longos e penosos 16 anos. Ruth Escobar morreu a 5 de Outubro de 2017, em São Paulo. Mas a sua vida e obra justificam a nossa gratidão e o nosso reconhecimento. A gratidão e o reconhecimento devidos a quem ama “o Longe e a Miragem”, ao jeito de José Régio: “[…] Amo os abismos, as torrentes, os desertos… / Ide! Tendes estradas, / Tendes jardins, tendes canteiros, / Tendes pátria, tendes tetos, / E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios… / Eu tenho a minha Loucura! / Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, / E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios… // Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém! […]” (*)
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(*) Pequeno excerto de “Cântico Negro”, de José Régio. O poema preferido de Ruth Escobar, que é um retrato fiel da sua vida. Como actriz, produtora cultural e cidadã.
01/12/2022