Cântico selvagem (2): O corvo Vicente
O corvo Vicente
E aqui temos o Vladimir de novo a respirar connosco a plenos pulmões, após um saudável interregno de férias, em que apesar de tudo teve a gentileza de nos brindar com alguns postais e dualidades mágicas, que sempre tem na manga para os amigos e fãs.
Mas, neste número, confessou-nos que começou por tropeçar nas golfadas de ar da sua irrequieta respiração. Os primeiros minutos foram aos soluços, ora apressando a respiração ora dilatando-a até ficar roxo, um tanto perplexo e receoso de si próprio, por não nos ter dado conhecimento de uma parte significativa (e muito bela, diríamos nós) do seu vigoroso “Cântico Selvagem”, afinal o centro nevrálgico da disputa que manteve com Bernardo Soares: ver “A revolta contra o L. do D.”
Sim, é verdade, Vladimir esqueceu-se que tinha escrito a maioria dos versos da parte III do “Cântico Selvagem”, tendo-os guardado temporariamente lá nos recantos longínquos da sua dilatada memória. E aqui estão eles, para usufruto geral. Por simplicidade e coerência decidimos publicar agora toda a parte III.
Vladimir oferece-nos algo mais, e que não é de somenos: a data. Outubro de 1995, tinha ele uns jovens 26 anos. Ou 6 anos depois de ter sofrido um grave acidente, a “sua primeira experiência de quase-morte”. A não esquecer durante a leitura. Tal como na publicação anterior, esta também é feita em jeito de “fotoviagem”.
As ilustrações do duplo-artista acompanham as suas palavras, levando-nos a exceder amplamente o imaginário do real para nos reencontrarmos na bela mas implacável realidade do imaginário, à distância planetária do trajeto para o sol, que quase aceitamos como casa, a nossa casa, donde não queremos sair, porque não, apesar da dureza.
Já foi dito quase tudo em “A revolta contra o L. do D.” Mas impõem-se algumas palavras porque importa reagir, nem que seja com traços de água, às sublimes provocações do autor, quando estas são singulares e esplendorosamente desafiantes. Não explicar, mas reagir.
Escolhi a provocação do “corvo Vicente” por pensar que a imagem resume a parte III e, quem sabe, todo o poema.
A memória de infância traiu-me. Apesar de ter lido e relido o Bichos de Miguel Torga ao longo de vários anos, só agora reencontrei, a fechar a espartana 6.ª edição de 1961, o fabuloso conto intitulado “Vicente”. (Devo ter demorado uma boa hora a reler as magras oito páginas. Cada palavra pesava e sulcava a alma, como se fosse um escopo.)
Para quem não se recorda, o corvo Vicente foi o único animal da arca de Noé que ousou fugir à arca, afrontando sozinho o dilúvio e a ira de Deus. (Creio que representa a eterna ânsia humana de libertação da escravidão, a ânsia de liberdade, mesmo que o preço a pagar seja alto.)
Os antigos falantes de latim pensavam que o corvo (crow em Inglês), quando gralhava, dizia “cras” – “amanhã” em latim. Assim tornado um símbolo do porvir, ou do destino, o corvo oferece poderes divinatórios, que o espírito humano normalmente utiliza para antecipar tragédias e, mais raramente, esperanças.
O corvo de Torga, esperançado, por ingenuidade ou calculismo, será a auto-profecia da libertação (do fascismo?). Já os inusitados corvos do “Campo de Milho com Corvos”, de Vincent van Gogh, a sua derradeira obra, serão o prenúncio da própria morte do artista dos amarelos.
No “Cântico selvagem (2)”, aqui tomado como a parte III do poema, Vladimir parece estar em vias de sucumbir perante a derrocada iminente do mundo, que ele próprio, aliás, se propõe cantar: “os derradeiros dias”, “o palco está construído”, até a sereia fugiu para o Saara; irreversivelmente “possuído por Satan” e escorraçado “até ao inferno”.
O futuro, nos versos finais, com Einstein ao lado, rumo ao Sol em que não há vida, parece augurar a morte, embora com uma intensa e fulgurante luz de vida. (As dualidades são, definitivamente, uma especialidade de Vladimir.) É relevante sublinhar, em conversa com o pai, que o sol, que o Vladimir utilizava frequentemente nas suas pinturas, representava, de acordo com as suas próprias palavras em vida, a figura protetora do pai, seu companheiro inalienável das vicissitudes.
O “corvo Vicente” de Vladimir pode, pois, ser o corvo de Vincent van Gogh, prenunciando a derrocada iminente no plano psicológico. Mas alguém poderá ver nele algumas notas do “Vicente” de Torga. É muito difícil dizer: Vladimir era um profundo admirador de ambos. Foi também muito influenciado por ambos, tanto na escrita como na pintura.
Desconheço se Vladimir conhecia a obra poética do magnífico Ted Hughes (1930-1988), o autor do duríssimo Crow: From the Life and Songs of the Crow, escrito depois do suicídio da sua companheira Sylvia Plath. (Vladimir era imprevisível nas leituras e ninguém sabia como escolhia os seus autores. Mas é provável que sim, dado o culto que fazia dos poetas a que chamava malditos. Sylvia Plath era uma delas, aliás documentada na sua obra.)
Luís Martinho do Rosário
Coimbra, setembro de 2020
Vladimir Rodrigues
Outubro de 1995
Luís Martinho do Rosário (conheceu e acompanhou a trajetória literária e artística de Vladimir; é professor de biofísica da UC e investigador do CNC)
Cristina Nobre (analisou a obra de Vladimir após a sua morte; é especialista em literatura portuguesa moderna e contemporânea; é professora do IPL e investigadora do CICS.NOVA)