Carta Aberta à Presidência da República Portuguesa
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Senhor Presidente, olhamos para os acontecimentos internacionais com enorme apreensão.
O conflito armado que opõe a Federação Russa à Ucrânia, depois da invasão deste país pela Rússia, tem vindo a recrudescer, como o provam a dimensão da destruição de cidades e aldeias ucranianas, o elevadíssimo número de baixas civis do lado ucraniano e a incontável perda de vidas humanas de militares de ambos os países.
Como cidadãos de responsabilidade, não podemos assistir a este conflito, como se se tratasse de um filme sumamente repetido, que provoca um efeito anestésico e tolda o espírito. É nosso dever procurar os caminhos para uma Paz efectiva, com a maior urgência, desobrigando outras vítimas de uma guerra que adquire contornos de insanidade e violência inexcedíveis, e que, não o sabemos, poderá ser estendida a outras regiões europeias. O tempo que perdermos com questões que não redundem no imediato cessar-fogo é censurável, sob todos os pontos de vista, a começar pelo plano ético.
Não é possível denegar o facto de uma potência mundial militar, a Federação Russa, ter invadido pela força das armas, um país soberano, o que compõe uma clara violação da Carta das Nações Unidas e um acto de agressão que constitui um crime à luz do Direito Internacional.
Como justificação dessa agressão, a Federação Russa tem insistido na tese da desnazificação do exército ucraniano, no flagelo perpetrado por forças militares ucranianas no Donbass e na aproximação da Ucrânia à NATO. Verificou-se, de facto, e com conhecimento de todos, há tempo suficiente, que, na região do Donbass, o exército ucraniano não só incorporou elementos de tendência comprovadamente ultranacionalista e neonazi, como a região do Donbass foi palco para treino militar e combate por parte de grupos paramilitares de tendência neonazi. Além do mais, desde o afastamento do presidente Viktor Yanukovich, em 2014, o Estado ucraniano tem usado o seu exército para exercer violência e bombardear zonas civis, em que actuam forças pró-russas, particularmente as populações de Donetsk e Lugansk, que reclamaram a sua independência em 2014.
Numa ofensiva altamente lesiva para o Estado da Ucrânia, e unilateralmente, a Federação Russa declarou independentes as regiões separatistas de Donetsk e Lugansk e invadiu com brutalidade de meios a Ucrânia, tendo perpetrado, até agora, crimes comprovados contra civis e contra alvos residenciais não militares, além de combater alvos militares bem definidos, gerando uma deslocação de refugiados sem precedentes, em números que podem já rondar os 5,3 milhões de pessoas. Além disso, a Federação Russa deu prova de ter cometido atrocidades em inúmeras povoações, bombardeando e destruindo áreas residenciais significativas. A central nuclear de Chernobil chegou a ser tomada de assalto e sentiu-se, na ocasião, o risco de um acidente nuclear, considerando a extensão dos combates entre as duas facções em litígio.
Se, por um lado, se procurou perceber a estratégia da Federação Russa em pretender controlar o leste e sul da Ucrânia, criando uma cintura que protege a Rússia e lhe confere o domínio do Mar de Azov, o acesso controlado ao Mar Negro e a faixa de circundamento da Ucrânia, face ao que diz ser uma ameaça geo-estratégica do bloco dos países que enformam a NATO, por outro, compreende-se a legitimidade de um Estado ucraniano sufocado e violentado territorialmente, sujeito a uma ameaça constante e que se poderá estender no tempo. A soberania da Ucrânia foi, podemos afirmar, desrespeitada em toda a linha.
As recentes reuniões de representantes da NATO e as declarações do secretário de Estado norte-americano, Anthony Blinken, secundadas pelo secretário da Defesa, Lloyd Austin, hostilizam, de forma ostensiva, a Federação Russa, que já respondeu com ameaças militares a serem levadas em conta, dado o teor do seu discurso.
As provocações recentes na Transnístria elevam este conflito para outro patamar, uma vez que se torna possível que a guerra em curso alastre a esse território independentista e, por conseguinte, à Moldávia, transpondo pela primeira vez o território da Ucrânia.
Os constantes apelos do presidente Volodymy Zelensky, a fim de que seja facultado armamento à Ucrânia para responder à ofensiva russa, podem resultar no agravamento do conflito armado a um nível extraordinariamente indesejável, pondo em perigo toda a região, a Europa e, em última análise, o Mundo. O presidente russo já apresentou argumentos bélicos e ameaças, sob a forma de armas nucleares de destruição massiva, que podem atingir qualquer região do planeta. Face a esse tipo de argumentação, não parece absolutamente sensato que os países membros da NATO e outros países europeus insistam em facultar armamento à Ucrânia, como se o risco de um confronto militar sem precedentes não fosse uma contingência verosímil.
Neste momento, há uma possibilidade de Paz que, não sendo a ideal, é inteiramente necessária e pela qual se torna indispensável lutar, seja a que preço for, sob pena de ser tarde de mais para qualquer outro tipo de paz. Há que, como referiu o secretário-geral das Nações Unidas, compreender as “queixas” da Federação Russa e aceitá-las. Há que permitir à Rússia o controlo da região a que se aludiu, evitando a entrada indirecta e directa de forças da NATO, cujo resultado seria catastrófico. Há que gerir todos os recursos da diplomacia e procurar fazer chegar ao povo russo, aparentemente indiferente ou inconsciente, as consequências trágicas do que está a acontecer. Aliás, a provocação, a ser comprovada, pelas forças militares russas, com o disparo de mísseis para Kiev, na altura em que ali se encontrava António Guterres, pode ser um sinal de que a Rússia estará a desprezar os canais de diplomacia, tal como eles se configuram actualmente.
Não é admissível criar mais elementos de tensão, como se se vivesse uma realidade virtual, dentro da qual é possível ainda hostilizar militarmente a Rússia e fingir que não há uma real ameaça à sobrevivência da Humanidade, tal como a crise climática também o já é, perante a indiferença dos mais variados Estados. A defesa da Ucrânia e os apelos a ajuda militar por parte do seu presidente não podem arrastar outros países para uma guerra total, irresponsável, imprevisível e, no seu quinhão de previsibilidade, apocalíptica.
O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, circulou a pé pelas ruas de Kiev. Poderá ter parecido um homem isolado e desolado, passando ao Mundo a impotência de quem dificilmente conseguirá gerir esta crise, caso não sente à mesa das negociações o presidente Vladimir Putin, o presidente Volodymyr Zelensky e o presidente Joe Biden. Ao referir o absurdo da guerra, expressou uma vigorosa intenção de Paz que inclui a Rússia no processo. Convém acrescentar que a contínua fabricação e distribuição de armas, cada vez mais sofisticadas, é outro absurdo, e que o território da Ucrânia pode estar a ser usado como laboratório para esse efeito. Na eventualidade de não ser obtida uma solução diplomática no mais curto espaço de tempo, este pode bem ser o último mandato de um secretário-geral da ONU.
Reconhece-se a injusta vantagem militar da Rússia em relação à Ucrânia, tratando-se de uma contingência passível de não se poder alterar. A correlação de forças desproporcionais é, precisamente, o que impede o conflito de se tornar insustentável e alargado a regiões fora do espaço circunscrito à Ucrânia.
Exige-se do Presidente da República Portuguesa sentido de Estado e consciência ética que permita optar por uma via sensata, capaz de neutralizar a exacerbação da violência à escala regional do Leste Europeu e à escala mundial. Como tal, pretende-se que o senhor Presidente da República Portuguesa interceda junto das instituições internacionais, no sentido de reavaliar e equacionar o papel de Portugal na ajuda militar à Ucrânia e a atitude instigadora da guerra por parte dos vários países que integram a NATO. Solicita-se a sua intervenção ao mais alto nível, no sentido de criar canais diplomáticos que incluam não apenas a Ucrânia, mas a Rússia e também os Estados Unidos da América, de forma a evitar que a Federação Russa se torne e sinta um Estado pária. O Presidente da República Portuguesa pode e deve aconselhar o secretário-geral das Nações Unidas a reunir-se, em Washington, com o presidente Joe Biden.
Nenhum tribunal internacional poderá resgatar as vidas perdidas, as famílias desfeitas e as multidões de deslocados. O sofrimento do povo ucraniano não se compadece com a violência brutal da Federação Russa nem com a altivez e efeito revanchista dos países membros da NATO. Manter e acirrar uma zona de conflito parece constituir-se uma insensatez categórica.
Deseja-se que esta carta possa ser tomada como um contributo cívico e construtivo, não tendencioso, imparcial e independente, guiado pelo interesse da manutenção da Paz, pelo interesse nacional e internacional, e a bem da segurança dos povos, do futuro dos nossos filhos, da memória, da imaginação e do pensamento mágico dos nossos netos, e da ideia de Humanidade. Porque se considera incomensuravelmente preferível um bem menor a um mal sem par.
(*) Em representação de um colectivo de pessoas que desejaram ser signatárias, mas que, em conjunto, decidiram manter o texto sem subscritores.
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Nota do Director:
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29/04/2022