Carta para o ano de 2022 e um olhar para o novo ano

(Foto: Roberta de Avillez)
É inverno no hemisfério Norte e escrevo-vos do comboio a caminho das férias tão esperadas, a cruzar uma das tempestades de inverno mais temidas nas últimas gerações em terras canadianas. Certamente, o ano de 2022 foi um ano intenso. Após dois anos de pandemia e de extrema reclusão, os países iniciaram a sua reabertura a passos lentos, receosos de adoecerem.
Os últimos anos apresentaram um mundo com imensa dificuldade para lidar com doenças em larga escala, com um aumento de fake news a resultar em crenças negacionistas, com inúmeras mulheres, crianças e milhões de refugiados em situação de vulnerabilidade, com idosos a enfrentarem a solidão como nunca antes experimentada e com um conservadorismo a acentuar-se na extrema direita. Algo vai mal nas relações humanas. Para onde foi o desejo de ver uma comunidade a crescer? Uma comunidade em que a educação e a ciência caminhem lado a lado, dando mais oportunidade à população.

(Créditos fotográficos: Cemile Bingol/ Getty – bbc.com)
Durante o governo de Jair Bolsonaro, o número de brasileiros a sair do Brasil foi tamanho que assinalou uma nova vaga de fuga de cérebros. Em Novembro, o governo noticiou o contigenciamento de 1,68 bilhão de reais, supostamente destinados à educação. A 7 de Novembro, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), orgão de fomento de ensino e pesquisa do governo brasileiro, noticiou a suspensão das bolsas de pesquisa por falta de verba, de acordo com o decreto 11.269. Há dez anos, as bolsas de financiamento à pesquisa não têm um aumento. Inúmeros brasileiros do corpo discente nas pós-graduações vivem à margem da pobreza, com salários que não lhes permitem cuidados de saúde, nem alimentação nem residência digna. Bolsa de pesquisa não é um auxílio, é um salário para um trabalho altamente qualificado e com dedicação exclusiva.
Observamos um país em que o distanciamento das classes sociais intensificou-se durante os últimos quatro anos de governo, levando ao aumento de pessoas em situação de rua, de miseráveis com o aumento da fome
A desvalorização do ensino institucional ascende, progressivamente, a dar espaço para a valorização do ensino neoliberal, numa sociedade baseada na social democracia. Continuamente, o corpo discente escuta comentários como “Você só estuda, não trabalha?”. Fazer pesquisa na pós-graduação é um trabalho intenso e, infelizmente, pouco apreciado no Brasil, seja no corpo discente ou no docente. Após uma intensa movimentação académica, a CAPES negociou o pagamento do mês de Dezembro aos seus respectivos bolseiros. Os corpos discente e docente conseguiram, assim, dar um respiro no último mês de 2022.

Observamos um país em que o distanciamento das classes sociais intensificou-se durante os últimos quatro anos de governo (liderado por Jair de Bolsonaro), levando ao aumento de pessoas em situação de rua, de miseráveis com o aumento da fome. De acordo com o Tesouro Nacional, em Novembro, o governo Bolsonaro apresentava uma dívida pública de R$5.78 trilhões.
Neste cenário, como valorizar a ciência e a educação, quando carreiras pops de influencers e de celebridades ganham cada vez mais admiradores? Em 2012, o Dossiê MTV constatou o desejo de ser reconhecido como um dos valores apontados pelos Millennials entrevistados na sua pesquisa. Assim como a tríade família-carreira-segurança, a indicar uma valorização das relações familiares e uma intensificação do desejo por desenvolver carreiras relevantes, num país que a questão da sensação de sentir-se seguro é continuamente posta à prova.
Vinte anos depois, tem-se uma intensificação dos valores e moral familiares conservadores, ao ignorar a diversidade presente nas relações familiares e nos papéis sociais apresentados. O desejo em tornar-se celebridade intensifica-se na Era da Comunicação e de maior distanciamento entre as classes sociais. O lado obscuro das plataformas mediáticas encontra-se nas bolhas de retro-alimentação das opiniões pessoais, nos influencers a passarem uma imagem de alto poder aquisitivo e a instigarem os desejos de consumo, assim como as frustrações.
Em vinte anos, os realities shows tomaram uma proporção enorme e passaram a significar um pulo para a tão desejada vida de celebridade, dinheiro e suposto reconhecimento. Questionamentos sobre a validade da educação tornam-se cada vez mais presentes dentro deste contexto.

Aliás, durante os últimos quatro anos, tem-se assistido ao aumento do desmatamento, das queimadas em terras indígenas, a uma ausência do cuidado com a Natureza e com a diversidade identitária presente no Brasil. Um país de extensão continental. Em Setembro, a jornalista Eliane Brum lançou o colectivo jornalístico Sumaúma, focalizado em cobrir questões ambientais e indígenas no país.
O ano também foi de imensa polarização política. As eleições de Outubro apresentaram a maior disputa presidencial já vista no país, com destaque para as fake news e para a divulgação publicitária pelos media. Campanhas políticas com compras milionárias de publicidade online, através do Google Ads, abrem precedentes para uma nova forma de se fazer política no país, direcionando as notícias falsas aos respectivos públicos e aumentando o engajamento. O ano marca, igualmente, o aniversário de 90 anos desde que o voto feminino deu início no país, a ampliar o eleitorado brasileiro, em 1932.
Durante os últimos quatro anos, tem-se assistido ao aumento do desmatamento, das queimadas em terras indígenas, a uma ausência do cuidado com a Natureza e com a diversidade identitária presente no Brasil
O ano de 2022 teve ainda a sua importância pelas comemorações centenárias como os 200 anos da Independência do Brasil e os cem anos da Semana de Arte Moderna de 1922. O Consulado Geral de Toronto, em parceria com o Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Toronto (UT), apresentou uma palestra sobre a importância e o impacto da Semana de Arte Moderna para o Brasil, concedida por Vinícius Portella Castro e organizada pela acadêmica Carolina de Sá Carvalho, da UT.

Comparada)
Escritor brasileiro e investigador independente focalizado em teoria dos media e editor da Machado Editorial, Vinícios Portella explica ao sinalAberto sobre a importância da Semana de Arte Moderna de 1922 na constituição de uma identidade brasileira nacional moderna. Portella refere que a Semana de Arte Moderna passou a ter mais importância a partir da década de 1970, quando completou 50 anos de aniversário. Com isso, a comemoração estabeleceu uma institucionalização do evento, integrando-o na educação, como o currículo escolar estabelecido pelo Ministério de Educação (MEC).
Segundo Vinícius Portella Castro, isso “foi muito importante para dar essa cimentada”. Nesse sentido, adianta: “Até então, os próprios artistas, o próprio Mário [de Andrade] fez uma conferência famosa 20 anos depois em 1942 e tinha indícios [de] que essa semana tinha caráter epocal. Por exemplo, quando inauguram a Bienal de São Paulo e fazem referência a semana de 1922. Quando inauguram o MASP [Museu de Arte Moderna de São Paulo] fazem referência a semana de 1922. Então, a cultura de São Paulo, em particular, desde cedo acolheu a Semana [de 1922] como esse evento, mas também foram essas ondas que com o tempo foram se cimentando retrospectivamente como um momento importante, mas do que na época se percebeu.”

Para Vinícius Portella, a importância da Semana de Arte Moderna de 1922 está nos eventos que decorreram dela, a partir de 1928, como a obra de Abaporu de Tarsila do Amaral, assim como pelas trocas estabelecidas entre os artistas contemporâneos. Portella esclarece sobre as cartas de Mário de Andrade trocadas com Manuel Bandeira, Oswald de Andrade e Carlos Drummond de Andrade acerca da constituição de uma língua portuguesa brasileira a abarcar a diversidade presente nos trejeitos das falas e das trocas quotidianas. Para isso, Portella alude à necessidade que Mário de Andrade teve em fazer um trabalho de desconstrução inicial da língua portuguesa, ao ponto de incomodar os literários mais velhos pela sua forma de escrita.
E Vinícius Portella prossegue: “O Mário [de Andrade] tinha, realmente, essa coisa de puxar pela mão os artistas da época dele. Os mais novos e os da sua geração para escrever como brasileiros, para falar dessa maneira mais espontânea e não imitando os modelos antigos. Falar o que a gente realmente fala, a língua brasileira. Ele até exagerava, ele admitia que exagerava. Ele escrevia de um jeito grafando várias pequenas coisas que incomodavam os mais velhos. Ele sabia que era estranho, mas ele acreditava que tinha que fazer esse trabalho de destruição inicial para que os artistas depois possam ser brasileiros sem ter que pensar sobre isso.”

O ano de 2022 foi também um marco para outros literários e pensadores brasileiros como Clarice Lispector (1920-1977). Esta escritora comemoraria o seu aniversário de 102 anos. Nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira, Clarice Lispector chegou ao Brasil como Chaya Pinkhasivna Lispector. Sua obra é marcada pelo contínuo questionamento do ser e do não pertencimento em profunda reflexão. Sua obra foi traduzida para mais de dez idiomas e permanece relevante.
Entre as inúmeras perdas associadas ao Brasil, o ano trouxe a morte da primeira literária mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras, Nélida Piñon, aos 85 anos de idade. E do maior jogador da História do Futebol, o “Rei Pelé”, aos 82 anos
O ano de 2022 foi, igualmente, o marco de 100 anos de aniversário do antropólogo Darcy Ribeiro. Apaixonado pelas questões indígenas, decidiu viver em comunidade e, com 24 anos, mudou-se para o Pantanal no Mato Grosso do Sul. Posteriormente, foi também para o Pará e para o Maranhão. Tencionava entender a vida dos povos originários. Tornou-se político e envolveu-se com a educação, tendo sido ministro da Educação, em 1962. As obras de Darcy Ribeiro debruçam-se sobre as questões de identidade do povo brasileiro na sua diversidade e continuam relevantes para os debates actuais.
Entre as inúmeras perdas associadas ao Brasil, o ano trouxe a morte da primeira literária mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras, Nélida Piñon, aos 85 anos de idade. E do maior jogador da História do Futebol, o “Rei Pelé”, aos 82 anos.
No meio das tristezas, que haja espaço para celebrar as alegrias, como a defesa de doutoramento na Universidade Federal do Paraná (UFPR) pela Yalorixá Iyaguña Alzira Maria Aparecida, em seus plenos 81 anos de idade.

Como um país perdeu-se ao ponto de esquecer o que foi a ditadura militar e até mesmo o Holocausto? A História, quando não é lembrada, torna-se fadada à repetição, ao retrocesso e aos governos de políticas extremas e de exclusão. Torna-se fadada ao radicalismo. Que 2023 seja um ano de esperança e de profunda reflexão para que os absurdos e os negacionismos não sejam repetidos. Que aprendamos com a História e recuperemos a memória.
02/01/2023