Cáucaso: uma guerra nem tão distante

 Cáucaso: uma guerra nem tão distante

Foto de Ilgar Jafarov

Passei bons anos da minha vida produtiva pesquisando sobre o Cáucaso do Sul, um pedacinho do mundo desconhecido por quase todos, inclusive por mim. É distante e exótico o suficiente para causar estranhamento e uma boa dose de indiferença, mas está mais perto de nós do que o mapa possa sugerir. Pois bem, na manhã de domingo, dia 27 de setembro último, tiros de artilharia começaram a ser disparados na linha de contato entre tropas da Armênia e do Azerbaijão. Isso por si só não é novidade, conflitos armados são frequentes entre dois países, que estão oficialmente em guerra desde que se tornaram independentes, em 1991.

Em absoluto resumo, o desaparecimento da União Soviética abriu espaço para a criação das duas novas repúblicas, mas também criou um impasse sobre qual delas controlaria Nagorno-Karabakh, uma pequena região montanhosa onde viviam uma maioria de armênios, mas estava subordinada ao governo azeri. Uma guerra se estendeu até 1994, quando um cessar-fogo pôs fim aos combates em larga escala. Os armênios foram vitoriosos e desde então controlam não apenas Nagorno-Karabakh, República de Artsakh para eles, mas outras sete províncias circundantes, que passaram a servir como cinturão de defesa. Os azeris, por sua parte, vêm buscando retomar os territórios perdidos, seja por via diplomática ou não.

Nagorno-Karabakh é um território armênio, sempre foi. É habitado por eles não há centenas, mas há milhares de anos. Foi parar sob domínio do Azerbaijão por um capricho de Stalin, que fez valer a velha tática de dividir para governar. O fato de os dois povos estarem igualmente incorporados a um estado único, a URSS, fez com que o problema tenha sido adiado por algumas décadas. Mas assim que o regime soviético começou a desmoronar, também ruiu a paz na região. Essa, portanto, era uma guerra fadada a acontecer, assim como todas a guerras mundo afora que já foram travadas porque canetas alheias desenharam fronteiras arbitrárias onde não deveriam. Dito isto, é preciso também compreender o outro lado.

Os azeris não tiverem que conviver apenas com a perda de Nagorno-Karabakh, mas também perderam acesso a boa parte de seu território original. A isso, soma-se milhares de famílias expulsas de seus lares e que passaram a se espalhar pelo restante do Azerbaijão, sobretudo em acampamentos improvisados nas cercanias da capital, Baku. Hoje, esses assentamentos, que deveriam ser provisórios, transformaram-se em bolsões de miséria permanentes e que abrigam não apenas a primeira onda de refugiados, mas também seus filhos e netos.

Mas se atritos entre armênios e azeris são corriqueiros, há algo de novo nesse conflito. Aos tiros de artilharia da manhã de domingo, seguiram-se bombardeios por drones, uso aviões de combate e investidas terrestres em massa. Há também o apoio explícito de um terceiro país, a Turquia, que anunciou reiteradamente amplo suporte, político e militar, às tropas azeris. No momento que escrevo já são dez dias de combate, centenas de mortes.

A capital de Nagorno-Karabakh, Stepanakert, está sendo initerruptamente bombardeada e refugiados já são vistos abandonando suas casas. Já é, por muito, o pior cenário desde o cessar-fogo de 1994. Já é uma guerra de facto.

Há também a guerra informacional. A desinformação provavelmente é tão velha quanto a informação em si, mas nunca na história essa prática foi tão eficaz. Fala-se em caças turcos invadindo o espaço aéreo da Armênia, jihadistas sírios lutando pelo Azerbaijão e guerrilheiros curdos reforçando as fileiras armênias. Não há como depurar, à distância, o que é verdade do que é falso. Existem, no entanto, indícios fortes de que mercenários sírios foram contratados pela Turquia para atuar na linha de frente. Este é mais um fato novo e seriamente preocupante em uma região marcada por atritos de natureza religiosa.

Foto de Stepanekert.

Por fim, a mais importante novidade. Estamos vivendo um período de transição da governança global. Passamos a galope de um mundo marcado pela hegemonia estadunidense pós-Guerra Fria para um no qual outros polos de poder, sejam globais ou regionais, ganham proeminência e passam a disputar seus espaços. Esta guerra estoura quando há pouca gente de olho e os que estão pouco ou nada podem fazer. O multilateralismo dos últimos trinta anos, ainda que tutelado, dá cada vez mais espaço para acordos bilaterais e ações unilaterais. São notadamente instáveis esses períodos em que o bastão do poder global começa a trocar de mãos. A retomada da guerra no Cáucaso é um sintoma dessa nova ordem, mas certamente não será o único.

Prever o futuro é uma arte de videntes e economistas, e a ambos é dada carta branca para errar. Mas dadas as circunstâncias, seria improvável que um desses três cenários não se desenrole. O primeiro, e mais provável, é que se esgote mutualmente a capacidade de combate de modo que seja gerado um novo impasse, talvez um em que os dois lados possam anunciar algum tipo de vitória para seu público interno. O segundo passa pelo Azerbaijão fazer valer a sua superioridade econômica e militar e ser bem sucedido em retomar os territórios perdidos no campo de batalha. Mas esse segundo cenário só poderá ser verdadeiro se, e somente se, os conflitos continuarem contidos às províncias azeris ocupadas, o que a esse ponto parece pouco crível. Dessa forma teríamos a terceira hipótese, a guerra foge ao controle e chega ao território internacionalmente reconhecido como armênio. Neste último caso, a Rússia, que até então procura não escolher lados, seria obrigada a intervir em socorro à Armênia, com quem possui acordo militar de defesa recíproca. A Turquia então seria acionada e com isso a possibilidade de um desastre regional.

Apesar dos erros do passado e da inegável complexidade da questão, esta não é uma guerra sem solução. Há formas de se resolver o impasse e de se criar mecanismos para uma convivência pacífica duradoura. Mas para isso é necessário fazer concessões. E é justamente nesse ponto que se encontra o combustível para a guerra, qualquer guerra. Há três décadas que as elites políticas dos dois lados do front se alimentam do discurso nacionalista raso e da retórica belicista. O permanente estado de conflito é conveniente para os que estão no poder e não creio que ninguém esteja realmente preparado para lidar com a paz. Mas para passar da tensão fabricada para a destruição descontrolada é preciso apenas uma faísca. Talvez não precise mais.

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Rodrigo Monteiro Carvalho

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