Celebrar Urbano Tavares Rodrigues com textos (quase) esquecidos
Há 75 anos, em 1948, Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013) escreveu sobre “As Festas do Apóstolo”. Tinha 25 anos de idade e peregrinou por Santiago de Compostela, ao serviço do Diário de Notícias (DN). As reportagens que então assinou para o DN foram depois publicadas em livro, que Urbano colocou na estante da memória. Agora, o fotógrafo Sérgio Jacques e o escritor Carlos Quiroga resgatam-no do seu longo cativeiro com a publicação de “Santiago de Compostela”. Reler o que então escreveu é uma boa forma de celebrar os 100 anos do seu nascimento – em 6 de Dezembro de 1923 – de um dos nomes maiores da nossa Literatura.
Em 1948, Espanha e Portugal estavam sob o jugo de dois tiranos: Francisco Franco (1892-1975) e António Oliveira Salazar (1889-1970). Apesar da sua juventude, Urbano Tavares Rodrigues aportou a Santiago de Compostela consciente do terreno armadilhado que pisava. Provam-no as reportagens que assinou no DN, tal foi a genialidade com que retratou “As peregrinações! Todo o passado de Santiago! Toda a Idade Média ‘essa época enorme e delicada’… As peregrinações! Cheias de fé e padecimentos, de humilhações, de caridade… e de violências também, de roubos, de crimes, até nas igrejas… Que maravilhosa sugestão a das peregrinações medievais a Santiago de Compostela!…”
O livro que resultou das reportagens de Urbano Tavares Rodrigues tem 50 páginas e um título enganador: “Santiago de Compostela (Quadros e Sugestões da Galiza)”, com edição da Empresa Nacional de Publicidade, em 1949. Assim titulado, o livrinho pode ser visto como um roteiro – mais um! – sobre a actual capital da Região Autónoma da Galiza. Puro engano. A prosa de que é recheado dá-nos conta da miséria que povoa a cidade, bem como da relação cúmplice entre o poder despótico de Franco e a Igreja Católica. Atente-se no que diz Carlos Quiroga, escritor e filólogo galego, a quem Sérgio Jacques convidou para reflectir sobre o que Urbano escreveu: “[…] E, no entanto, não conheço nenhum artefacto literário tão radioso que fale deles nos alicerces de Compostela, circunstanciada em 1948 pelo acaso diarístico do momento: uma Compostela secularmente gloriosa e cosmopolita hoje, mas levantada do chão à glória pela religião e o fascismo, sobre violência e mortos…” Lembro que a Guerra Civil se desenrolou entre 1936 e 1939.
O Ano Jubilar Compostelano1 de 1948 contou com a presença de Francisco Franco, que o denominou “Primeiro Ano Santo Triunfal”. Um ardil propagandístico do ditador, que Urbano Tavares Rodrigues descreve, assim, na página 18 do seu livro: “A entrada de Franco a toque de clarim, acompanhado de esposa e filha, com repique de todos os sinos da cidade e delírios de palmas, a entrada divinizada com botafumeiro e palavras de responsório, ‘El Señor lo ha elegido y lo ha colocado em alto sobre los reyes de la tierra’ […]”
Foi a leitura de “Santiago de Compostela (Quadros e Sugestões da Galiza)” que levou Sérgio Jacques a produzir e a editar o livro apresentado na última sexta-feira (13 de Outubro de 2023), na livraria da Unicepe – Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto. Um projecto que “só foi possível graças à cumplicidade da Isabel Fraga, da Sofia Fraga2 e da Catarina Almeida”, como sublinhou o autor. Sobre as fotografias do livro, Carlos Quiroga refere que Sérgio Jacques “foi, na cidade cosmopolita de agora, à procura de um tempo atapetado em semiobscuridades, aquele por onde passou o espelho do homenageado, 75 anos antes.”
O livro de Sérgio Jacques e a releitura da obra de Urbano Tavares Rodrigues são (mais) dois bons motivos para celebrarmos os 100 anos do nascimento deste “senhor da Literatura”, que teve vida longa, singular e solidária. Com grandes causas e pequenas coisas. Compete-nos fazer com que “perdure” através dos livros que escreveu para “não morrer completamente”, como confessadamente desejou, em entrevista ao Jornal de Letras, Artes e Ideias (JL), no ano de 1993. Tavares Rodrigues orgulhava-se de, “entre ventos e tempestades, interrogações, incertezas, angústias” se ter mantido sempre fiel ao mais profundo de si próprio. Temos de agradecer-lhe a sua obra, a sua coragem e o seu exemplo.
Notas:
1 – Para Carlos Quiroga, o Ano Jubilar Compostelano de 1948 representou “a restauração publicitária de um ditador que o consolidou e utilizou como eficiente instrumento de subjugação”. O escritor e académico galego também não comunga da narrativa sobre “a descoberta de um sepulcro que um antigo bispo aponta de imediato como sendo de um apóstolo morto na Palestina do século I, supostamente aparecido, primeiro, em Jerusalém e, vários séculos depois, noutros muitos lugares da Europa”. Quiroga considera ainda que “a candidatura de Compostela acabou por ganhar vantagem depois de 1878, com caricatos fundamentos cientificos, sobre os achados noutras partes”.
2 – Isabel Fraga e Sofia Fraga são, respectivamente, filha e neta de Urbano Tavares Rodrigues. A escritora Isabel Fraga é filha da também escritora Maria Judite de Carvalho, primeira esposa de Urbano. Em 2006, nasceu o segundo filho: António Urbano, fruto do seu casamento com a psiquiatra Ana Maria Santos.
.
19/10/2023