Chamamento à ordem
Viver diariamente com o absurdo nos tira a possibilidade de enxergar o que está escancarado. Aceitar, durante mais de 100 anos, considerando o fim da escravatura, a incrível desigualdade social faz do Brasil uma nação deslocada diante do que se convencionou chamar de nova ordem mundial.
Ouvi, durante os meus dois anos morando no Porto, a mesma frase, quase um verso, dita de diversos modos por acadêmicos, jornalistas, amigos do Ipa Café e de um deputado: “O Brasil é uma potência mundial e não se porta como tal”.
Mais do que nunca, o irrazoável é aqui e agora. Haja negacionismo para dar e vender, brigas com adversários inexistentes, fake news a mancheias, mania de perseguição, bravatas, e ameaças às instituições democráticas, erguidas quase que na marra ao longo dos últimos 33 anos.
Aí, na última quarta-feira, Lula reaparece. Forte, com direitos políticos recuperados, em discurso vigoroso, de estadista, para o mundo. Representantes de países já sinalizam esperançosos com o que pode vir. Antes mesmo de recuperar a condição política, o ex-presidente intervém e negocia vacinas para o Brasil.
Mas a fala tem endereço. O povo pobre do Brasil sabe que Lula continua a representar uma novidade, que teima em não envelhecer. Ele ataca de frente, de forma nua e crua, sem rodeios, o nosso principal problema: a fome.
É necessário porque chama o País para a realidade. Nada mais importa. Deputado federal preso, filho do presidente xingando, o outro de casa nova. Nada. O foco tem que ser outro.
No Nordeste, a região mais estigmatizada pela pobreza, não à toa formou-se o cinturão de governadores do PT. Chamado de Resistência, pode liderar uma nova etapa do jogo que esquentou.
Forças do centro buscam se aproximar da nova velha força. Uns já anunciam a retirada da disputa. O presidente, por sua vez, surgiu de máscara e o ministro da saúde passou a elogiar os meios de comunicação social. O general da ativa tem o cargo sob risco, não por conta dos números surreais, prestes a se tornarem aceitáveis na nossa distopia, mas por representar a derrota do Governo após a entrevista do dia 10.
O ex-presidente parece ser o dono do jogo. Pode ser o coringa. E mais: a possível suspeição de Moro, à qual Lula bate forte e diz não recuar, também deve trazer benefícios para o petista. Mesmo que a decisão signifique no imaginário coletivo uma derrota na luta contra a corrupção, outro problema a ser resolvido na nossa realidade paralela.