Chuva em Auschwitz
No mês de maio, fui – no âmbito de um projeto de parceria entre a Comissão Europeia, o Alto Comissariado para as Migrações e outras organizações e associações portuguesas e internacionais – à Polónia visitar o campo de concentração nazi de Auschwitz-Birkenau. Neste momento, o meu objetivo é falar sobre a visita e aquilo que a mesma me ofereceu.
Escrevo hoje, três meses depois, o meu relato dessa visita cultural, pois não consegui, até agora, transpor em forma de palavras todas as sensações vividas e, provavelmente, ainda não consiga. Mas isso não significa que não possa tentar.
Os dias de 15 a 18 de maio de 2023 foram chuvosos e de trovoada na Polónia, o que contribuiu ainda mais para o clima mórbido da visita. No dia 16, entrámos, eu e um grupo de jovens portugueses, polacos e italianos, num autocarro que nos levou do hotel até ao campo de concentração. Assim que cheguei, senti o clima pesado e comecei, como é meu costume quando estou desconfortável, a fazer piadas sarcásticas e isso durou até dar de caras com o famoso portão de entrada de Auschwitz. Aí, só se ouvia a chuva e o guia.
Caminhei entre os edifícios. Entrei no museu dedicado às vítimas de etnia cigana. Visitei os museus dedicados aos Judeus. Senti, vi e “cheirei” as câmaras de gás e o crematório. Prestei homenagem às vítimas no memorial que se encontra numa clareira perto de uma floresta verde em Birkenau. E, no museu em memória das crianças, chorei.
Ainda neste momento, afirmo que o meu choro no museu das crianças não foi consciente. Estava, simplesmente, a ver uma roupinha de bebé que se encontrava numa cápsula de vidro e, de repente, comecei a chorar convulsivamente sem saber porquê. Bem, sinceramente, sei o porquê de ter chorado. Aquela imagem doeu-me no mais profundo do meu ser, naquilo a que os antigos chamavam de âmago. Quando me dei conta, tinha um professor da Universidade de Bolonha a abraçar-me, enquanto também ele deixava escorrer lágrimas pela sua face.
Ali, surpreendi-me. Longe daquilo que estava à espera, não me senti mais cigano por causa das vítimas pertencentes ao meu povo nem com raiva pelo que ali sucedeu. Senti-me, na verdade, humano. De facto, senti e chorei as vítimas roma ou romani, judias, polacas, etc., com a mesma intensidade e experienciei horror, consternação e uma necessidade de evitar, com todas as minhas forças, que aquilo se volte a repetir, por muito insignificante e irrelevante que eu seja. Indo mais fundo, essa sensação ou impressão não foi bem a de que apenas eu tinha de fazer algo para que aqueles horrores não voltem a acontecer, mas a de que nós, todos,temos de evitar aquelas atrocidades.
Naquele lugar, senti-me humano, triste e amedrontado. Vislumbrei o inferno de Dante, compreendi o vazio de Santo Agostinho, aprendi empiricamente a banalidade do mal de Hannah Arendt. Vi-me num espelho. Vi o monstro que o Homem pode ser e percebi a célebre frase de Nietzsche sobre o abismo: “Quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.”
Nesse tempo de viagem à Polónia, tanto em Auschwitz como em Cracóvia, senti-me terrivelmente sozinho, apesar de estar muito bem acompanhado. Tinha o cérebro confuso e dormente. Principalmente, por causa da falta de sono, devido aos pesadelos que me assombravam no leito, mesmo depois de ter voltado a Portugal. Senti-me, de facto, uma ilha, sem compreender o ser humano meu semelhante.
Foram os humanos que pintaram a Capela Sistina, que construíram o Mosteiro dos Jerónimos, que inventaram a penicilina, que escreveram o romance histórico “Guerra e Paz”, “Dom Quixote de la Mancha” (“El ingenioso hidalgo Don Quixote de La Mancha”) e a tragédia “Macbeth”. Mas também foram os humanos que construíram e perpetuaram Auschwitz, Kengir (gulague ou sistema de campos de trabalhos forçados que se tornou um símbolo da repressão da ditadura de José Estaline), o genocídio arménio, a perseguição aos Uigures… Que dualidade tão pérfida está em mim, em nós! E só nós podemos fazer com que apenas os cenários positivos aconteçam, embora seja, historicamente, difícil.
Esta viagem mudou-me para sempre, pois criou, dentro de mim, o sentimento de que aqueles horrores são históricos, cíclicos, atuais e humanos. Ou seja, é bem possível – cada vez mais provável – que aconteçam hoje, no nosso paradisíaco mundo ocidental. No entanto, não devo deixar de fazer os possíveis para o evitar, também através da fala e da escrita. Tornei-me, portanto, ao jeito de Albert Camus, num pessimista revoltado, admitindo que verei sempre o copo meio vazio. Porém, tentarei sempre pensar em formas de o encher.
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21/08/2023