“Cidades de Bronze”
Assisto a uma das representações deste espetáculo na Praça da República do Porto, aproveitando um convite do autor, Jorge Palinhos, colega de trabalho durante muitos anos na Escola Superior Artística do Porto (ESAP), agora director do Curso Superior de Teatro da ESAP.
“Cidades de Bronze” é a nova criação do projecto artístico Visões Úteis para o espaço público da cidade do Porto, que estreou no dia 23 de Maio e esteve em cena até 28 de Maio, na Praça da República, dirigido e escrito por Carlos Costa e por Jorge Palinhos, os quais repetem um modelo de colaboração já experimentado em 2022, com “O Grande Museu da Consciência de Elon Musk, uma Peça para Realidade Mista”.
Durante muitos anos, morei no Porto, na Travessa de Cedofeita, e pela proximidade, a Praça da República foi e será um dos locais de referência, para mim, nesta cidade.
Através dos anos, vi como foi mudando de um lugar aprazível, onde “moravam” estátuas de que saliento o busto de Baco e O Rapto de Ganimedes1, hoje fora do seu local (já farei referência a isso) para se transformar num local habitado por pessoas sem-abrigo. Espaço que vieram ocupar, deixado por um lendário jovem negro (pelo que me contaram, era um oficial americano) que, em completo abandono, fazia da praça o seu lugar de abrigo, vestido com uma longa gabardina preta, protegido por plásticos e restos de alcatifa que o protegiam. O jornalista e escritor Manuel António Pina escreveu uma crónica sobre ele no Jornal de Notícias, a qual guardei e gostava de citar, mas, desafortunadamente, não sei onde está. Ele morreu na rua, provavelmente acompanhado do resto de um vinho barato, numa embalagem cartonada ou numa garrafa de vidro opaco.
As praças são lugares públicos. Antigamente, foram as ágoras gregas ou as praças romanas, lugares de ensino para alguns e de discussão política para outros. Mas foram, sempre, locais para as estátuas. Outrora, de divindades. Actualmente, para figuras públicas ou para a concretização de ideias e de símbolos, como a última estátua inaugurada nesse local: República.
O espetáculo é a possibilidade de viver de uma forma diferente a cidade e o local específico da Praça da República, onde ainda aí está o Baco (anteriormente, Dioniso para os Gregos), escultura esplendorosa pelo rosto inebriante retratado. O meu amigo e escritor José Viale Moutinho tem uma bela réplica desta escultura.
Também perto está o Padre Américo, estátua transformada num pequeno local de culto, no qual não faltam as velas, os círios ou ex-votos escorrendo a sua matéria líquida (cera derretida) e enegrecendo o bronze…
Em tempos, houve mesmo à entrada do quartel uma estátua equestre de D. Afonso Henriques, de dimensão pequena, contrastante com a personagem original.
Inicialmente, como lemos na página electrónica da publicação Equitação Magazine, “a estátua equestre de D. Afonso Henriques estava destinada para o jardim próximo do Museu Militar, mas foi colocada junto do Quartel-General do Porto, sediado na Praça da República, no passeio e defendida pela sentinela de serviço”.
Durante o espectáculo, duas actrizes levam-nos a visitar o espaço em referência, conduzido pelo mundo das estátuas. Todas as épocas tiveram a sua estatuária e todas as épocas derrubaram estátuas, substituindo-as por outras, reutilizando o velho metal para fabricar sinos ou ferramentas de trabalho ou de guerra…
Como explicam os responsáveis do projecto artístico Visões Úteis, a propósito desta realização cultural, a “intervenção pretende fomentar o pensamento crítico sobre as estátuas, nos seus aspectos culturais, históricos, simbólicos e estéticos, mas também sobre a relação afectiva e cognitiva que os espectadores estabelecem com elas, entre a familiaridade, a indiferença e o desconhecimento”.
Nas palavras do grupo Visões Úteis e dos seus autores, “algo anda a assombrar as ruas do Porto. Fantasmas, talvez, mas feitos de pedra”. Prosseguindo: “Escondidos em recantos de praças, no meio de ruas e avenidas, há rostos em bronze que nos observam e nos interpelam. São as estátuas que geração após geração vão povoando a cidade, na ansiedade de registar no tecido frágil do tempo os homens, as mulheres e as ideias que se acredita que poderão fixar eternamente o passado e o futuro do que é ser humano.”
Dizem ainda os seus mentores que “Cidades de Bronze” é, ao mesmo tempo, um espectáculo e uma “performance”, “uma gala e uma escavação arqueológica, que procura desenterrar e interrogar as estátuas que há e que houve na cidade, escavando os sentidos e ideias que cada um destes seres frágeis e eternos trazem para a sociedade de hoje e de amanhã”.
Jorge Palinhos é um dramaturgo activo e responsável por uma obra dramatúrgica de referência. Relativamente a este espectáculo, recordei com ele, numa breve mensagem, que “Cidades de Bronze” e o seu texto se encontram aparentados com um outro espectáculo que – tendo acedido a um meu convite – ele escreveu para os alunos da licenciatura em Teatro da Escola Superior Artística do Porto. No encerramento do ano lectivo de 2014-15, encenei, como exercício dos finalistas da licenciatura em Teatro da ESAP, um espectáculo constituído por dois momentos, separados estrategicamente por um intervalo de quinze minutos. A primeira parte – “Inéditos” – arrancava com “Didascália”, uma leitura de textos escritos pelos alunos, no contexto do Atelier de Drama e Escrita Teatral, orientado pela dramaturga Marta Freitas. A segunda parte serviu para a representação de “Portugal Tourism”, um texto de Jorge Palinhos que transformava o Mosteiro de São Bento da Vitória num palco em que os espectadores se tornavam meros turistas, viajando pelo espaço e pelo tempo num lugar singular da cidade do Porto, buscando nele as marcas que representam a cidade e o país em que este monumento se inscreve.
À semelhança desta realização artística “Cidades de Bronze”, Palinhos convidava o público visitante a percorrer um espaço, o maior espaço religioso da cidade do Porto, o Mosteiro de São Bento da Vitória, através da sua história e dos seus antigos ocupantes. Foi um belo espectáculo protagonizado in loco pelos alunos e pelos visitantes, um público itinerante que, a exemplo dos velhos mistérios medievais, percorria os palcos móveis num acto de peregrinação, como o fariam aqueles que algum dia se cruzaram com o que está representado nas seguintes e belas gravuras.
Observando a informação do grupo Visões Únicas, esclareço que para a concretização da iniciativa “Cidades de Bronze”, e numa colaboração próxima com a Câmara Municipal do Porto, se pretendeu envolver uma estátua (a referida “República”, de Bruno Marques, no Jardim de Teófilo Braga, à Praça da República) num dispositivo cénico, dentro do qual decorreram actividades que promoveram o confronto do público com o passado, incentivando a projecção do futuro.
Essa intervenção artística pretendeu fomentar o pensamento crítico sobre as estátuas, nos seus aspectos culturais, históricos, simbólicos e estéticos, mas também sobre a relação afectiva e cognitiva que os espectadores puderam estabelecer com elas, entre a familiaridade, a indiferença e o desconhecimento.
A respectiva ficha técnica e artística do espectáculo diz-nos que a direcção e o texto são de Carlos Costa e de Jorge Palinhos, atribuindo a cenografia, os adereços e os figurinos a Inês de Carvalho. Já a direcção musical e as canções (letra e música) são da responsabilidade de João Martins, enquanto a banda sonora original e a música ao vivo “ohmalone” ficaram por conta de João Martins, de João Tiago Fernandes e de José Miguel Pinto. Na interpretação estiveram Matilde Cancelliere (Galateia), Sofia Santos Silva (Kore) e Marta Lima (escultora e representante da Agência do Futuro).
.
Notas:
1 – O busto de Baco é da autoria de António Teixeira Lopes (pai), produzido em 1916. Estamos perante uma alegoria pagã, representando o deus romano do vinho.
O Rapto de Ganimedes, príncipe de Tróia que Zeus, transformado em águia, raptou e converteu no escanção dos deuses no Olimpo.
Como se descreve no respectivo documento/processo (1898-1898), no Arquivo Municipal do Porto: “A escultura de António Fernandes de Sá (1854-1959) foi executada em Paris em 1898. Fundida em Lisboa em 1914, foi alvo de uma menção honrosa no Salon de Paris em 1898 e no Salão da Sociedade Nacional de Belas Artes em 1902. Chegou inclusive a obter uma medalha de bronze na Exposição Universal de 1900. Representante do ecletismo do final do século XVIII, António Fernandes de Sá teve uma obra de valia irregular. O Rapto de Ganimedes conta-se entre os seus melhores trabalhos em conjunto com A Vaga (gesso) que se encontra no Museu Nacional Soares dos Reis. Actualmente, encontra-se no Jardim da Cordoaria do Porto.”
.
15/06/2023