Como é possível?

 Como é possível?

Secretário-geral da ONU, António Guterres. (© ONU/Jean-Marc Ferré)

Começo por esclarecer que sempre fui, e sou, muito prudente na análise do conflito israelo-palestiniano e, sobretudo, quando se alastra ao mundo árabe. De ambos os lados, há convicções arreigadas e um histórico de agressões mútuas e de desentendimentos que não começam em 1948. Não é possível olhá-lo com uma racionalidade simplista e politicamente redutora a partir da nossa civilização ocidental.

Tive a percepção exacta disso quando visitei Israel, em 1990. Por isso, dizer que “não vem do vácuo”1 o inominável e repugnante acto assassino do Hamas, em 7 de Outubro, é meramente constatar um facto histórico e, se é tomar partido, é mesmo pela defesa dos Judeus, que não são todos sionistas radicais.

António Guterres (© ONU / Eskinder Debebe)

Sei, inclusive, que é verdade que o Hamas tem aprisionado os civis, usando-os como escudos. Mas essa seria mais uma razão para não os atacar indiscriminadamente. Imaginem o absurdo que seria os Norte-americanos, Ingleses ou Russos optarem por bombardear os execráveis campos de concentração nazis em Auschwitz-Birkenau, em Dachau ou onde fosse, em nome de que estavam lá guardas nazis e sádicos! Ou cortarem-lhes a água potável e a energia! Isso faria dos Aliados uns monstros difíceis de distinguir do próprio nazismo.

Crianças palestinianas num ponto de distribuição de água na Faixa de Gaza, durante a guerra entre Israel e o Hamas. (Créditos fotográficos: Mohammed Abed / AFP – oglobo.globo.com)

Ora, esse suposto “pecado” de que foi acusado Guterres, ao fazer uma formulação completamente inofensiva, como essa, só pode ser interpretada à luz de um sentimento de culpa de quem vê logo nisso um ataque. Em psicologia, chama-se “mania da perseguição”; em política, nem sei como lhe chamar: extremismo, radicalismo, paranóia política? Ou prepotência e arrogância? Desejos imperialistas ou racistas? Ou também pode ser traduzida como autodefesa premeditada, à Salazar, no célebre dito “quem não é por nós é contra nós”2.

Antes da sua eleição como secretário-geral da ONU, António Guterres
serviu como Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados,
de Junho de 2005 a Dezembro de 2015.  (© ONU / Jean-Marc Ferré)

Mais disparatado se torna isto tudo, quando Guterres afirmara e reafirma, antes e depois dessa frase, na condenação inequívoca do que disse explicitamente ser um acto terrorista (o 7 de Outubro), classificando-o como abominável. Há, até aqui, alguma crítica minimamente lúcida que se possa fazer? Quando muito, poderia vir do próprio Hamas, a de querer ser tratado como um interlocutor político, mas que sabemos o que é: efectivamente e sem margem para dúvidas, um grupo terrorista e que perpetrou um crime hediondo nesse dia, de que, só muito mais para a frente, saberemos muito do que nos parece inexplicável. Mas, voltando a Guterres, só depois disso ficar meridianamente afirmado, é que vem condenar a desproporcionalidade e a cegueira de matar milhares de civis por parte da parte ofendida (Israel).  Antes de ser uma condenação sequer, é o mais elementar dever de um secretário-geral de uma organização que não deve tomar partido, é uma afirmação genuína de um homem, que além de humanista, é um cristão convicto. E que é a voz do conjunto e não de partes, muito menos quando em ódio.

Porém, a reacção desmedida, grave e grotesca (até nos trejeitos faciais) do embaixador de Israel na Organização das Nações Unidas (ONU), com cobertura imediata do governo que representa, mostra à saciedade que muito mal vão os espíritos de quem, não tendo coração, tem o atrevimento inaudito de chamar terrorista a uma autoridade moral, que ele, pelos vistos não sabe o que possa ser, numa demonstração evidente de que não só não tem perfil para embaixador e de que não representa, nem sabe defender os verdadeiros interesses dos Judeus e do Estado de Israel.

(Créditos fotográficos: Raimond Klavins – Unsplash)

Dito isto e repetindo que o conflito não tem resolução fácil, mas que as resoluções da ONU são para TODOS respeitarem, acho, como português e como cidadão do Mundo, uma indignidade o silêncio ou o mero balbuciar dos que não se reveem na gritaria histérica desse embaixador, que raia a loucura do despropósito e de falta da mais elementar moderação diplomática. Mas mais me indigna e é-me incompreensível, mesmo sabendo que Biden manda mais em Portugal do que o primeiro-ministro, que o nosso governo não tenha, no mínimo, tido a actuação devida, diplomática, de chamar ao Ministério dos Negócios Estrangeiros Português o embaixador de Israel em Portugal para lhe transmitir o desagrado das palavras vis, falsas e tresloucadas do seu homónimo na ONU.

E atenção: eu não admito, seja a quem for, que me chame anti-semita. Não embarcarei em armadilhas que a revolta, a indignação e o nojo pelo que tem sido feito pelo estado de Israel sobre Gaza, principalmente, signifique o mínimo ataque aos Judeus, povo que admiro em muitas das suas qualidades. Antes, pelo contrário, quem objectivamente desperta o anti-semitismo é o actual bárbaro governo de Israel.  Aliás, a minha admiração cresce quando, em situação tão delicada, há quem, judeu, se assuma no movimento “NOT IN OUR NAME”. Mas eu, português, tenho de dizer bem alto às nossas instituições políticas que tenham a coragem responsável de não varrer o lixo para debaixo do tapete e de defender um dos portugueses mais ilustres, pela sua acção na ONU, de nome António Guterres: “YES, IN OUR NAME”. Quando não seremos cúmplices da chacina de palestinianos e mesmo, em consequência, de novas chacinas de judeus e de uma situação que de regional pode passar a uma guerra mundial multipolar, que, se não acabar sem vencedores nem vencidos, nas primeiras 48 ou 72 horas, por via da tentação megalómana do recurso às armas nucleares, vai ser muito difícil de negociar – porque haver um vencedor não há, porque nem há um confronto entre dois pólos, mas antes um confuso eclodir de conflitos latentes a estourar ou a ampliar-se: Rússia versus Ucrânia, Turquia versus Chipre, China versus Formosa, Coreia do Norte versus Coreia do Sul, Estados Unidos da América versus Irão, Indonésia versus Israel, Índia versus Paquistão… E uma “legitimação” de genocídios de turcos sobre curdos, de supremacistas sobre negros, de sérvios sobre croatas e vice-versa, de neonazis sobre judeus e demais semitas… E sabe só Deus o que mais sai desta Caixa de Pandora! Será uma Torre de Babel de bombas, de mortos, de intolerância.

Automóvel com crianças no meio dos destroços na Faixa de Gaza. (Créditos fotográficos: Said Khatib / AFP – oglobo.globo.com)

Se ninguém trava os ventos com a mão, fechar a janela é o mínimo para impedir que o vento da loucura varra a nossa casa. Nem que fosse só por isso, numa demonstração serena, mas firme e honrada, que o embaixador de Israel já devia ter sido chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal. É mesmo o mínimo.

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Notas da Redacção:

1 – Durante o Conselho de Segurança da ONU, na terça-feira (24 de Outubro de 2023), o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, disse que os ataques do Hamas “não vêm do nada”. 

2 – A dicotomia de “quem não é por nós é contra nós”, que constitui um fundamento autoritário do Estado Novo, de António Oliveira Salazar, é similar ao que lemos na Bíblia, a respeito da “calúnia dos fariseus” (Lc 11, 23): “Quem não está Comigo está contra Mim, e quem não junta Comigo, dispersa.”

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30/10/2023

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Jorge Castro Guedes

Com a actividade profissional essencialmente centrada no teatro, ao longo de mais de 50 anos – tendo dirigido mais de mil intérpretes em mais de cem encenações –, repartiu a sua intervenção, profissional e social, por outros mundos: da publicidade à escrita de artigos de opinião, curioso do Ser(-se) Humano com a capacidade de se espantar como em criança. Se, outrora, se deixou tentar pela miragem de indicar caminhos, na maturidade, que só se conquista em idade avançada, o seu desejo restringe-se a partilhar espírito, coração e palavras. Pessimista por cepticismo, cínico interior em relação às suas convicções, mesmo assim, esforça-se por acreditar que a Humanidade sobreviverá enquanto razão de encontro fraterno e bom. Mesmo que possa verificar que as distopias vencem as utopias, recusa-se a deixar que o matem por dentro e que o calem para fora; mesmo que dela só fique o imaginário. Os heróis que viu em menino, por mais longe que esteja desses ideais e ilusões que, noutras partes, se transformaram em pesadelos, impõem-lhe um dever ético, a que chama “serviços mínimos”. Nasceu no Porto em 1954, tem vivido espalhado pelo Mundo: umas vezes “residencialmente”, outras “em viagem”. Tem convicções arreigadas, mas não é dogmático. Porém, se tiver de escolher, no plano das ideias, recusa mais depressa os “pragma” de justificação para a amoralidade do egoísmo e da indiferença do que os “dogma” de bússola ética.

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