Como surgiram os talheres cujo uso se generalizou
O vocábulo “talher” – de origem controversa, talvez da mistura do Francês antigo “tailloir”, pronunciado mais ou menos como /tayoér/, depois “tailler”, tábua ou prato onde se cortava a carne, com o Italiano “tagliere” – designava tanto o prato como um ramo duro, às vezes em forma de forquilha, para destrinchar a carne, que deu “forchetta”, garfo em italiano, do mesmo étimo de “forca”, do Latim “furca, furcae”, “pau bifurcado que, em tamanho grande, servia de cadafalso, local de execução de penas de morte”.
A raiz remota é o verbo “taliare”, do Latim vulgar tardio, que significa “cortar”, mas “talher” passou a designar o conjunto de utensílios para servir ou comer os alimentos. Como os instrumentos do faqueiro servem para isso, foi usado para denominar o conjunto deles. E o nome do talharim vem daí também, pois a massa achatada era enrolada e cortada em tiras finas.
Na Idade Média, designava tanto uma espécie de prato quadrado ou redondo, de madeira ou metal, sobre o qual se cortavam as carnes que eram servidas na mesa, quanto uma faca longa e afiada, usada para este fim (a “trinchante” de hoje). No dicionário de Morais (1813), aparece “talher” para designar o conjunto de frascos que contêm vinagre, azeite, sal e pimenta (o atual galheteiro), mas, no final do verbete, há um acréscimo que regista o sentido atual: “Alguns chamam hoje de talher a faca, o garfo e a colher que se põe na mesa para cada pessoa.”
Desde há muito tempo, os talheres são utensílios para manipular e facilitar o ato de se alimentar, de modo que seja saboreada a comida. São considerados talheres as colheres, os garfos e as facas, bem como os pauzinhos orientais (em Japonês, hashi). Variam de design, segundo o propósito e a utilidade, como comer peixe, carne, sobremesa, tomar sopa, mexer o café, o chá ou o leite, etc.
O conjunto completo de talheres da mesma marca e do mesmo material, que inclui facas, colheres, garfos e outros utensílios para servir comida, constitui o faqueiro, por via da faca, o instrumento mais antigo que passou a integrar o talher. E, muitas vezes, talher designa a caixa ou o estojo onde se guardam os talheres de mesa.
Até ao século XI, quase todos comiam com as mãos. Os mais polidos usavam apenas três dedos para levar o alimento à boca. Nesse século, Domenico Salvo, membro da corte de Veneza, casou com a princesa Teodora, de Bizâncio, que levava no enxoval um objeto pontudo, com dois dentes, para espetar os alimentos. Uma heresia, pois o alimento, fornecido por Deus, era sagrado e tinha de ser comido com as mãos. Todavia, pouco a pouco, membros da corte e do clero foram adotando o talher. Mas o hábito demorou a pegar entre a população. O espeto ganharia mais dentes e só passaria a ser popular no século XIX.
Foi só no século XVIII que se formou o talher completo, juntando faca, colher e garfo. Eram considerados objetos de uso pessoal. Cada convidado trazia o seu próprio estojo, com talheres simples ou trabalhados, dependendo do bolso de cada um. Isso acontecia em todos os lugares, exceto na China, que desde 1200 a.C. usava uns pauzinhos – segundo o livro Alimentação na Cultura Chinesa, de Kwang-chih Chang, diretor do departamento de Antropologia da Universidade de Harvard. De facto, segundo a descrição do Livro de Duarte Barbosa (1517), os chineses “não tocam com a mão o que comem, usam umas tenazes de prata ou de pau, para meter, mui à miúde, a comida na boca”. Ainda hoje é assim nas residências, pois cada vez mais é frequente ver talheres nos restaurantes de Beijin e de outras cidades grandes. É a globalização a rasgar velhas tradições.
Em dezembro de 2018, a União Europeia decidiu a proibição, a partir de 2021, de alguns plásticos de utilização única, como talheres de plástico, para reduzir a poluição marítima.
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Vejamos, agora, cada uma das peças do talher.
Primeiro, nasceu a faca – do Árabe “farha” e do Latim “falx, falcis” – que era um machado rústico, um dos mais antigos objetos feitos pelas mãos do homem. O Homo erectus, que surgiu na Terra há mais de um milhão e meio de anos (tendo vivido há entre 1,8 milhões de anos e 100-200 mil anos), criou a primeira faca, feita de pedra (lasca de pedra com bordas afiadas). Não era usada à mesa. Servia para defesa, caça e desossa. Tinha a função de cravar, desossar, cortar e picar. As primeiras facas funcionavam apenas como ferramenta ou instrumento de matar. Só depois, passaram a ter serventia nas mesas. Na Idade do Bronze, que começou por volta de 3.300 a.C., as facas passaram a ser feitas em bronze e difundiram-se. A seguir, na Idade do Ferro, passaram a ser feitas em ferro. Desde então, o homem sempre carregou uma faca. A mesma faca que servia para matar era usada também para descascar fruta.
Devido à sua natureza perigosa e como podia ser usada para atacar ou ferir rivais, era associada ao poder. O primeiro a sugerir que cada homem deveria ter um talher para ser exclusivamente usado à mesa foi o cardeal Richelieu (1585-1642), primeiro-ministro e chefe do Conselho Real de Luís XIII (da Dinastia de Bourbon) e fervoroso defensor das boas maneiras, por volta de 1630.
Porém, a adaptação não foi fácil. Nesse tempo, as facas eram muito afiadas e grandes. Se a isto juntarmos o facto de as pessoas não estarem habituadas a comer com algo tão afiado perto da boca e o facto de a maioria das bebidas conterem álcool, temos todos os ingredientes para criar uma situação potencialmente perigosa. Foi com Luís XIV que as facas ganharam forma similar à das atuais, permitindo uma utilização na hora da refeição de uma forma fácil e segura.
A partir de 1921, a faca passou a ser de aço inoxidável. Foi, pois, necessário chegar ao século XX para termos uma das inovações de maior impacto no processo de produção da faca e que garante a qualidade que até então não era possível – a faca de aço inoxidável, que veio para ficar.
As facas tinham ganhado cabos numa das extremidades da lâmina para serem mais fáceis de manusear nos campos de batalha. E pedaços de carne ou outros alimentos eram espetados nessas facas e levados à boca. A ponta mudou só quando o cardeal Richelieu se irritou por ter visto o chanceler Pierre Séguier (1588-1672) usar uma para palitar os dentes, razão pela qual mandou arredondar todo o seu estoque de facas, no que foi imitado pela nobreza. De facto, nessa época, já não eram necessárias essas pontas, porque os garfos exerciam a função de prender os alimentos.
Depois, veio a tão útil colher – do Francês “cuillère”, do Latim “cochlear” ou “cochleare” (de “cochlea”, caracol) e do Grego “kokhliárion”, de “kokhlías”, “caracol”, pela sua forma côncava. Ao invés da faca, a colher já surgiu com o objetivo de servir alimentos. Há registos arqueológicos de artefactos parecidos com esse elemento do talher com mais de 20 mil anos, feitos de madeira, de pedra e de marfim. Mas, no início, a colher era de uso coletivo e parecia uma concha. Quando surgiu o pão, há 12 mil anos, usava-se uma colher para jogar o caldo sobre ele.
O homem primitivo usava conchas de moluscos para mexer os alimentos, na sua preparação, ou para servi-los à mesa. Assim nasceram os primeiros ancestrais das colheres de hoje. Há registos delas em mesas egípcias, de há sete mil anos. As primeiras colheres eram muito primitivas e não figuravam os utensílios que temos hoje, já que não tinham o cabo, que nos é tão útil. Isto deve-se ao facto de as primeiras colheres serem apenas conchas ou pedras que eram usadas para apanhar água e comida.
As colheres começaram a assemelhar-se ao que temos atualmente quando se lhes acrescentaram ossos de animais. Mais tarde, passaram a ser fabricadas com osso, pedra e madeira. Apesar de ainda muito primitivos, estes modelos, mais fáceis de manusear, deram a perceber que o cabo era essencial à criação das colheres. O cabo sofreu ainda muitas alterações, passando a ser feito de marfim ou de madeira. Só após a ascensão da Civilização Grega e do Império Romano, surgiram colheres de bronze ou de prata, símbolos de poder e de riqueza. Os Romanos usavam-nas para caldos, ovos e guisados. Aos poucos, foram-se sofisticando no material e na forma.
Ao longo do tempo, o desenho das colheres mudou constantemente, em especial no Renascimento e no período Barroco, sendo que, só no século XVIII, ganharam a forma e o design de hoje, maiores para a sopa, menores para a sobremesa. Os ingleses inventaram a “mote spoon” – colher bem pequena, de prata, usada para pescar folhas de chá no fundo da xícara. Vieram mais recentemente as de café. Segundo Câmara Cascudo (in “História da Alimentação no Brasil”), estes utensílios são quase um jogo de sedução: “Na hierarquia do talher, a faca é presença agressiva, enquanto a colher, para o povo, é a mão com os dedos unidos, assegurando a concavidade recetora e natural.”
Por fim, surgiu o garfo, do Árabe “gárfa”, que significa “punhado” (do verbo “gáraf”, “empunhar, tirar água”), ou do Latim “graphium”, que significa “instrumento” (estilete, ponteiro) usado pelos Romanos para escrever em tábuas. Assim registou Camilo Castelo Branco: “Os garfos primitivos foram de ferro, de uma só ponta, à semelhança de ponteiros em estilos com que se escrevia nas tábuas enceradas.”
O garfo foi, pois, a última implementação no atinente a utensílios de mesa. Embora seja verdade que as comunidades primitivas usavam ferramentas semelhantes, é de referir que estas eram apenas duas pontas que serviam para cozinhar e servir a comida. À semelhança da colher, os Egípcios foram pioneiros na sua utilização, sendo que a cultura Qijia (2200 a.C.–1600 a.C.), localizada no que atualmente é território chinês, também usava este tipo de utensílios.
Os primeiros garfos da civilização ocidental surgiram em Veneza, no século XI, com a princesa Theodora, que veio, como se disse, de Bizâncio para casar com o Doge Domenico Salvo. Mas tiveram pouco sucesso, sobretudo por conta da Igreja. São Pedro Damião (1007-1072) proibiu terminantemente o seu uso. São João Boaventura (1218-1274) – filósofo, cardeal, doutor seráfico, considerava-os “castigo de Deus” e “objeto do pecado”. O historiador francês Fernand Braudel cita um pregador medieval alemão que condenava esse “luxo do diabo”, alegando que Deus não teria dado dedos ao homem se quisesse que ele usasse “tal instrumento”. Popularizou-se na França, no tempo de Catarina de Médici, a também responsável pela popularização do azeite, da massa e do óleo.
No início, o garfo tinha dois dentes. Depois, foi ganhando mais um, por funcionar melhor no ajuntamento de alimentos, até que passou a ter o formato definitivo de quatro dentes no reinado de Fernando IV da Sicília, graças a Germano Spadaccinni, seu “despenseiro real”.
O uso do garfo em Portugal começou em 1836, quando o príncipe Fernando de Saxe-Coburgo-Gotha convenceu a esposa, D. Maria II, filha do Imperador D. Pedro IV, a adotar o seu uso.
O facto de ser mais higiénico comer com garfo do que com as mãos ajudou a erguer a popularidade do garfo. Este utensílio não era usado pela maioria da população até à Revolução Industrial, período em que as pessoas ficaram realmente capazes de comprar os seus próprios faqueiros e se começou a utilizar facas e garfos especiais para peixe e sobremesa (e para esta, também a colher).
O que os talheres andaram para chegarem até nós!
08/08/2022