Conectividade
As notícias recentes sobre escutas ilegais das comunicações de políticos catalães por parte de agências governamentais de Madrid levantaram pouco interesse e caíram rapidamente no esquecimento. Logo a seguir, foi divulgado que o governo inglês tinha feito o mesmo a políticos escoceses e aventou-se que o mesmo teria sucedido na Bélgica.
Em todos os casos o denominador comum foi o software, de origem israelita, concebido para vigilância e combate ao terrorismo. Uma particularidade interessante do dito software é que, alegadamente, só pode ser adquirido por entidades governamentais. Pelo menos sabe-se de onde vêm as violações de privacidade.
Em registo mais caseiro, fomos também informados que variadas empresas recorrem a variados programas informáticos para saber o que fazem os seus funcionários em situação de teletrabalho. A sofisticação informática é menor mas o resultado é o mesmo.
Para completar a cascata de revelações sobre o tema da invasão da esfera pessoal, foram expressas acusações de que a empresa detentora da aplicação Tiktok facultaria os dados dos seus clientes ao governo chinês. Portanto, falar de escândalos nesta matéria é abusivo, pois o elemento surpresa há muito desapareceu, tal a repetição dos episódios.
Na verdade, todos sabemos que, quando nos ligamos à rede, parte da nossa vida é passível de ser capturada e usada como informação com valor de mercado, passível de ser utilizada e vendida a potenciais interessados.
Claro que é possível ter a ilusão de que o conhecimento e tratamento da nossa localização, idade, profissão, gostos pessoais e círculo de amigos por parte de um algoritmo gerado por uma empresa qualquer não aduz consequências para o modo como entendemos o mundo e nos inserimos na sociedade.
Quando saímos para a nossa caminhada mais descontraída ou corrida mais empenhada, levamos o telemóvel ou outro dispositivo que nos vai contando os passos (e nos faz sentir culpados se falhamos os objetivos), mede a frequência cardíaca e a intensidade do esforço. Como estamos conectados à rede (precisamos do GPS), é possível que os nossos dados cheguem aos computadores dos fabricantes das aplicações que passam a armazenar bases de big data, provenientes de todo o mundo.
O ricochete chega-nos sob a forma de prescrições quantificadas sobre o que devemos fazer com o movimento do nosso corpo: quantos minutos, que distâncias, a que velocidade, quantas vezes por semana. E é evidente que vamos necessitar de uma nova aplicação para controlar o nosso treino.
Sabemos que o exercício físico pode ser aprazível e gratificante. Sabemos menos que os minutos, metros, quilómetros por segundo, etc., que são prescritos e que exprimem valores arbitrários, resultantes de artefactos estatísticos. O encorajamento vem também da certeza de que, cumprindo a meta dos 10.000 passos (ou mais), estamos a contribuir para diminuir o défice da Segurança Social ou a aliviar o fardo dos serviços de saúde. Também aqui, as contas apresentadas, sempre na ordem dos milhares de milhões, nunca explicam como é que se chegou lá. Não há volta a dar: quando estamos conectados à rede, pode acontecer tudo.