Conhecimento científico e crenças religiosas

 Conhecimento científico e crenças religiosas

Créditos: © ISTO É (istoe.com.br)

A ciência não é uma religião. (www.wikiwand.com)

Ao evocar filósofos, astrónomos, geógrafos e naturalistas que, tijolo a tijolo, implantaram as fundações do maravilhoso edifício da Geologia, deparámo-nos, a cada passo, com o debate entre o saber científico, racional, e o das crenças impostas pelas tradições religiosas ou outras, numa competição que só começou a esbater-se com a vitória do liberalismo.

A Geologia foi um dos domínios do conhecimento científico cuja competição e cujos conflitos com a religião (em particular, com a Igreja Católica) foram mais graves e violentos. Cultivar esta disciplina em moldes científicos, nos tempos anteriores a este movimento da elite intelectual europeia, em finais do século XVIII, teve os seus riscos. E não foram pequenos.

A origem e a evolução da Terra. (geobservatorio.com)

Falar ou escrever sobre a origem da Terra e as suas transformações ou sobre o nascimento da vida e a evolução das espécies, incluindo o surgimento do homem, tinha limites impostos pelos zeladores da fé. Fazê-lo à luz da ciência e, inevitavelmente, em confronto com as “verdades” bíblicas e com os dogmas decretados pela Santa Sé não foi uma caminhada fácil. Foi, sim, causa de perseguições, de sofrimento e, não raras vezes, de sacrifício da própria vida. Basta lembrar Averróis (no século XII), Roger Bacon (no século XIII), Jean Buridan (no século XIV), Ulisse Aldrovandi e Giordano Bruno (no século XVI), Galileu Galilei (nos séculos XVII e XVII), e Buffon (Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon, no século XVIII), para nos darmos conta dos escolhos postos ao progresso desta e de outras ciências.

Galileu Galilei é considerado o “pai da ciência moderna”, graças às
suas contribuições no que se refere ao uso do método experimental,
ao procurar compreender a Natureza. (www.wikiwand.com)

O geocentrismo, que impunha o universo centrado no nosso planeta, a idade de cerca de seis mil anos atribuída à história da Terra pelas Sagradas Escrituras, os seis dias da Criação e o Dilúvio bíblico eram algumas das verdades inquestionáveis, aceites pela hierarquia religiosa. Não havia lugar para os dissidentes, considerados hereges e, como tal, perseguidos. Existem sóis inumeráveis e infinitas terras que giram à volta deles, como estes sete planetas que giram em torno deste sol que nos é vizinho, escreveu o italiano Giordano Bruno. Por essa ousadia, por se recusar a admitir que a Terra se encontrava no centro do mundo e por outras heresias, este filósofo dominicano foi queimado vivo, “para purificação da sua alma”, em Roma, às ordens da Santa Inquisição, no dia 16 de Julho de 1600.

O Sol no centro do sistema e os planetas girando à sua volta. (© Toda Matéria)

Se nos concentrarmos nesta parte do Mundo onde nasceu e se desenvolveu a chamada Civilização Ocidental, as respostas aos grandes temas que viriam a integrar a Geologia encontravam-se, sobretudo, no seio das universidades medievais, cujos mestres eram, na grande maioria, eclesiásticos. Do universo ao homem, passando pelo nosso planeta, onde os mares, as montanhas, os vulcões e os sismos eram alvo de um misto de curiosidade e de temor, essas respostas, em grande parte condicionadas pela fé, impunham verdades globais, definitivas e indiscutíveis.

Paradoxalmente, o pensamento científico emergia e crescia no seio da mesma Igreja. Cautelosa e timidamente, os seus cultores propunham as suas explicações, sujeitando-se ao risco de uma tal ousadia. Como é vulgo dizer-se, a ciência e a religião são como a água e o azeite, não se misturam. As atitudes de uma e de outra perante as entidades e os fenómenos naturais são geradoras de confronto, hoje razoavelmente civilizado e pacífico nas sociedades democráticas, mas conflituoso e, tantas vezes, cruel e desumano no passado.

O pensamento científico contra o obscurantismo. (© Nossa Ciência)

Foram muitas as situações em que a Igreja, declaradamente, em nome da fé e, encobertamente, em defesa dos seus privilégios, tentou submeter os “sábios”, muitos deles, os seus doutores, e pô-los ao serviço da sua condição de classe dominante. Atitude paralela tem sido adoptada pelos governantes em estados totalitários e noutros ditos democráticos que, condicionando as políticas de investigação científica, não hesitam em interferir na actividade dos seus investigadores.

Apesar das perseguições, a Geologia já ganhou, em muitos países, estatuto de ciência de grandeza compatível com a sua real importância na sociedade, o que não é o caso em Portugal, onde este ramo do saber continua arredado da cultura geral dos portugueses, dos mais humildes e iletrados às elites intelectuais mais iluminadas. A Geologia tem crescido nos contextos da ciência e da tecnologia, sendo hoje um dos pilares da sociedade moderna, constituindo alavancas poderosas para o bem e para o mal, ao serviço de uma humanidade a um tempo sabedora e desencantada, à procura de um caminho que tarda em encontrar.

11/08/2022

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A. M. Galopim Carvalho

Professor universitário jubilado. É doutorado em Sedimentologia, pela Universidade de Paris; em Geologia, pela Universidade de Lisboa; e “honoris causa”, pela Universidade de Évora. Escritor e divulgador de Ciência.

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