Conservação de metadados só com autorização judicial
Um mês depois de o Tribunal Constitucional (TC) ter rejeitado, por inconstitucional, o decreto parlamentar que, depois de promulgado, seria a lei dos metadados, e após o subsequente veto presidencial, a Assembleia da República (AR) aprovou a nova versão acordada entre o Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD), com o objetivo de ultrapassar a declaração de inconstitucionalidade parcial que recaiu sobre o diploma anteriormente aprovado.
Os dois maiores partidos saíram em defesa da solução encontrada para o texto que regula o acesso a metadados de comunicações para fins de investigação criminal, com críticas dos outros partidos por terem sido excluídos do processo.
O novo texto condiciona a conservação de dados de tráfego e de localização a um pedido de autorização judicial, que deve ser decidido em 72 horas, e foi aprovado, em votação final global, a 5 de janeiro, com os votos favoráveis dos proponentes e do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), mas com votos contra da Iniciativa Liberal (IL), do Partido Comunista Português, (PCP), do Bloco de Esquerda (BE) e do Livre, e com a abstenção do Chega.
A nova versão estipula que “os dados de tráfego e de localização apenas podem ser objeto de conservação, mediante autorização judicial fundada”, para fins de “investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes”.
“O pedido de autorização judicial para conservação de dados de tráfego e de localização tem caráter urgente e deve ser decidido no prazo máximo de 72 horas”, lê-se no texto.
O diploma estipula ainda que, “de forma a salvaguardar a utilidade do pedido de autorização judicial para conservação de dados de tráfego e de localização, o Ministério Público [MP] comunica de imediato” às operadoras de telecomunicações “a submissão do pedido, não podendo os dados ser objeto de eliminação até à decisão final sobre a respetiva conservação”.
Havendo autorização judicial, a fixação e a prorrogação dos prazos de conservação estipulados devem limitar-se ao “estritamente necessário para a prossecução da finalidade prevista” e devem “cessar, logo que se confirme a desnecessidade da sua conservação”, sem estabelecer prazos.
Essa autorização judicial compete “a uma formação das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça [STJ], constituída pelos presidentes das secções e por um juiz designado pelo Conselho Superior da Magistratura [CSM], de entre os mais antigos destas secções”.
De fora destas disposições ficam os dados de tráfego e de localização que são conservados por operadoras de telecomunicações, os quais continuam a ser conservados “nos termos definidos contratualmente com o cliente”, apesar de não poderem ser acedidos pelas entidades em causa, “salvo nos casos previstos na lei” ou nos definidos no contrato.
Neste período de votações, surgiu uma proposta de alteração (que foi rejeitada) do Chega ao decreto sobre metadados, que previa que pudessem ser conservados “apenas os dados de tráfego e localização gerados por um suspeito de crime grave”, mas que não alterava os artigos alvo de declaração de inconstitucionalidade pelo TC. Esta proposta foi rejeitada com os votos contra do PS, do PSD, do PCP, do BE e do Livre, com abstenção da IL e do PAN, e voto favorável do proponente, o Chega.
Esta foi a segunda vez que o PS e o PSD se entenderam, nesta legislatura, para a elaboração de um texto conjunto sobre os metadados, sendo que o último, aprovado em votação final global na AR, a 13 de outubro, foi rejeitado pelo TC, em 4 de dezembro, pelo que o Presidente da República (PR) teve de o vetar.
No texto que o TC rejeitou, o PS e o PSD propunham que os dados de tráfego e de localização fossem conservados de maneira generalizada por três meses, sendo esse prazo prorrogado por outros três, salvo em caso de oposição expressa dos clientes.
O TC considerou que essa disposição ultrapassava “os limites da proporcionalidade na restrição aos direitos fundamentais”, salientando que a conservação dos metadados, independentemente do prazo, teria de ser limitada e não generalizada.
O TC já tinha previamente considerado, a 12 de abril 2022, inconstitucionais normas da chamada Lei dos Metadados – Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 79/2021, de 24 de novembro –, que transpôs para o ordenamento jurídico nacional uma diretiva europeia de 2006, mas que o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) declarou inválida, em 2014.
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No debate do dia 3 de janeiro de 2024, em que foi apresentado, para debate, o projeto conjunto do PS e do PSD, Pedro Delgado Alves, vice-presidente da bancada do PS, considerando positivo que o país passe a ter um regime que dê “soluções” nesta matéria, refutou que o texto consensualizado entre os dois partidos do “centrão” (PS e PSD) não vá além da lei do cibercrime: “É preferível ter um regime que dê soluções do que lei alguma”, insistiu.
Reconheceu que a decisão do TJUE condiciona a margem da AR para encontrar uma solução, mas sustentou que o novo texto equilibra as necessidades de investigação criminal com a salvaguarda dos direitos dos cidadãos. “A câmara tem [de] se conformar com as linhas com as quais pode legislar. É a terceira vez que nos reunimos para tentar este equilíbrio”, vincou, apelando ao voto a favor do projeto conjunto. Porém, agora, fica estabelecido que, só com autorização judicial, poderá haver conservação destes dados para um eventual acesso para investigação criminal, sendo que a decisão tem de ser célere, no prazo de 72 horas. “Parece-nos que é o fim de uma estrada que há muito procuramos trilhar. O regime jurídico pode não ser o ideal, mas é para o qual a jurisprudência nos empurra”, reforçou o deputado socialista.
Na mesma linha, o social-democrata André Coelho Lima considerou que o acórdão do TC, de 3 de dezembro, não fez “nenhum arraso constitucional” à lei apresentada e que, nos três pedidos de pronúncia do PR, apenas um foi considerado inconstitucional pelos juízes do Palácio Ratton. Desta vez, segundo o deputado social-democrata, o texto dá “resposta” para ultrapassar qualquer laivo de inconstitucionalidade.
“Todas as conservações de metadados só podem ser obtidas mediante autorização judicial, ou seja, deixa de haver conservação indiscriminada e generalizada e passa a haver conservação seletiva”, destacou André Coelho Lima, apontando para o prazo de 72 horas, dada a emergência da questão e vincando que incumbe ao MP, nesse período, comunicar às operadoras de telecomunicações que há determinado dado que vai ser utilizado, não podendo ser destruídos. “O objetivo é salvaguardar a decisão judicial e a investigação sobre prática de crimes”, observou.
Cauteloso, destacou as alterações que visam corresponder às observações do TC, segundo as quais, há um mês, tinham sido “ultrapassados os limites da proporcionalidade na restrição aos direitos fundamentais à autodeterminação informativa e à reserva da intimidade da vida privada” com a norma da lei que previa a conservação de dados de tráfego e localização até seis meses.
Entretanto, o socialista Pedro Delgado Alves, em resposta à deputada Inês de Sousa Real – que admitiu acompanhar a proposta, mas criticou o método do ‘Bloco Central’, acusando que o debate foi cozinhado e feito à porta fechada cai por terra” –, afirmou, então: “O debate é agora; na sexta-feira [como referimos, decorreu no dia 5 de janeiro], teremos oportunidade de votar.”
Pelo partido Chega, André Ventura alertou que as questões da inconstitucionalidade sobre metadados podem ameaçar investigações “importantes” relacionadas com criminalidade organizada, tráfico de droga, terrorismo ou sequestro, sendo fundamental resolver esta questão de forma “rápida”.
“Era urgente antes do fim desta legislatura resolver [o dossiê], que pode colocar em causa muitas investigações criminais em curso. Mas devíamos ter ido mais longe relativamente a matéria de conservação de dados”, advertiu.
Por sua vez, a liberal Patrícia Gilvaz disse que a decisão do TC deu razão ao partido, que advertira que a iniciativa “ultrapassava os limites da proporcionalidade”. E considerou que a proposta do PS e do PSD continuava “inquinada” até à alteração de última hora.
A deputada do PAN, Inês de Sousa Real, defendeu que a solução alcançada só “peca por tardia” e por resultar de um debate à porta fechada entre o PS e o PSD, o que “não é saudável para a democracia”, enquanto o deputado do Livre, Rui Tavares, admitiu que a proposta vai no “sentido certo”, mas perdeu-se “muito tempo” com isso.
O PCP e o BE continuaram a ser mais vocais nas críticas: “O BE é contra esta lei, porque é inconstitucional”, resumiu o líder parlamentar, Pedro Filipe Soares, acrescentando que o partido alertara que a lei iria bater nas traves do TC. Agora, a nova versão, como frisou o bloquista, é “minimalista”, não tendo o PS e o PSD alterado nada da lei que já existe, relativamente ao cibercrime.
“Passados 15 anos e depois de várias decisões judiciais, foram confirmados os problemas que o PCP identificou. A proposta hoje apresentada continua a sofrer dos mesmos vícios”, atirou a líder da bancada comunista Paula Santos, lamentando que o texto acordado entre o PS e o PSD continue a permitir a conservação de dados de cidadãos “todos por arrasto”.
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Os metadados são dados de contexto que, sem revelarem o conteúdo das comunicações, permitem aferir, por exemplo, quem fez uma chamada, de onde, com que interlocutor e em quanto tempo.
O termo “metadados” significa algo como “além dos dados”. Assim, os metadados são dados sobre outros dados, permitindo auxiliar na identificação, na descrição e na localização de informação.
Numa chamada de telemóvel, os metadados possibilitam a identificação do equipamento utilizado, assim como identificar a sua localização ou conhecer a origem, destino e duração do telefonema. O mesmo acontece em relação a uma SMS (Short Message Service – Serviço de mensagens curtas).
Nos documentos digitais (como ficheiros de texto, áudio, fotografias e vídeos) alojados nos dispositivos eletrónicos, os metadados indicam a data da criação do ficheiro e o seu formato, entre outras informações. Tratando-se de uma foto, por exemplo, dizem-nos quando e onde foi tirada.
Sendo uma espécie de rasto digital de todos os dados que enviamos ou das comunicações que efetuamos, os metadados não dizem, contudo, respeito ao conteúdo. Ou seja, embora permitam perceber quem fez determinada chamada, a quem ligou e quanto tempo durou a conversa, não revelam o que foi dito. O mesmo se passa, por exemplo, com imagens ou vídeos. Sabe-se quando e onde foram captados, mas não o que contêm.
Os metadados são, assim, uma forma de saber mais sobre os dados armazenados em dispositivos como computadores, telemóveis ou servidores.
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A discussão em torno dos metadados envolve um conflito entre a necessidade de segurança pública e de combate ao crime, nomeadamente o crime organizado; e direitos fundamentais como a privacidade, a livre circulação e a liberdade de expressão e comunicação. Por isso, é difícil estabelecer o equilíbrio, sem incorrer em situações de desproporcionalidade e sem deixar de zelar pela segurança dos cidadãos. Resta saber o que têm andado a pensar e a fazer os 230 cidadãos e cidadãos que nos representam e juraram proteger-nos. Se cada um pensar pela sua cabeça, tiver liberdade de expressão e todos conjugarem saberes e vontades para legislar de acordo com os princípios e os valores, vale a pena o funcionamento da AR. Vem aí o 10 de março: o povo julgará.
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11/01/2024