Constitucionalismo europeu e direitos fundamentais
O fracasso do Tratado de Constituição para a Europa (TECE), mercê de referendos negativos em França e na Holanda, em maio e junho de 2005, respetivamente, pôs em causa o caráter constitucional do sucessor, o Tratado de Lisboa (TL). Porém, tal vertente está salvaguardada.
Politicamente, o mandato da Conferência Intergovernamental (CIG), anexo às conclusões do Conselho Europeu (CE), de junho de 2007, que definiu a base e os termos do desenvolvimento dos trabalhos da CIG, assumiu que o Tratado da União Europeia (TUE) e o Tratado sobre o Funcionamento da União (TFUE) não têm caráter constitucional, mas a doutrina e a jurisprudência do Tribunal de Justiça (TJ) sustentam o seu caráter constitucional.
Ora, pela intrínseca ligação da proteção dos direitos fundamentais ao constitucionalismo moderno, a transferência de poderes dos Estados para a União Europeia (UE) não pode diminuir a proteção das pessoas, antes deve assegurar o respeito dos direitos fundamentais consagrados nas tradições constitucionais comuns dos seus Estados e no Direito Internacional dos Direitos Humanos, em especial na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) – o que os órgãos da Comunidade Europeia, em especial o TJ, assumem desde fins da década de 1960.
Por isso, o TL insere-se no contexto de afirmação dos direitos fundamentais por parte da UE, prosseguindo a rota dos antecessores. E são de salientar duas inovações fundamentais: a equiparação do valor jurídico da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) ao dos Tratados; e a atribuição de competência à UE para aderir à CEDH.
Estes pressupostos implicaram o reforço da vertente constitucional da UE e não impediram a multiplicação de cedências à soberania dos Estados e, portanto, ao intergovernamentalismo.
Com a CIG 2000, que aprovou o Tratado de Nice, decorreu a convenção para negociar e aprovar a CDFUE. O grupo, que se autodenominou de Convenção, não era assembleia constituinte, por lhe faltar legitimidade democrática: nem o Parlamento Europeu (PE) nem os parlamentos nacionais, eleitos por sufrágio direto e universal, não estavam mandatados para isso. Porém, a Carta não visava a criação de direitos novos, mas a visibilidade dos existentes que são património comum dos europeus, ou seja, a segurança jurídica e a proteção dos cidadãos. E, no atinente aos direitos civis, políticos e sociais, inspirou-se na CEDH, nos Tratados, na Carta Comunitária de Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, de 1989, e na Carta Social Europeia, de 1961. Além disso, visava impelir o processo de constitucionalização da UE e consolidar um movimento de implicação dos indivíduos no processo de integração europeia, o que é notório em vários considerandos do seu preâmbulo, como a referência aos povos da Europa, a afirmação de que a União põe o ser humano no cerne da ação e a precisão de que as pessoas, bem como a comunidade humana e as gerações futuras adquirem deveres.
A Carta consta de Preâmbulo, seguido de sete títulos – Dignidade, Liberdade, Igualdade, Solidariedade, Cidadania, Justiça e Disposições Finais. A inviolabilidade da dignidade do ser humano é o pórtico de entrada e a base do sistema dos direitos fundamentais, que são os direitos à vida e à integridade física, a proibição da tortura e dos tratos ou penas desumanos ou degradantes e a proibição da escravatura e do trabalho forçado.
O Título II inclui as liberdades clássicas, como o direito à liberdade e à segurança, o respeito da vida privada e familiar, o direito de contrair casamento e de constituir família, a liberdade de pensamento, de consciência e de religião, a liberdade de expressão e de informação, a liberdade de reunião e de associação e a liberdade das artes e das ciências – a par de direitos sociais, como, a liberdade profissional e o direito ao trabalho e o direito à educação, de direitos económicos, como a liberdade de empresa e o direito de propriedade, e de direitos de terceira geração, como o direito à proteção de dados pessoais.
O direito de asilo e a proteção, em caso de afastamento, expulsão ou extradição, enquadram-se nos direitos dos estrangeiros cujo respeito a UE assegura. A igualdade e a não discriminação, embora consagradas parcelarmente nos Tratados da Comunidade Europeia (TCE), desde a versão originária, são, agora, equacionadas em texto oficial com valor idêntico aos dos Tratados, numa perspetiva global.
Reconhece-se a igualdade ante a lei, a proibição da discriminação em função da nacionalidade e a proibição da não discriminação em função de quinze categorias suspeitas, em que se incluem o sexo, a origem étnica, a religião ou crença, a deficiência, a idade e a orientação sexual. A igualdade entre homens e mulheres teve tratamento específico. E necessitam de resposta especial certas categorias de pessoas, que possuem problemas particulares, como as crianças, as pessoas idosas e as pessoas com deficiências.
A inclusão do respeito da diversidade cultural, religiosa e linguística no Título relativo à igualdade (Título III) pressupõe que a concretização da diversidade cultural, religiosa e linguística deve efetuar-se, nomeadamente, pela não discriminação.
O Título IV, relativo à solidariedade, inclui a maior parte dos direitos sociais reconhecidos na CDFUE: o direito à informação e à consulta dos trabalhadores na empresa, o direito de negociação e de ação coletiva, o direito de acesso aos serviços de emprego, a proteção em despedimento sem justa causa, as condições de trabalho justas e equitativas, a proibição do trabalho infantil e a proteção dos jovens no trabalho, a proteção da vida familiar e da vida profissional, o direito à segurança social e à assistência social, a proteção da saúde, o acesso a serviços de interesse económico geral, mas também inclui os direitos de terceira geração, como é o da proteção do ambiente e o da defesa do consumidor.
As normas relativas à cidadania, previstas no Título V, retomam, no essencial, as normas dos Tratados que sobre ela versavam. O estatuto do cidadão da União abrange o direito de eleger e ser eleito nas eleições para o PE e nas eleições municipais, o direito a uma boa administração, o direito de acesso aos documentos, o direito de petição ao Provedor de Justiça e ao PE, a liberdade de circulação e de permanência e a proteção diplomática e consular. É de sublinhar que, ao invés do que se verificava no TCE, a liberdade de circulação e de permanência pode vir a abranger os nacionais de terceiros Estados legalmente residentes no território de um dos Estados-membros da União.
Em matéria de Justiça, consagram-se o direito a ação judicial efetiva e a julgamento imparcial, a presunção da inocência e os direitos de defesa do arguido, os princípios da legalidade e da proporcionalidade dos delitos e das penas e o direito a não ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito, ou seja, direitos que integram a CEDH ou os seus protocolos.
O último capítulo estabelece as disposições gerais para a aplicação da interpretação dos direitos e dos princípios, ao nível de proteção, e quanto à proibição do abuso de direito.
A CDFUE foi solenemente proclamada pela Comissão, pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho e aprovada pelos Estados-membros, no Conselho Europeu de Nice, a 7 de dezembro de 2000. Um dos grandes objetivos era conferir-lhe caráter vinculativo, pela sua inserção no TUE. Porém, cedo se verificou a ausência do necessário consenso. Por isso, o Tratado de Nice incluiu uma declaração que previa a convocação da CIG para 2004, a fim de se debruçar, entre outras questões, sobre o estatuto jurídico da CDFUE, pois, até à entrada em vigor do TL, a CDFUE não tinha força jurídica vinculativa. Assim, do Relatório Final do Grupo II da CIG (integração da Carta / Adesão à CEDH) constavam as seguintes opções: inserção dos artigos da Carta no início do TECE, num Título ou num Capítulo; ou a referência à Carta num artigo do TECE. A opção que vingou foi a integração do texto da Carta na Parte II do TECE.
O TL não seguiu este entendimento, antes reconheceu aos direitos, liberdades e princípios contidos na CDFUE valor jurídico idêntico aos dos Tratados. Apesar de o texto da Carta não ter sido incluído nos Tratados, como no TECE, a equiparação do valor jurídico da CDFUE aos Tratados não pode, na ótica do constitucionalismo europeu, ser desvalorizada, já que a diferença entre incluir e equiparar é mais simbólica do que jurídica.
O certo é que a UE passou a dispor de um catálogo de direitos fundamentais, que pode ser invocado nos tribunais da UE e nos tribunais nacionais. Todavia, a consagração da força vinculativa da Carta só foi possível à custa de cedências (pouco compatíveis com a filosofia da proteção dos direitos fundamentais) a certos Estados-Membros, como o Reino Unido (agora autoexcluído da UE), a Polónia e a Chéquia – o que acarretou limites à interpretação de algumas das normas fundamentais da Carta.
Para lá do estatuto jurídico da Carta, o TL traz outra novidade importante no domínio da proteção dos direitos fundamentais, pois confere à UE competência para aderir à CEDH. Ora, a adesão das Comunidades (e mais tarde da UE) à CEDH foi defendida por uma parte da doutrina e por alguns órgãos comunitários, desde os anos 70. Um dos textos pioneiros e mais importantes na matéria foi o memorando da Comissão sobre a adesão das Comunidades Europeias à CEDH de 1979, que vincava algumas vantagens da adesão das Comunidades à CEDH, tais como a vinculação da Comunidade por um instrumento internacional de direitos fundamentais, com a consequente sujeição a controlo idêntico ao dos Estados-membros, a existência de um catálogo de direitos, como fundamento jurídico das decisões do TJ, o que contribuiria para aumentar a certeza jurídica e a incorporação da CEDH na ordem jurídica comunitária. Não obstante, as Comunidades não aderiam à CEDH, pois esta solução apresentava dificuldades, consideradas intransponíveis por alguns, como as conexas com problemas técnicos e institucionais, sendo o principal a concorrência de sistemas jurisdicionais distintos, que obedecem a princípios diferentes.
Porém, o consenso necessário dos Estados-membros, neste âmbito, obteve-se na CIG 2004. Com efeito, a adesão da União à CEDH voltou a inscrever-se na agenda europeia na Convenção sobre o Futuro da Europa, que preparou o projeto de Constituição Europeia entregue à CIG 2004, tendo o artigo I-9.º, n.º 2, do TECE determinado que “a União adere à Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais”.
Na esteira do TECE, o TUE determina que a União adere à CEDH e que essa adesão não altera as competências da União definidas nos Tratados. Assim, a UE adere à CEDH, aceitando um núcleo duro de direitos e liberdades, bem como reconhecendo a jurisdição do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) nos direitos fundamentais. Politicamente, a adesão da União à CEDH significa a convergência em direitos fundamentais e a partilha de valores em toda a Europa. Com efeito, a transformação da União numa entidade política, com poder político, a modo de Estado, evidenciou a necessidade de controlo internacional dos direitos humanos.
Em suma, o TL transpôs para o âmbito da proteção dos direitos fundamentais a tendência dos Tratados de projetar a UE em dois sentidos contraditórios: o constitucionalismo e o intergovernamentalismo. Por um lado, introduz modificações de ordem constitucional, como a equiparação do valor jurídico da CDFUE ao dos Tratados e a admissibilidade de adesão da União à CEDH; por outro, proliferam desvios, exceções e regimes especiais, para acomodar as pretensões dos diversos Estados e atingir o consenso necessário. Ora, em direitos fundamentais a ambivalência é negativa, por ferir a segurança e a certeza jurídicas e por não assegurar a proteção das pessoas em relação às normas e aos atos da UE e dos Estados. E, assim, a UE, defende os direitos fundamentais e as soberanias, mas tritura os Estados com muitas diretivas e deixa que a onda neoliberal esmague os direitos sociais.
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27/03/2023