Conteúdos vivos e educação à distância

Créditos: António Dias Figueiredo
O preparadíssimo artigo do Prof. António Dias Figueiredo “Os Equívocos da Educação à Distância”, publicado há dois dias no sinalAberto, é um poderoso convite à reflexão-para-a-ação sobre as virtudes e vicissitudes dos vários modelos de ensino e aprendizagem à distância, com reflexos potenciais no pós-confinamento.
A crise súbita da covid-19 não nos deu tempo para pensar adequadamente os estudantes e as suas famílias, que de um momento para o outro perderam mentores e interlocutores. E tão-pouco permitiu a devida ponderação da qualidade dos recursos tecnológicos e intelectuais das nossas escolas e professores, ao serem confrontados com um desafio sem precedentes. O resultado, o “ensino remoto de emergência”, foi um eclético exercício de voluntarismo de geometria variável, cujo modus operandi e consequências importa apurar detalhadamente, com vista à preparação dos tempos que aí vêm.
Dias Figueiredo tem razão quando afirma, sem ambiguidades, que “a função primordial do ensino remoto de emergência não poderia ser fazer cumprir programas, sobretudo pelos mais jovens, mas manter as crianças funcionais para a aprendizagem e intelectualmente ativas”. Não fora o excecional ativismo e criatividade de muitos professores, assentes na partilha e cooperação, como muito bem sublinhou o autor, e o descalabro teria sido completo, alegremente conduzido pelo autoritarismo míope de tantos e tantos dirigentes, desejosos de mostrar serviço pela via do controlo burocrático.
Mas ficámos perto: nem se cumpriram programas nem se mantiveram as crianças despertas. Muitas coisas terão que mudar nas escolas, como resultado desta experiência única, e o sistema de gestão e direção é uma delas. Uma direção efetiva não pode prescindir da motivação, cooperação e disponibilidade para a inovação de muitos profissionais. Assunto tabu, por enquanto. De igual forma, a função do ministério é criar condições para que as escolas funcionem tão autonomamente quanto possível, embora respeitando objetivos gerais, sujeitando-se a saudáveis práticas de monitorização e fiscalização, e promovendo a desejável articulação com as comunidades locais.
Não há razões científicas para crer que a pandemia se irá atenuar nos tempos mais próximos (muitos meses ou mesmo anos). “Os tempos que aí vêm”, portanto, não prescindirão dos instrumentos e recursos da educação à distância, pensada de forma estruturada e com visão estratégica. Temos algum tempo para o fazer, mas necessitamos de começar já e, acima de tudo, de libertar a energia criadora dos inovadores, permitindo a realização de experiências diferenciadoras, desde que sustentadas na cooperação e nas boas práticas. A roda não começou hoje.
A discussão sobre este assunto crucial não se esgota no exercício de reflexão de Dias Figueiredo e, com as devidas proporções, nas presentes linhas. Sem prejuízo de voltar ao assunto destacarei portanto um ponto único, que considero nuclear e que é decorrente da minha experiência recente.
Trata-se da natureza dos conteúdos que o professor disponibiliza aos estudantes. Concentrar-me-ei no ensino universitário. É certo que “as universidades portuguesas já recorrem, em larga medida, a uma forma degradada do modelo combinado”, em que se utilizam plataformas informáticas para a colocação online dos materiais dos cursos e para a gestão de conteúdos, apoiando o ensino presencial, cuja presença é no entanto dominante, principalmente na sua forma magistral. (Sim, ainda prepondera o magister dixit.)
Mas os conteúdos do ensino à distância não podem ser os mesmos do ensino presencial, ainda que suportados por plataformas tecnológicas. A interação à distância pressupõe conteúdos vivos, preferencialmente interativos, adequados à respiração de uma aula e ao forte vínculo emocional que o professor tem que estabelecer com os seus estudantes. (Sendo a inteligência emocional nuclear nas relações humanas em geral, é-o ainda mais no contexto das interações à distância. O seu défice acentua o isolamento, a insegurança e a deriva emocional do estudante.)
O início abrupto da crise covid não permitiu a criação dos novos conteúdos, tendo muitos professores optado por replicar os já existentes, com pequenas adaptações, ou por transportar o modelo de aulas magistrais para a plataforma Zoom ou congéneres. (Os professores que optaram por criar novos conteúdos tiveram que o fazer de forma intensiva, em sucessão frenética com as aulas, recorrendo a formas artificiais de expansão do tempo de trabalho. Um understatement para exaustão e exploração laboral?)
Enfim, muitos fizeram o que puderam tendo em conta as circunstâncias. Mas gostaria de deixar claro que não concebo conteúdos de ensino que não sejam investigados e trabalhados ad nauseam, tendo não só em conta a validade científica como também a qualidade da comunicação, a capacidade de interrogação e a presença de um cheirinho de descoberta iminente. Não basta “produzir materiais” para prestar serviço, pensamento que expando carinhosamente de forma a abranger entidades insuspeitas como direções de departamento, direções de faculdade e mesmo reitorias.
Os estudantes, como todas as pessoas e animais sencientes, são movidos pela curiosidade. Um assunto fechado estiola e mata. Um assunto aberto é uma caixa de pandora capaz de operar maravilhas.
Não deixemos que a covid-19 infete os nossos estudantes e professores.