Contra a corrente
Os cidadãos António Costa (também primeiro-ministro) e Fernando Medina (também presidente da Câmara Municipal de Lisboa) declararam apoio a uma candidatura a presidente num clube desportivo (SL Benfica), tal como o cidadão Rui Moreira (também presidente da Câmara Municipal do Porto) aceitou integrar uma candidatura (e foi eleito) como dirigente de outro clube desportivo (FC Porto).
Quanto à profissão, têm existido magistrados nos órgãos sociais de SL Benfica, FC Porto e Sporting Clube de Portugal, como existem em associações cívicas, e estão em corpos de bombeiros, ranchos folclóricos, confrarias, cooperativas de agricultores e outras agremiações. Quanto a funções exercidas, figuras públicas como Ramalho Eanes (recebeu o Dragão de Ouro), Santana Lopes (foi Presidente do Sporting) e Marcelo Rebelo de Sousa (apoiou uma candidatura a presidente do seu clube – SC Braga), foram exemplos de intervenção cívica.
Num país evoluído, em que o reconhecimento da liberdade e diversidade, a apologia da multiculturalidade e o direito ao exercício da cidadania individual são direitos adquiridos e paradigmas, tais posições seriam atos de cidadania, não haveria nenhuma contestação, ativada com emoções ao rubro e destilar de fel, quais ataques de touro enraivecido, como se caísse o Carmo e a Trindade.
Temos restrições de liberdades, por razões sanitárias e, pasme-se, há quem defenda a restrição de liberdades cívicas, com base na suspeição sobrepondo-se à razão, no diz-que-disse substituindo-se aos factos, na noite da má-lingua versus a luz do dia pela justiça.
António Costa não é meu ídolo (que aliás não tenho, exceto quem sofre e os desfavorecidos), e já tive oportunidade de o criticar (direito de opinião) por afirmações infelizes relativamente aos médicos na crise pandémica, também expressas no caso João Soares. Já quanto ao código de conduta do Governo, juristas conceituados referem a sua não aplicabilidade no caso do apoio de António Costa ao candidato do SL Benfica.
Quem nega o direito de expressão do pensamento a António Costa (duramente visado como nenhum outro), como se um titular de cargo público não tivesse direito à exteriorização de vida privada e à liberdade de circulação, ao prazer e à satisfação do que entenda assumir e tornar público, incorre numa deriva totalitária que conduz a caminhos perigosos, mesmo em democracia institucionalizada.
Devo confessar desde já a minha ausência de conflito de interesses. Porque sendo socialista e benfiquista, nada me tem impedido de criticar o que considero errado no exercício dessa força política (conforme múltiplos artigos publicados, como recentemente contra a destruição em curso do Hospital Central dos Covões), e nem sequer dou por adquirido o meu voto no candidato apoiado por António Costa nas eleições no SL Benfica.
Com toda a naturalidade, é possível a um membro do Governo ir à praia, às compras ao supermercado e realizar outros atos quotidianos, declarar a sua orientação sexual, demonstrar simpatia pela sua terra e seus produtos comercializados, expor a família como um suporte de equilíbrio e afetos ou como fonte de disfunção e rotura da dinâmica familiar, manifestar sofrimento por doença própria ou de ente querido e ainda a dor pela sua perda.
Mas há quem considere antinatural e até escandaloso que um cidadão manifeste apoio simbólico (não executivo nem decisório, no caso de António Costa) a um dirigente de um clube do qual é adepto (como a maioria dos portugueses) e associado (com direitos e deveres), e não se escandalize com a exclusividade de comemoração de títulos do futebol na Avenida dos Aliados (Porto), como se esta não fosse propriedade pública. Obviamente, se o Sporting (ou o FC Porto) for campeão e o desejar, tem todo o direito de festejar no Marquês de Pombal (Lisboa). Os espaços públicos das cidades pertencem à comunidade e não são propriedade de nenhum clube específico.
Entre as razões invocadas para a corrente de opiniões (com dignidade, em liberdade) e a profusão de impropérios vulgares, linguagem viperina e insultos de corar com rebaixolice quanto baste, estão a promiscuidade entre o futebol e a política, além das hipotéticas dívidas e processos judiciais do candidato apoiado pelo cidadão António Costa.
Ora, a promiscuidade entre a política, a justiça e o futebol não existe pela declaração de apoio de um político a uma candidatura a dirigente desportivo, mas existe pela prática do favorecimento, branqueamento, fuga de capitais, corrupção e outros crimes cuja moldura penal está estabelecida e para os quais terá de haver investigação qualificada, acusação se houver pistas, suspeitas e indícios fortes e respetiva condenação se houver confirmação da prova produzida.
Quanto aos processos judiciais que o referido dirigente desportivo terá (na qualidade de empresário, suponho), e mesmo os que envolvem o SL Benfica (como outros envolvem o FC Porto e o SCP, e seus líderes), não há sequer decisão judicial tomada nem trânsito em julgado, pelo que a presunção de inocência não pode ser uma figura de retórica quando convém, e apenas inculpam o(s) protagonista(s), e não (por extensão indevida) quem manifeste confiança pessoal em quem quer que seja para uma função específica.
Perante evidências futuras, só não muda de opinião quem é burro, mas pelo exposto, não vejo nenhuma razão para denegrir António Costa (ou qualquer outro cidadão), por exercer a sua cidadania em liberdade, sem mácula (aliás, o mesmo candidato ao SL Benfica foi apoiado pelo cidadão António Costa em 2012 e 2016, sendo também presidente da Câmara de Lisboa e primeiro-ministro, respetivamente, e então não houve parangonas…).
Quem confunde exercício de funções públicas com atos de cidadania individual, não contribui para esclarecer a opinião pública; contribui apenas para acirrar ódios de estimação infelizmente muito em voga no futebol, para descarregar frustrações em tempo de crise e muitos medos que nos assolam, para desviar o centro das atenções que deveria estar no perigo sanitário que atravessamos e não no ataque à liberdade e à democracia com direitos humanos para todos.
Alguns intelectuais da comunicação social simulam estupefação pela atitude de António Costa, um coro de virgens ofendidas e académicos eruditos desancam-no, e acusam-no até de síndrome de Hubris (síndrome da presunção, desordem da personalidade, com falta de atenção às consequências das suas ações). Que despudor! Onde está a competência científica para tal?
É verdade que um líder deveria ter colaboradores à sua altura, o que me custa a encontrar nalgumas áreas. António Costa não tem razão em “puxar as orelhas” a colaboradores porque lhe apetece, mas porque tem razão, e então isso deveria ter consequências para os visados.
António Costa tem conduzido Portugal na maior crise humanitária universal após a 2ª Guerra Mundial, com serenidade e sabedoria de estadista, singeleza e firmeza nas decisões que têm de ser tomadas, modéstia na exposição pública e aceção de diálogo, sentido de equilíbrio de forças políticas divergentes ou até antagónicas.
Há algo que pretensos doutos, letrados, literatos, sábios, luminares, enfáticos, não compreendem. Enquanto decorre a pandemia do século que mata milhões, dissertam sobre um simples ato de cidadania. Quem não se sente, não é filho de boa gente, diz o povo, que fará o seu julgamento, na altura própria. António Costa sente o povo, e é filho de boa gente. E tem direitos de cidadão.
Após a contestação, Luís Filipe Vieira decidiu retirar os titulares de cargos públicos da sua lista de apoiantes (incluindo António Costa). Não sei se por intimidação ou pela razão. Mas sei que a democracia participativa fica mais pobre, a democracia representativa não sai fortalecida nem dignificada, e deste episódio não resulta a penalização dos infratores à justiça nem o incremento ou uma nova frente de combate à corrupção que se deseja.