Conversa sobre “Na cama com Ofélia”
O Teatro da Rainha encomendou, Henrique Manuel Bento Fialho escreveu. “Na cama com Ofélia” estreou no dia 17 de Fevereiro de 2022, com encenação de Fernando Mora Ramos. O público tem aplaudido de pé este espectáculo que parodia as cartas de amor trocadas entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz, trazendo o desejo da amada para primeiro plano, enquanto à sua volta três heterónimos se questionam sobre corpo e alma, realidade e sonho, vida e morte, paixão e indiferença. O que é uma mulher? – perguntam as três criaturas, quando ela estranha a ausência de anarquistas na rua. Em cena, nas Caldas da Rainha, até 12 de Março. Depois, no O’Culto da Ajuda, em Lisboa, nos dias 17, 18 e 19 de Março. A conversa que a seguir divulgamos ocorreu a 8 de Fevereiro. José Ricardo Nunes, poeta e ensaísta, moderou o diálogo entre o autor e o encenador de “Na cama com Ofélia”.
JRN – Henrique, o que te deu na cabeça para escreveres uma peça no universo do Fernando Pessoa? Ou, digamos assim, partindo do universo do Fernando Pessoa?
HMBF – O ponto de partida foi muito simples, até simplista. Tem em conta uma ideia feita sobre as cartas de amor trocadas entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz, que é a ideia segundo a qual a Ofélia foi completamente manipulada pelo Pessoa. Tinha lido as cartas há muitos anos e não simpatizava nada com elas, mas, depois de ler um ensaio de José Gil sobre as mesmas, fiquei com uma ideia diferente. Ele fala de um “jogo da sinceridade das palavras” que é vencido por Ofélia, ou seja, quando o Nininho é confrontado com as ambições da Ofelinha – constituir família, ter uma casinha, etc. –, ele envia-lhe o Álvaro de Campos, diz que está doido, até àquela célebre carta de Novembro de 1920, uma das finais da primeira parte da relação, em que se refere a um destino “subordinado à obediência a Mestres”, um destino superior que a Ofélia seria incapaz de compreender. A leitura do ensaio de José Gil fez-me olhar para as cartas de uma forma completamente diferente. Quando surgiu a hipótese de escrever uma peça, em conversa com o mestre Fernando Mora Ramos, pensei que seria engraçado abordar as cartas de um outro ponto de vista. Isto é, o de uma mulher desejosa de ir para a cama com o seu amado, e o seu amado sempre a escapar-lhe e a enviar-lhe heterónimos. O que a deixa num plano de insatisfação do desejo sexual. A questão que se me colocou desde o início, embora tenha tido desenvolvimentos, é a de um desejo de satisfação de realidade que vai sendo frustrado pelo sonho. As cartas abrem uma hipótese de exploração teatral interessante que tem que ver com esse conflito entre sonho e realidade. Nunca quis, no entanto, ficar-me pelas cartas, pretendi antes procurar uma Ofélia com identidade própria que já não tivesse nada que ver com a Ofélia Queiroz, misturando-a com reminiscências de outras “ofélias”. Se quisermos ir à origem, teremos, possivelmente, de ir até uma suposta prima de Shakespeare, que terá morrido afogada com apenas dois anos, inspirando-lhe posteriormente a Ofélia de “Hamlet”.
Fábio Costa, o Álvaro de Campos de “Na cama com Ofélia”. (Fotografia de Paulo Nuno Silva)
JRN – Há várias referências a Shakespeare no teu texto.
HMBF – Há duas intencionais e uma inadvertida. As duas intencionais são “Palavras! Palavras! Palavras!” e “Ser ou não ser, eis a questão”. São frases de Hamlet que coloco na boca das Criaturas. A inadvertida é da Rainha, quando, no funeral de Ofélia, diz “Flores à flor!”. Não é uma citação directa, mas joga bem quer com a parte final do texto, em que é suposto a Criatura Branca dispor as flores murchas sobre o corpo de Ofélia, quer com um verso do Ricardo Reis citado pela Criatura Preta, no final do Primeiro Acto: “Flor, sê-me flor!”
JRN – Pessoa também entra na tradição da literatura inglesa, que vem do Shakespeare…
HMBF – A ligação é muito engraçada. Repara, Pessoa e Ofélia conhecem-se, em 1919, no escritório onde ambos trabalham. Um dia falha a luz…
FMR – Há sempre um blackout para resolver o problema.
HMBF – Exactamente. (risos) Pessoa terá acendido um candeeiro a petróleo, aproxima-se da jovem Ofelinha, que tinha apenas 19 anos, ajoelha-se e recita-lhe versos do Príncipe Hamlet. A ligação com Shakespeare fica logo estabelecida. Podes questionar se ele teria o mesmo comportamento se a colega de escritório não se chamasse Ofélia. Imagina que se chamava Cátia Vanessa. Que versos lhe recitaria Pessoa? Se fosse Beatriz, talvez levasse com o Dante. Provavelmente, para ele foi mais estimulante o simples facto de ela se chamar Ofélia do que um qualquer desejo sexual pela jovem dactilógrafa. Como sabes, a sexualidade de Fernando Pessoa tem sido objecto de inúmeras especulações. A verdade é que a partir daquele momento gerou-se uma relação e as cartas dão testemunho da atracção de Ofélia. Uma relação, diga-se, muito mais complexa do que à partida parece. Hoje, quando olho para a mulher de “Na cama com Ofélia”, não vejo nenhuma Ofélia Queiroz. Esta faleceu com 91 anos, refez a vida após o fim da relação, casou com um teatrólogo, se não estou em erro, já depois de Fernando Pessoa morrer. A Ofélia desta peça é outra coisa.
JRN – Fernando, como é que tu te amancebas com a Ofélia do Henrique?
FMR – Há uma dimensão de surpresa. Quando conversámos sobre a possibilidade de um drama entre os heterónimos ou de um conflito entre eles, não era este texto que se esperava, mas de alguma maneira isso está aqui. Eles são uma figura coral a um tempo, mas também de grande dissonância. Cada um deles quer afirmar uma dimensão singular, isso daria um drama-heterónimo. Fazê-lo por antagonismo não resolve o problema, principalmente quando há por detrás uma cabeça a pensar essa diversidade do mesmo. Ora, essa dimensão está presente e muito bem secundarizada, o assunto é a Ofélia, mais que a Ofelinha. Aliás, este título… Já sei como é que se vai chamar a peça, disse-me uma vez o Henrique: “Na cama com Ofélia”. Fiquei hesitante. É capaz de ser interessante e tal, mas estava a dizer isto e a pensar ao mesmo tempo que ia remeter para aquele programa televisivo, “Na cama com…”, que, se calhar, é uma merda comprada a uma televisão holandesa. Depois li o texto e fiquei… Há uma coisa aqui que me interessa muito, esta ideia de pôr em cena um sonho. O que trabalhei desse tipo de materiais foi, talvez, a partir do Sarrazac, que era fanático por Strindberg.
JRN – Referes isso na tua introdução à peça do Henrique.
FMR – Sim. Ele tem um ensaio onde, por exemplo, define uma figura dramática que é a da impersonagem. Não se trata de identificar alguém a partir do lugar de enunciação, mas trata-se, justamente com a liberdade que o sonho permite, uma liberdade que não é limitada nem por razões de definição identitária da personagem, nem por razões de espaço ou tempo, de assumir uma dimensão heterocrónica e heterotópica que existe na peça do Henrique. Estamos na cama, mas ela viaja, depois, quando estamos já na situação da vidente, ela projecta-se sobre Lisboa… Há ali uma geografia que tem muito a ver com o que vai acontecendo em cena. Com certeza que, do ponto de vista de quem escreve, o modo como as coisas se vão ligando ou associando escapa a um encadeamento lógico. A peça está completamente fora das lógicas convencionais, há uma grande liberdade em tudo aquilo que é escrito. E ela, de facto, está entre essa figura do desejo e, ao mesmo tempo, relativamente aprisionada naquela intriga epistolar, digamos assim. Está naquela rede que ele lança sobre ela e em que ela fica presa, mas todas essas situações são e não são. Com o tempo, passa-se para outra coisa. É bastante curioso, particularmente na terceira parte, que aquela rapariga já esteja a anos-luz da Ofelinha. Porque há, de facto, momentos de Ofelinha – a que, ao descrever-se, tinha ideais de natureza pequeno-burguesa, consensuais naquela sociedade, a ideia de segurança, tranquilidade, ter filhos e constituir família, aquelas coisas que também são verdade hoje, embora hoje os neuróticos sejam muito mais profundos e múltiplos e massificados. As pessoas, hoje, não são capazes de relações de longa duração. E aquela era para ser uma relação desse tipo. Aquilo que nele é instante, rápido, mudança de campo, mudança de cabeça, nela é um desejo de outra coisa em que ele cabia como marido. Mas aquele tipo nunca seria marido de ninguém.
JRN – De certa forma foi o marido dela, porque ela envelhece com ele na imaginação. Não é?
FMR – Mas isso é engraçado, porque o que tentámos fazer na peça foi, justamente, que ela superasse essa condição de dependente daquele enredo epistolar e encontrasse um caminho próprio. Isso está lá vincado. O gesto de queimar a carta é para aí que remete. O que sai dali são duas vias de afirmação. Se calhar, quem está a dizer aquele texto final em cena, com algum fôlego autoral, é a própria Marta. Hoje, disse-lhe isso mesmo. Quando ela diz, no final, “apesar de hoje ser terça-feira”, és tu quem está a dizer isso.
HMBF – Exactamente.
FMR – E, subitamente, a Marta é uma Ofélia. Trabalhámos nessa perspectiva. No fim, o que tentamos fazer acontecer é isso. Depois, as coisas voltam ao mito, mas numa circunstância de farsa. Quando voltamos ao início, regressamos à primeira imagem, já não com a referência ao Millais, mas num quadro mais abstracto. O espectáculo arranca com o Millais em versão kitsch. Atrevo-me a dizer que há alguma legitimidade nessa opção, se pensarmos naquilo que a própria Ofélia diz. Que toalha é que ela teria na sala de estar? Talvez uma com aquelas flores. Gosto muito de pensar que ela caminha para o seu próprio planeta, vai para um lado e vai para o outro.
HMBF – Pensas nisso do ponto de vista da hesitação? Ela hesita entre um lado e outro?
FMR – Não hesita, separa-se. Isso é que me agrada. Liberta-se, vai fazer outro caminho qualquer. Regressa ao teatro do mito, mas já com uma inércia estrutural e, entretanto, partiu-se em duas Ofélias, uma delas porventura chama-se Marta, para lhe dar o nome da actriz. Entram as três Criaturas a fazer de gatos-pingados e acontece uma coisa extraordinária, na qual só pensei ontem. As Criaturas nunca lhe tocam, mas, no final, gramam com o peso dela em cima. É preciso trabalhar isso melhor, fazer com que lhes custe um pouco carregar com ela alguma contrariedade. Tudo aquilo tem de ser tosco. Mas, no momento em que o gesto de a devolver à cama termina, o que o vídeo fará é projectar uma imagem que faça desaparecer essa dimensão. Tudo envolto no gague final, que está escrito, o aparecimento do Bernardo Soares.
É inevitável que se pense no Fernando Pessoa ao ler a peça ou assistindo ao espectáculo, mas também é possível pensar para lá de uma ideia construída acerca do que possa ser ou ter sido o próprio Fernando Pessoa
JRN – Olha uma coisa, Henrique, é impossível não pensar na Ofélia como uma heterónima do Fernando Pessoa? Melhor dizendo, admitindo que o Fernando Pessoa foi um heterónimo nas cartas que escreveu à Ofélia, não estarás tu a tentar transformar ou a brincar com a ideia de transformar esta Ofélia numa heterónima do Fernando Pessoa?
HMBF – Não foi minha intenção, mas é uma leitura legítima. É inevitável que se pense no Fernando Pessoa ao ler a peça ou assistindo ao espectáculo, mas também é possível pensar para lá de uma ideia construída acerca do que possa ser ou ter sido o próprio Fernando Pessoa. Se calhar, foi um heterónimo de si mesmo. Toda a obra dele é tão mental que, às tantas, interrogo-me sobre o que possa ter havido na vida dele que tenha sido carne e corpo. Olho para esta Ofélia de um modo completamente diferente. Faço alguns jogos de palavras, brincadeiras, como colocar na personagem dela uma frase que foi dele, ou, no final, coloco-a a não reconhecer uma das mais célebres frases por ele escritas, precisamente para sublinhar essa cisão entre Ofélia e Pessoa. Faço-o no sentido de gerar uma confusão que se esclarece a si mesma, na medida em que ela se distancia completamente de uma identidade que não é a sua para se afirmar individualmente. Desde o início que ela vai dando indicações de querer fazer um corte com a poesia, com as cartas, com as palavras. Logo no Primeiro Acto diz: “nada de poemas”. Até chegar ao momento final, em que queima uma carta. No meu texto há um jogo com flores, a ideia de queimar a carta foi criação do Fernando.
FMR – Não lhe chames criação, chama-lhe indicação cénica.
HMBF – Ou isso. É um momento muito forte que assina, precisamente, esse rompimento com o universo exclusivamente mental do Fernando Pessoa. Ela, desde o início, quer corpo, desejo, o ideal dela é esse, não é o de um destino superior. Isto até me parece paradoxal, alguém ter como ideal, utopia, algo eminentemente material. O que torna o ideal dela utópico é a ausência dele. Talvez seja sempre assim, não sei. Os grandes ideais, como o ideal de perfeição ou de eternidade, coisas de que as Criaturas falam, parecem-me sempre num plano irrealizável. Neste caso, o irrealizável é não haver nele o desejo que há nela. Não penso que ela possa ser entendida como um heterónimo do Pessoa no sentido em que rompe com o universo dele, deseja-o como corpo, não como mente, e ele é sobretudo mental. As Criaturas, que saem debaixo da cama dela, e foram construídas a partir dos heterónimos dele, são na peça projecções oníricas da cabeça dela, é ela que está a sonhar com as Criaturas. Estão dentro da cabeça dela sem existirem de facto. Quem as meteu lá? As cartas e os poemas do amado. É o que lhe sobra do amado, é o que ela não quer, ela quer outra coisa, quer corpo, não quer criações mentais.
JRN – Os heterónimos têm também uma capacidade de, por sua vez, se desdobrarem noutros. Eu não quero enfeudar aquilo que tu escreveste a uma obrigação qualquer para com o Fernando Pessoa, mas estava a colocar a hipótese interessante de ela poder também ser lida assim.
HMBF – É uma leitura possível, mas não é a que mais me agrada.
JRN – Reconheces-te no trabalho que o Fernando fez?
FMR – Deixa-me só dizer uma coisa. Eu percebo o que tu estás a dizer. No monólogo quase final, ela, de facto, faz uma passagem pela sua experiência da relação com Pessoa que já não é a das cartas na perspectiva da manipulação. Ela diz: “contigo aprendi” não sei quê, “contigo eu fui” não sei onde; ou seja, abriste-me as portas para eu entender a sexualidade noutros termos. No fundo, dando uma dimensão metafórica à condição física. E isso pode levar a uma outra liberdade do corpo. É aí que eu imagino haver um lado positivo na experiência. Por um lado, há a intriga epistolar. Por outro lado, há alguma aprendizagem real que não é tanto aquela que precede da leitura das cartas, mas do universo poético do Pessoa. Esse monólogo aponta para isso.
HMBF – Para mim é até mais simples. Foi resolvido com duas frases: “Se não te posso ter senão imaginando-te, prefiro não ter-te. Se não posso imaginar-te senão tendo-te, prefiro não imaginar-te.”
FMR – Foi isso que me abriu o caminho para o fósforo.
JRN – Mas isso é altamente pessoano, não é?
HMBF – Julgo que não. Prefiro não ter-te, há uma negação. Pessoa só quer ter em imaginação. Ela prefere não ter, se for para ter imaginando. Há uma cisão, um corte. Há a consciência de um legado, de uma aprendizagem, porque o Nininho ofereceu-lhe aquilo que é mais fundador da realidade dela: a paixão. Outra questão seria até que ponto a paixão é uma coisa carnal? Entramos no domínio da filosofia, o domínio das paixões da alma e dos espíritos dos animais. O Senhor dos Passos, que está na peça do princípio ao fim, é um símbolo da paixão cristã. Como sabem, o que define esta paixão é o sofrimento. O corpo é oferecido em sacrifício a algo que transcende o próprio corpo. A tradição católica pesa sobre Ofélia como uma cruz. Tens uma mulher cujo ideal é satisfazer o desejo carnal com o seu amado e o seu amado foge-lhe. É tão carnal como aquela figura do Senhor dos Passos especada no espaldar da cama. Ela só tem palavras, palavras, palavras, cartas, cartas, cartas, heterónimos, heterónimos, heterónimos. Simulacros. Até que chega ao ponto em que diz: basta, acabou, chega de poesia, chega de romantismo. Queima uma carta, liberta-se da cruz. Esse corte para mim é fundamental, confere uma identidade à personagem sem prejuízo do legado passional.
JRN – Sim, esse momento é muito forte, com a chama e o fumo. E joga com outros elementos do texto, mais uma vez a paixão, que é a história do fogo. Isso está presentíssimo no texto. Se calhar, foi daí que o Fernando teve a ideia da queima da carta. Ou não?
FMR – A mim, agrada-me muito essa coisa de que as criaturas devem emancipar-se, encontrar um caminho próprio. No teatro, trabalhamos muito as relações de dependência, de subalternidade. Se há uma arte que nos permite conhecer a história como algo vivo, é precisamente essa de tentar perceber o que eram as relações entre classes nos tempos em que essas dramaturgias foram produzidas. E aqui não nos esquecemos do tempo histórico. Isto começa em…
HMBF – Vai de 1919 até 1930, com um longo interregno pelo meio.
FMR – Entretanto, o marechal Gomes da Costa veio de Braga para Lisboa montado no seu cavalo. (risos) Na peça, há todas essas referências que a mim também me agradam, aos anarquistas. Ligar isso à vida real é uma estranha e curiosa forma de falar do que está vivo, falando daquela coisa dos atentados, das revoltas, de uma Lisboa agitada por tiros e por explosões.
Dantes as ruas enchiam-se de anarquistas. Está tudo tão parado. (Fotografia de Paulo Nuno Silva)
JRN – Curiosamente, o Henrique faz várias referências, ao longo do texto, a um lá fora. Há uma janela, as criaturas vão várias vezes à janela.
HMBF – Só há uma personagem que não fala no exterior. É a Criatura Vermelha. Está tão metida na máquina de escrever que não consegue ver lá fora nenhum.
FMR – Enfia a cabeça, literalmente, na máquina de escrever.
HMBF – É uma dimensão que me interessa muito.
JRN – Que é a dimensão do Pessoa. O Pessoa também não funcionava sem um lá fora.
HMBF – Eu acho que ele é a Criatura Vermelha. (risos)
JRN – Muito bem, Pessoa reflectia para dentro. Mas…
FMR – Mas há uma dimensão cósmica e universalista.
HMBF – Certo. E dizem que era muito afável com as crianças e que estava sempre na brincadeira, gostava de contar anedotas e fazia trocadilhos com palavras. O homem comia, claro, existia enquanto ser humano. Isso é óbvio, mas não me interessa minimamente. Quando falamos dele, falamos do que ele escreveu, não do homem que foi. E o que escreveu é extremamente metido para dentro. Para esta Ofélia, interessou-me muito mais, por exemplo, o lado humano da Elizabeth Siddal, que apanhou uma pneumonia a pousar para o Millais, meteu-se no ópio e teve uma relação amorosa com o Dante Rossetti, o que também nos leva a questionar quanto nela havia de autêntico ou, por outro lado, de construído sobre esse domínio artificial do artístico.
FMR – Há uma coisa aqui, para ficar claro, que é a possibilidade de um “drama” sobre Pessoa centrado na figura da Ofélia e numa espécie de libertação da Ofélia para outros voos fora do Fernando Pessoa. É isso que é interessante.
HMBF – Para mim, ele aqui é secundário.
JRN – Outra leitura possível do texto é uma condenação terrível do Fernando Pessoa. Ele sai dali muito maltratado.
HMBF – Assumo que possa sair.
JRN – O Nandinho, os jinhos…
FMR – Esse vocabulário vem todo das cartas. O Pessoa não se restringe à sua relação com a Ofélia. Ele, aqui, é observado desse lado, é um lado do Pessoa de que esta peça trata, pela primeira vez, de um modo mais aprofundado. Quem é que olhou para isto assim? Que eu saiba ninguém. O que é uma espécie de quase impossibilidade, porque sobre o Pessoa já tudo foi dito. E, apesar de tudo, essa do Nininho tem interesse… o génio.
JRN – Mas ele sai maltratado.
HMBF – Quando lês uma carta, estás à espera que exista ali um valor de autenticidade diferente de um texto literário. Nas cartas de amor entre Pessoa e Ofélia, esse valor de autenticidade é completamente apagado pelas simulações dele, o que faz da relação, pelo menos em parte, uma relação literária. Ele está sempre a fingir, mas ela é muito mais sofisticada do que usualmente se diz. Ela vence o jogo da verdade. Quando ele é chamado à realidade, foge. Mete o rabinho entre as pernas, como um cãozinho, que também está na peça, e foge. Imagina o que poderá ter sido na cabeça dele pensar que se estava a meter com uma miúda de 19 anos, levá-la a pensar que podiam casar, ter filhos, uma casinha, e ele que mal tinha para pagar o quarto e os delitros no Martinho da Arcada. Deixo de escrever para me tornar um escravo da família? Pode ter-lhe passado isto pela cabeça. Mas também podemos pensar no que diríamos a Ofélia, se fôssemos amigos dela e soubéssemos daquela relação. De um ponto de vista prático, ou pragmático, que suponho houvesse em ambos, terá havido nele a percepção de estar a ir longe de mais na brincadeira.
Eu quis chamar para primeiro plano a personagem feminina que surge sempre em plano secundário. A Ofélia em função do Hamlet, a Siddal que só existe em função do Dante e do Millais, esta Ofélia Queiroz que só é falada em função do Fernando Pessoa
FMR – É aí que lhe atira com o Álvaro de Campos.
JRN – Jogada genial.
HMBF – Foi uma fuga à realidade. Mas ela denota uma sofisticação e uma ironia que as pessoas não reconhecem.
FMR – Reduzem-na a uma parvinha e ele é que é o génio.
HMBF – Aí está. Eu quis chamar para primeiro plano a personagem feminina que surge sempre em plano secundário. A Ofélia em função do Hamlet, a Siddal que só existe em função do Dante e do Millais, esta Ofélia Queiroz que só é falada em função do Fernando Pessoa. O que me interessou foi colocá-las no primeiro plano, tentar perceber o que podia sair dessa personagem feminina já não em função do seu pólo, por assim dizer, masculino. Neste caso, quem conta é ela, os seus desejos e ambições, as suas utopias, o seu ideal, o que conta é a paixão de Ofélia e, no final, a cisão, o corte.
JRN – É, então, uma peça sobre a emancipação feminina.
HMBF – Também. Porque não? Emancipação feminina porque ela é uma personagem feminina, mas podes olhar para ela só como um ser humano. Uma personagem que se manifesta numa dimensão crepuscular, onírica: ora sonha, está sonâmbula, fica em transe.
Ofélia, a sonâmbula, encostando Álvaro de Campos à parede. (Fotografia de Paulo Nuno Silva)
JRN – Um dos momentos mais líricos da peça é toda a parte que tem a ver com a queima da carta, o imediatamente antes e o que se segue. É dos momentos de maior lirismo, digamos assim, da própria peça. Há uma espécie de reconciliação dela com a própria dor dela. Ela morre em paz.
HMBF – Não sei se morre. Achas que morre? O que achas Fernando?
FMR – Acho que parte para outra. Regressa ao mito. Vem do mito e volta ao mito. Ela também são duas, ou mais. Falamos de “ofélias”, não falamos de Ofélia. “Na cama com Ofélias”, isso é que era um título. (risos) Quero falar de uma outra coisa que é muito interessante no texto. É a relação entre o íntimo e o político. Na realidade, quando ela sai da auto-reflexão sobre os seus próprios problemas, faz esse monólogo e, a seguir a esse monólogo, vem um texto de teor didascálico – e isto é uma coisa que tem importância nesta peça, a quantidade de registos que encontram uma espécie de resolução cénica muito diferenciada e variada potencia, pelo lado dos contrastes, a dinâmica cénica-dramática do que vai acontecendo – que a coloca, no fim, junto à janela a dizer que tem fome. Essa fome é apetite sexual e vontade de comer. É a única vez em que fala de fome. Vai com a carta que passou pelos pombinhos quase até à Índia, pára um pouco antes, onde está a fome. Acontecem muitas coisas deste tipo na peça, em termos gestuais, que acabam por criar uma condição material para a proferição do texto. Vai para a janela, olha para fora e não é capaz de perceber que horas são. Já está perdida dentro da sua própria história, mas o relógio que ali falou foi o relógio biológico. O ter fome.
HMBF – O relógio biológico é físico, eminentemente físico.
FMR – Ela diz, então, que bem lhe sabia uma sopinha, depois de ter percebido que a luz exterior era uma luz cinzenta. Não conseguiu distinguir as horas do dia. Olhar pela janela, naquela circunstância, era a única maneira de saber as horas. Isto tem muito a ver com a elasticidade do que é onírico. Quando isso acaba, chega-se à frente, no momento em que enfrenta o público, olha o público como se fosse a realidade daquela época, o lá fora, e – a quarta parede, que é rompida e funciona como janela, porque de resto eles constroem a sua quarta parede numa rejeição do exterior –, identificando no texto dela os espectadores como a vida exterior da Lisboa daquela época, diz que está tudo tão parado. O que nós supomos é que os espectadores estão todos numa tensão em silêncio absoluto, mas essa coisa suposta, que será verdadeira, a não ser que apareça um camelo qualquer a estragar a cena – temos de estar sempre à espera de que essas coisas aconteçam –, ou um maluco qualquer a desembrulhar um rebuçado, corresponde a um salto daquela relação com o Pessoa Nininho para um plano histórico. Ela ali fica claramente num plano histórico, saímos do íntimo para o político. Essa dimensão é muito interessante na peça. É interessante que aquela mulher, que não percebe muito bem o que está a acontecer em termos históricos, sinta falta dos anarquistas depois de sentir fome.
HMBF – Perdeu as coordenadas.
FMR – E diz uma coisa muito bonita, que é: “Eu e tu e muitos.”
JRN – Henrique, usas muitas coisas do Pessoa na peça?
HMBF – Usei para a composição das criaturas versos do Pessoa heterónimo. O ortónimo não aparece senão o que está nas cartas.
JRN – O que é que quiseste utilizar? Como é que quiseste utilizar?
HMBF – A questão é sobre o processo de escrita, que tinha em vista um resultado final: conferir relevo à Ofélia. Reli o Alberto Caeiro, o Álvaro de Campos e o Ricardo Reis, fiz um apanhado de todas as passagens neles que pudessem ter a ver com as questões do amor, da sexualidade, do prazer, do corpo, mesmo quando se referem, quase sem excepção, à negação do corpo.
FMR – “Gozo sonhado é gozo, ainda que em sonho.”
É muito comum, hoje, as pessoas servirem-se de janelas para encontrar corpos. (Fotografia de Paulo Nuno Silva)
HMBF – Isso mesmo, aí está a negação do corpo. Está pela negação do real, a qual corresponde a uma sobrevalorização do onírico. Houve esse trabalho de releitura e de recolha que foi aproveitado em função da acção. Esta peça tem muito intertexto, para os meus padrões pessoais, mas é menos do que parece. Nomeadamente no que se refere a citações exactas. O meu trabalho foi muito de sabotagem, até de sabotagem do lirismo com um registo de paródia, que está logo no início e ressurge no fim. Nunca quis que a acção caísse completamente para o lado sublime, por assim dizer, para o poético delicodoce da lírica amorosa.
FMR – És um malandro.
HMBF – Não é essa a questão. Repara, quando eu dizia, há pouco, que me interessou muito mais a Elizabeth Siddal do que o próprio Fernando Pessoa, isso tem que ver com isto mesmo. Nada do que o Millais pintou na “Ofélia” vem na peça do Shakespeare, é tudo fruto de uma leitura pessoal das descrições da Rainha sobre a morte de Ofélia. O que ele pinta é uma representação da descrição da Rainha.
FMR – Essa é a suprema ironia, dá uma pista soft porno que não confere.
HMBF – (risos) Sim, é muito irónico. Mas também é político, lá está. Se pensares a raiz da política, verificarás, talvez, que o próprio sonho é político. Não quero entrar numa dimensão completamente abstracta do problema, mas interrogo-me: o que é uma utopia? Hoje, fala-se no fim das utopias, mas o século XX foi um século de sonhos que fizeram muitas vítimas. As utopias matam, os sonhos matam.
FMR – Até se fala de utopia concreta.
HMBF – Na Ofélia, esta Ofélia, o que é mais relevante do ponto de vista político, mais do que a constatação de um tempo entediante, é a percepção de que quer o interior quer o exterior estão contaminados pela falsidade e pela hipocrisia. A ruptura da Ofélia é com esse fingimento. O entretenimento das Criaturas com o lá fora refere-se à realidade actual. “Quem quer casar com a carochinha, que é bonita e perfeitinha?” –, esta alusão popular, que no texto é dita apenas pela Criatura Vermelha, mas na encenação do Fernando ficou, e bem, em coro, é uma referência directa a essa actualidade das redes sociais. É o fingimento massificado das redes. É curioso que o digam em confronto com o público. Resulta bem.
FMR – No caso do fingimento, estamos a falar de uma construção tão sofisticada que o fingir não é apenas uma espécie de escape ou de sistema, o sistema do fingimento. Isso leva a grandes e a muito interessantes construções poéticas. Entendo que, se a dimensão do desejo da Ofélia é utópica, ela é política porque é utópica. Tem uma grande dificuldade de se materializar, o que obriga a encontrões com o real, vai encontrar muitos obstáculos e é nesse processo que a política surge. Não é só o Pessoa com as suas manobras que é obstáculo à materialização da utopia – ele, no fundo, é um erro de casting dela.
JRN – Sim, mas a dimensão utópica da Ofélia está muito ligada ao Pessoa. Ele exerce sobre ela um potencial tremendo. Ela só consegue chegar à última fala, digamos assim, por ter passado por ele. Ele foi o Senhor dos Passos dela.
HMBF – Diria, antes, que foi a cruz.
FMR – Há, aqui, uma coisa terrível que só o teatro é que situa.
JRN – Fernando, desculpa, antes de explicares isso. Como é que escolheste aqueles actores?
Estreia de “Na cama com Ofélia”. Da esquerda para a direita, os actores Ricardo Soares,
António Parra, Fábio Costa e Marta Taveira. (Fotografia de Margarida Araújo)
FMR – Foi logo. Aqueles três, juntei-os porque foram meus alunos em anos diferentes na ESMAE [Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo]. Têm mais ou menos a mesma idade, um espírito de camaradagem forte. Amam-se uns aos outros, adoram a miúda e são de humores contrastados como os heterónimos. E eu ia dizer uma coisa interessantíssima, mas já não me lembro o que era. É porque não era grande coisa. (risos) Já sei. Se vocês virem a Marta a representar, e viram, todas essas partes que remetem para a sexualidade ganham uma força tão grande em termos presenciais, no espaço, na cena, que qualquer Fernando Pessoa que estivesse sentado na sala, como espectador, fugia.
HMBF – Faria o que faz a Criatura Preta.
FMR – Sim, voltar-se-ia de lado. O que ela faz, com grande contenção, mas ao mesmo tempo com enorme intensidade e com grande liberdade de fazer, em termos de jogo, coloca estas questões do desejo numa espécie de outro plano, já não tem nada a ver com palavras. Tem a ver com o modo como aquelas palavras também levaram a libertá-la, em termos físicos. O que leva aquela miúda a libertar-se em termos físicos? São aquelas sugestões eróticas que têm aquele vocabulário extraordinário dos pombinhos e da viagem à Índia. Quando ela pega nisso e faz aquilo, como actriz, chega a ser quase “obsceno”. Sobretudo no Segundo Acto, quando a Ofélia sai da cama transformada em vampe.
HMBF – Isso é óptimo, a capacidade que eles tiveram de entender o jogo de sabotagem do lirismo que a peça tem. Tinha receio de que olhassem para o texto como um poema, uma coisa assim meio sentimental. Foi um excelente trabalho que o Fernando foi fazendo e acabou por resultar muito bem, a percepção de que há naquilo tudo um lado cómico. Aliás, o Pessoa diz isto logo numa das primeiras cartas que envia à Ofelinha: “Reconheço que tudo isto é cómico, e que a parte mais cómica disto tudo sou eu.” Esta frase aparece na peça, mas pronunciada pela Ofélia. A Marta está a fazer uma coisa incrível, e que era, sem dúvida, desafiante, que é assumir vários registos diferentes num mesmo monólogo. Esse desdobramento é muito importante neste contexto.
JRN – Não se percebe que ela envelhece.
HMBF – No texto, a ideia inicial é essa. A opção do Fernando foi por outra abordagem. E parece-me bem.
FMR – Vou tentar que ela suje a cara, não que se pinte de velha. Que suje a cara de vidente, chamuscada lá com as suas ciências ocultas. Já está num estado em que resolve o problema da relação pela via vidente, que é uma artimanha curiosa, porque traz a peça para um universo que não tem nada a ver com aquele que estávamos a seguir.
HMBF – Está no Shakespeare. Está tudo lá, a bruxaria, os fantasmas. A certa altura, e o José Gil fala disso, a Ofélia insinua que lhe disseram que o Pessoa vivia com uma mulher. Ela não especifica quem lho disse, mas o José Gil coloca a hipótese de ter sido uma bruxa ou vidente.
Ofélia, a vidente, convocando o espírito do amado. Ai que são tantos, valha-me Deus! (Foto de Paulo Nuno Silva)
FMR – É Gil Vicente. E é popular. Estás num universo pequeno-burguês e, de repente, vem por aí abaixo. Quer queiras quer não, mergulhaste na linguagem vicentina. Tu viste as “Fradas”. Até me disseste que foi a primeira vês que viste o José Carlos Faria em palco. Uma cena que tinha um caldeirão e em que a Isabel Lopes fazia de feiticeira.
JRN – Esse monólogo está fantástico. É, para mim, a parte mais conseguida da peça, embora isto não se possa dizer assim. Foi a parte que me deu mais prazer de ler, que mais me tocou.
HMBF – Eu, por exemplo, aprendi a gostar de teatro a ler coisas do género daquela batalha entre as Criaturas, no Segundo Acto.
JRN – Há um bocadinho de Molly Bloom naquela Ofélia final.
HMBF – É possível.
JRN – Reveste nas alterações que foram feitas? Como foi o vosso trabalho na construção da versão final? Participaste?
HMBF – Fui acompanhando. É óbvio que há aqui uma extrema confiança no trabalho do Fernando, mas nem é essa a questão. As alterações produzidas por ele, as que são mais significativas, oferecem outra força ao texto. Por exemplo, a queima da carta de que já falámos. O Senhor dos Passos, que no texto é um quadro, está fixo, e acabou instrumentalizado, digamos assim. Fica com uma dimensão orgânica que eu nunca tinha imaginado e o Fernando tornou possível. A presença da igreja está lá, é obrigatório, como ameaça e vigilância, mas agora é muito mais do que isso.
FMR – É usado. Entra no jogo.
HMBF – O momento em que ele sai da posição inicial foi contribuição do Parra. Sai no ponto.
FMR – Os actores são muito importantes nisto. Dar corpo a qualquer uma destas coisas é sempre algo que não se explica senão através dessa dimensão extraordinariamente individualizada oferecida pelos actores. Muito curioso é a forma como a Marta se oferece à personagem. Ela empresta-se àquele pudor, àquela virgindade da Ofélia, mas, de repente, quando se transforma naquela vampe que ela constrói, dá um salto de virgem para outra coisa completamente diferente, a ponto de achincalhar o Álvaro de Campos, que é justamente o misógino da companhia. É muito interessante isso, porque tem a ver com o que ela faz. Como, por exemplo, a contenção do Fábio, o lado preciso como diz as coisas, que é diferente do lado mais flutuante do Ricardo, mais cómico, uma espécie de Buster Keaton um pouco mais lento. O Parra trabalha uma certa grandiloquência.
Os actores são muito importantes nisto. Dar corpo a qualquer uma destas coisas é sempre algo que não se explica senão através dessa dimensão extraordinariamente individualizada oferecida pelos actores
JRN – Não gostei muito do modo como entra de cão.
HMBF – Está no texto. A didascálica diz para ficar de quatro, como um cão, a farejar os movimentos da Ofélia.
JRN – Mas não assim, tão ostensivamente.
FMR – Aquilo tem de ser brincado, é uma coisa muito brincada. Ele hoje entrou mal, ladrou no sítio errado. Vocês pensam que isto não tem importância, mas tem. Não há problema nenhum em achares que não funciona, que está a mais. Certo. Agora, a cena é uma cena sadomasoquista em registo lúdico. A Criatura mais fascinada com a figura feminina salta para a cama a fazer de cãozinho.
JRN – Quando leste o texto, o que pensaste?
FMR – Uma coisa curiosa é que, quando lês o texto, não sabes como vais fazer. Pensei que era um grande desafio. Como raio vou trabalhar as três Criaturas que estão visíveis mas são invisíveis? E ela não os vê, mas eles vêem-na. Estes problemas têm, depois, soluções mais simples. Tens de colocar o problema fazendo-o. Em cena, ela nunca os vê. Nunca olha para eles, não há um cruzamento de olhares.
JRN – Isso está muito bem conseguido.
FMR – É um trabalho que tem de se fazer. Os gajos fartam-se de olhar para ela. Só olham para ela, mesmo que não tenham só olho nela. Estas Criaturas são a desgraça do género. O que dá um grande gozo nisto é que, não gostando de grandes sessões de mesa, em que as pessoas ficam todas a antecipar aquilo que vêem, prefiro ir interpretando o texto vendo os actores a trabalharem-no. Desde miúdo que sou inquieto. Gosto muito de ler, mas tenho urgência em fazer. Estava a ler e já estava com vontade de fazer. Leio a fazer. E os actores estão sempre a fornecer-me material. Por vezes, os gestos mais disparatados ajudam a resolver as figuras das personagens. Por exemplo, no ensaio de hoje, aquela brincadeira do António Parra com o lenço. Deslocas os gestos para algo que tem um significado um pouco diferente e convertes o Ricardo Reis num hipócrita.
António Parra, o Ricardo Reis de “Na cama com Ofélia”. (Foto de Paulo Nuno Silva)
HMBF – É o que ele é.
FMR – Basta que passe o lenço pela testa, como se estivesse a suar, quando a Ofélia está com aquelas conversas mais sexuais. É uma pequena diferença que faz toda a diferença. Isso vem de quê? Vem do acto irreverente do actor durante o ensaio.
03/03/2022